• Nenhum resultado encontrado

3.2 Ferramentas de representação como artefatos

3.2.2 Cognição matemática e práticas culturais

O estudo das interações de cognição e práticas culturais, numa perspectiva da aquisição e desenvolvimento do conhecimento matemático, configura-se numa preocupação que permeia o cenário das investigações no campo da Psicologia e da Educação matemática.

Um ponto central e destacado nesses estudos consiste na investigação do uso de conteúdos matemáticos em contextos particulares, como em situações que diferem do cotidiano escolar, em práticas culturais específicas. A esse respeito, podem ser citados Carraher, Carraher e Schlieman (1989), que investigaram a realização de operações aritméticas por sujeitos em situações de compra e venda numa feira; Lave (1988) estudou o uso de operações aritméticas por sujeitos engajados em práticas culturais diversificadas (supermercados, vigilantes do peso); Saxe (1991) desenvolveu estudos sobre aspectos da cognição matemática envolvidos na prática da venda de bombons por crianças do centro de Recife; e Acioly (1995) estudou o funcionamento cognitivo de sujeitos adultos ou pouco escolarizado no domínio da medida, mais particularmente na resolução de problemas do cálculo de área.

Esses estudos convergem na medida em que consideram e demonstram que a situação social em que o sujeito age influencia os seus objetivos, repercutindo tal ação na organização das suas ações.

Nos estudos realizados sobre a prática de venda de bombons por crianças de rua do Recife, Saxe (1991) argumenta que os objetivos matemáticos emergem na prática contextualizada e consistem na tentativa dos vendedores direcionarem suas ações para a sobrevivência econômica, considerando as constantes alterações da moeda e o aumento dos preços das mercadorias. Quando os objetivos emergem, tomam várias formas, e se encontram freqüentemente relacionados com os motivos econômicos dos próprios vendedores, com os processos socioculturais e a compreensão matemática que eles trazem para a prática.

Nessa perspectiva, Lave (1988, p. 1, tradução nossa) é mais enfática, propondo a formulação de uma psicologia da aprendizagem situada. Esta consiste no engajamento autêntico de indivíduos em práticas comuns. Segundo a autora,

A atividade matemática assume diferentes aspectos em diferentes situações. A especificidade da prática da aritmética numa situação e a descontinuidade entre situações constituem uma base provisória para uma explanação da cognição como um nexus de relações entre a mente em atividade e o cenário no qual a atividade se desenvolve.

Saljo e Wyndhamn (1993) fazem referência a rotinas e tradições de comunicação que diferentes situações da vida diária provêem. Tomando como unidade de análise os sistemas de atividades, como propostos por Leontiev (1981), os pesquisadores desenvolveram um estudo para ilustrar como a escola provê condições concretas para a resolução de problemas, buscando também contribuir com evidências para a compreensão da natureza social da cognição humana.

Saljo e Wyndhamn (1993) realizaram estudo empírico no qual estudantes suecos deveriam estabelecer o custo de envio de uma carta usando para tanto uma tabela oficial de postagem do correio. A tarefa dos estudantes consistia em resolver o seguinte problema: quanto deverá ser pago para o envio de uma carta que pesa 120 gramas? Os estudantes foram solicitados a resolver os problemas sob duas condições: de ensino e aprendizagem de Matemática e de ensino e aprendizagem de Estudos Sociais.

Os estudantes estimaram o preço da postagem com base em duas estratégias: leitura livre e cálculo. Essas duas estratégias diferiram quando analisadas em função das situações de pesquisa. No contexto de ensino e aprendizagem da Matemática, 57,4% dos estudantes interpretaram a tarefa como uma típica tarefa matemática e engajaram-se em algum tipo de cálculo. Quando lidaram com o mesmo problema no contexto do ensino e aprendizagem de Estudos Sociais, apenas 29,3% fizeram uso de operações matemáticas para encontrar a resposta. A diferença no uso dessas estratégias foi estatísticamente significativa.

De acordo com Saljo e Wyndhamn, esse resultado indica que o contexto social em que os participantes se encontram engajados foi determinante para o direcionamento dos significados construídos para a resolução da tarefa.

Carraher, Carraher e Schlieman (1989), Lave (1988), Saxe (1991), Acioly (1995) e Saljo e Wyndhamn (1993) evidenciam a construção e uso do conhecimento matemático em práticas cotidianas, isto é, desenvolvidas no dia-a-dia, reavendo-as como forma de conhecimento legítimo. Nesse sentido, considera-se a existência de um raciocínio matemático relacionado com as experiências que as pessoas desenvolvem no cotidiano. Tal forma de formulação considera a escola como prática cultural, espaço onde se desenvolve uma forma específica de cognição matemática e que faz parte das atividades diárias das pessoas.

Voigt (1993), discutindo sobre a atribuição de significados matemáticos para os fenômenos empíricos, destaca que a Matemática desenvolvida em sala de aula configura uma prática cultural específica, constituída pela negociação de significados entre professor e estudantes. Fundamentado num interacionismo simbólico, os participantes do processo monitoram suas ações de acordo com intenções e expectativas mútuas. Os símbolos matemáticos, segundo Voigt, em vez de possuírem um significado definitivo, são continuamente transformados nas negociações, emergindo como processos plurissemânticos e que envolvem ambigüidades.

Na análise de interpretações de crianças sobre figuras extraídas de livros-textos de matemática, Voigt observou que as crianças formulavam diferentes respostas que julgavam ser as que o autor do livro esperaria que fossem ditas. Tomando como base evidências dessa natureza, envolvendo conceitos matemáticos diversificados, Voigt argumenta que, embora os princípios das figuras dos livros-texto possam ter múltiplos significados, muitos autores desses livros e professores de Matemática parecem assumir a idéia de que esses objetos não apresentam significados ambíguos e que existem respostas definitivas para o tipo de informações quantitativas que essas figuram potencializam.

Entende-se que abordagens que consideram o uso do conhecimento matemático em práticas cotidianas rompem com posições dicotomizadas que destacam as relações do tipo formal-informal, dentro-fora da escola, na medida em que consideram também a escola como uma prática cultural específica, realizada com regularidade pelas pessoas no seu cotidiano.

A esse respeito, Meira (1993) argumenta sobre o papel da escola como prática cotidiana geradora de atividades matemáticas significativas.

O processo de comunicação e argumentação na sala de aula torna explícita a idéia da prática da matemática escolar como uma atividade cotidiana, na medida em que a sua linguagem e procedimentos se tornam familiares aos alunos. (MEIRA, 1993, p. 27).

Estendendo essa análise de Meira sob a óptica das perspectivas teóricas de Cole e da classificação de Wartofsky, entende-se que os processos simbólicos desenvolvidos com o suporte do uso dos artefatos matemáticos contribuem para influir na forma como as pessoas raciocinam matematicamente. Como esses processos simbólicos envolvem conteúdos relacionados aos domínios específicos da Matemática, uma análise mais específica sobre a importância que as ferramentas de representação assumem para a construção do raciocínio matemático é requerida.

3.3 A prática da Matemática e o raciocínio sobre diferentes ferramentas de