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4. O SOLO EM DANÇA CONTEMPORÂNEA: Um corpo em processo

4.3 Como Os Corpos Se Tornam Matéria?

“Para onde vai a forma quando a matéria cede passagem”

(Arthur Omar)

Imagem 3: Sismos e Volts. Centro de Referência da Dança de São Paulo (CRDSP). Foto: Thiago Soares. 2016.

Escrever sobre um processo de criação em dança é um desafio. Colocar em palavras, procurando minimizar o impacto que a escrita, especialmente a acadêmica, pode causar em uma arte extremamente física, da presença, do movimento, não é uma tarefa fácil. É importante e acredito que necessária, mas cheia de riscos. Ser honesto ao que foi de fato experimentado em sala, nos ensaios, assim mesmo parece implicar um outro nível de criação.

Em 2013, fui selecionado para participar da 4ª edição da plataforma Exercícios Compartilhados, criada e coordenada por Adriana Grechi, diretora e coreógrafa do Núcleo Artérias, grupo de dança contemporânea da cidade de São Paulo.

A plataforma acolhe um número aproximado de 12 ou mais artistas que desejam investigar e elaborar trabalhos no campo da dança contemporânea e suas interfaces. Quando entrei para a plataforma de criação tinha em mente retomar a questão abordada em 2010 na peça solo de dança, que foi meu trabalho de conclusão de curso da Universidade. O solo Nunca Mais Bom Crioulo foi um diálogo entre dança e literatura em que abordava a relação conflituosa que tinha em relação a um senso comum acerca da

imagem e do corpo do homem negro na sociedade brasileira. Na época escolhi lidar com o assunto por meio do diálogo com o personagem Bom Crioulo, da obra homônima do escritor Adolfo Caminha (1895). O livro contém uma quantidade considerável de descrições sobre a constituição física e do comportamento da personagem. Meu desafio foi encontrar um modo de elaborar uma dança que fosse um campo de interação do eu- corpo com o corpo-Bom Crioulo criado por Caminha (1895). Abaixo destaco os seguintes trechos do livro, um descrevendo aspectos mais físicos e outro, aspectos comportamentais de Bom Crioulo:

Seguia-se o terceiro preso, um latagão de negro, muito alto e corpulento, figura colossal de cafre, desafiando, com um formidável sistema de músculos, a morbidez patológica de toda uma geração cadente e enervada, e cuja presença ali naquela ocasião, despertava grande interesse e viva curiosidade: era o Amaro, gajeiro da proa – o Bom Crioulo na gíria de bordo (CAMINHA, 2009, p. 35).

Porque Bom Crioulo de longe em longe sorvia o seu gole de aguardente, chegando mesmo a se chafurdar em bebedeiras que o obrigavam a toda a sorte de loucuras. Armava-se de navalha, ia para o cais, todo transfigurado, os olhos dardejando fogo, o boné de lado, a camisa aberta num desleixo de louco, e então era um risco, uma temeridade alguém aproximar-se dele. O negro parecia uma fera desencarcerada: fazia todo mundo fugir, marinheiros e homens da praia, porque ninguém estava para sofrer uma agressão [...](CAMINHA, 2009, p. 36).

Na época, elaborei uma dança que continha tremores, desequilíbrios e posturas performadas por fisiculturistas em competições. Em 2013 cheguei à conclusão de que tremores e desequilíbrios faziam parte de uma lógica de organização e propriedades qualitativas diferentes das posturas dos fisiculturistas e, portanto, deveriam ser trabalhados separadamente.

Imagem 4: Nunca Mais Bom Crioulo.

Imagem 5: Nunca Mais Bom Crioulo.

Foto: Paula Ramos. 2010.

Na plataforma Exercícios Compartilhados, em 2013, escolhi retomar o assunto desse solo de 2010 – a questão da imagem do homem negro na sociedade brasileira por meio do diálogo com a personagem Bom Crioulo do livro de Caminha – e escolhi trabalhar somente com as posturas dos fisiculturistas. Quando me coloquei para trabalhar corporalmente as posturas na plataforma, o material que acessei logo de início foram os tremores e, numa sequência ininterrupta de aproximadamente 4 horas, passei para os desequilíbrios e em seguida para os giros.

Recordo a força da experiência nesse dia de tal modo que não fazia sentido insistir racionalmente em querer trabalhar com os materiais que havia escolhido previamente. Eu tinha a necessidade de entender porque aqueles materiais se impuseram nas minhas decisões. Durante os meses de meados do ano de 2013 a abril de 2014, trabalhei intensamente os tremores e os desequilíbrios. Os giros, como dito anteriormente na segunda parte deste capítulo, apareceram nos primeiros dias, mas desapareceram no meio do processo. Penso que a razão desse desaparecimento se deu porque, de certo modo, o corpo não estava preparado para articulá-lo com os outros dois movimentos. Eu precisava construir esses modos devagar, passo a passo. O próprio trabalho com os materiais foi o treinamento.

Nos últimos dias da plataforma, fui acometido por tonturas e enjoos, efeitos colaterais ausentes durante todo o processo de investigação. Eu tinha a habilidade de permanecer muitas horas acessando os movimentos. Após as apresentações do processo, na mostra que integrava o programa da plataforma naquele ano, eu coloquei de

lado a pesquisa, porque não encontrei na época formas de dar continuidade. Tentei enviar para um programa de residência, mas o projeto não foi aceito, assim como não foi aceito para um edital de apoio a produções de dança. Além desses fatores, a demanda de trabalho crescia aceleradamente: estava envolvido com dois grupos de dança de São Paulo e realizava orientações artísticas para adolescentes, jovens e adultos em um projeto da prefeitura da cidade.

Imagem 6: Sismos e Volts. Galeria Olido, Sala Azul. Foto: Jônia Guimarães. 2013.

Imagem 7: Sismos e Volts. Galeria Olido, Sala Azul.

Em 2015, uma crise pessoal, já manifestada em meados de 2014, tomou-me de assalto. O modo como vinha caminhando profissionalmente na dança mostrava sinais de esgotamento e provocava a sensação de estagnação. Eu me sentia impelido a me mover em outras direções. Eu tinha uma série de documentos, esboços do que poderia vir a ser uma pesquisa de mestrado e alguns projetos escritos para editais, que não foram contemplados. Trabalhei sobre esse material, elaborando um projeto de pesquisa de mestrado, submeti ao processo de seleção para a Pós-Graduação em Artes da Cena da Unicamp e ingressei no Programa com a intenção de realizar uma discussão a respeito do formato solo de criação, na dança contemporânea. Como parte da metodologia de investigação, propus entrar em processo de criação partindo do percurso que havia iniciado em 2013, na plataforma Exercícios Compartilhados.

Morando em São Paulo, sem dispor de recursos financeiros para alugar uma sala de ensaio na cidade, realizei grande parte da investigação como artista residente no Centro de Referência da Dança da cidade de São Paulo (CRD) e me candidatei para participar novamente da plataforma Exercícios Compartilhados, 6ª edição, viabilizando, assim, um local a mais na cidade para o desenvolvimento da pesquisa, especialmente considerando que foi nesse contexto que teve início essa jornada.

Sismos e Volts foi o título do resultado no qual a pesquisa iniciada em 2013 culminou. Foram explorados três acionamentos corporais – tremores, desequilíbrios e giros – em um estudo realizado pelo trânsito entre os movimentos corporais, manipulados pelas variações de fluxo (controlados ou liberados) e modulações de intensidades (altas, médias ou baixas) dos materiais.Os laboratórios foram realizados a partir da tríade corporeidade, presença e dramaturgia. Esses eixos se atravessam sem hierarquias, entretanto a construção da corporeidade foi o ponto de ignição. O esquema a seguir ilustra de modo sintético a lógica de pensamento condutora do processo.

Corporeidade < > Presença < > Dramaturgia | | |

Tremores, desequilíbrios e giros > Trânsito |

Variações (gradações-escalas) de intensidades /

Possibilidades: sustentações colisões

quedas

Os ensaios que fiz sozinho aconteceram às segundas-feiras na residência no CRD e às quintas, na plataforma Exercícios Compartilhados; às quartas-feiras foram realizados os encontros coletivos, envolvendo todos os participantes da plataforma e convidados, que intervieram em períodos específicos da plataforma, sendo eles a pesquisadora e dramaturgista Rosa Hercoles e o coreógrafo Alejandro Ahmed, do grupo Cena 11, de Florianópolis, Santa Catarina. Uma semana intensa de ensaios foi realizada no Departamento de Artes Corporais do Instituto de Artes da Unicamp e um número considerável de pesquisa prática foi feito na sala do apartamento onde moro em São Paulo. Durante o processo, pude apresentar para um público os estudos corporais nas Mostras dos Artistas Residentes do CRD e na Mostra dos Exercícios Compartilhados.

As dinâmicas dos ensaios foram as mais variadas possíveis: às vezes, de um modo anárquico, à semelhança das rotinas atuais de Eduardo Fukushima relatada em entrevista, outras vezes, extremamente estruturadas. Inicialmente tive de lidar com os enjoos, muito presentes nos primeiros ensaios. Para tanto, passei a dividir em pequenas frações de estudo os materiais pesquisados – por exemplo, fazia três minutos de tremores, pausava dois , em seguida, acionava quatro minutos e mantinha o tempo de pausa de dois minutos, depois cinco de tremores e dois de pausa, assim por diante. Desse modo, fui adquirindo resistência e recuperando, tanto como ampliando, a capacidade de acessar o material por períodos maiores de duração.

Fase I Dia 1

Trabalho 1: Domínio/resistência - Tremores > ativar/desativar de imediato > 2 blocos - 3x1 (3

min.), 3x2 (4 min.), 3x3(5 min.) | intervalo 2 minutos

Como se vê, no caso acima, realizei dois blocos de trabalho com três repetições cada, acessando os tremores, que tinham a duração aumentada gradualmente em cada repetição, com intervalo de dois minutos entre elas. Em seguida, passei a diminuir o tempo de intervalo, ficando de dois a um minuto. Essa dinâmica acabou se tornando uma possibilidade de aquecimento antes de uma apresentação para o público.

Após um período de retomada, adquirindo resistência e ampliando o tempo de acionamento dos materiais, ou seja, o tempo que conseguia me manter movimentando, pude me dedicar a explorar cada um deles em suas respectivas características.

Um dos primeiros entendimentos foi perceber de onde partiam os movimentos. Descobri que tanto nos tremores, quanto nos desequilíbrios, o ponto de acesso eram os pés, mas a sensação era de que os tremores vinham do chão, por isso, a porta de entrada eram os pés. Dos pés, os tremores ressoavam pelo corpo com maior ou menor intensidade, dependendo da força vibratória empregada. Os pés estavam presentes no giro também, mas não eram tão evidentes e, provavelmente, porque passei a perceber não mais três movimentos distintos, e sim desdobramentos de um mesmo princípio: os tremores. Foi a partir desse momento, que passei a associar os tremores com os terremotos, porque era como se dançasse sobre um chão que se movia, ou seja, o chão, irregular e instável, me obrigava a mover, então eu tinha de dançar com ele, para não ser derrubado ou soterrado. A partir do trabalho com os tremores, giros e desequilíbrios, realizei uma pesquisa de imagens na internet inspiradas nas imagens que começaram a povoar minha imaginação durante os laboratórios de criação:

Imagem 9: Terremoto, Yungay, Peru, 31 de maio de 1970.

Desse modo, passei a relacionar, por exemplo, as diferentes intensidades dos tremores, desequilíbrios e giros com as medições realizadas pelos sismógrafos das intensidades de um terremoto. Selecionei também a pintura O Acrobata de Pablo Picasso, cuja imagem espelhava a corporalidade que vinha sendo forjada, assim como a própria ideia de acrobata condizia com aquele corpo que se movia em meio a terremotos, sobre um chão involuntário.

Fisicamente, os pés não estão estáveis em seus pontos de apoio de forma bem distribuída; nos desequilíbrios essa condição fica mais perceptível, porque, na maioria das vezes, consigo apenas me equilibrar em um dos pés ou não consigo mantê-los por muito tempo simultaneamente no chão.

Os deslocamentos dos pontos de apoio no corpo também ocorrem com mais ênfase nos desequilíbrios: ora estão no ombro esquerdo, ora no quadril, do lado direito ou ,por vezes, na cervical. Identificar esses detalhes de funcionamento dos movimentos no corpo ajudou-me a descobrir as passagens de um movimento para o outro. Se dos tremores para os desequilíbrios a passagem era mais fluida, a passagem dos desequilíbrios para os giros se mostrava um desafio. Resolvi essa dificuldade fazendo uma pausa entre os desequilíbrios e os giros, o que, em termos de dramaturgia, não correspondia ao que o trânsito pelos materiais propunha cenicamente.

Nos “feedbacks” recebidos tanto pelos outros artistas da plataforma, quanto pelo público que assistiu à apresentação da pesquisa nas mostras do CRD e dos Exercícios Compartilhados, as pessoas viam a possibilidade de eu passar dos desequilíbrios para os giros e essa informação fazia sentido com as percepções internas que tinha durante a performance; então, comecei a suspeitar que um outro fator pudesse estar interferindo mais intensamente do que eu gostaria de acreditar: o cansaço. O reconhecimento do cansaço que boicotava a intenção de passar dos tremores para os giros sem freios levou- me a considerar o efeito interno, no corpo, provocado pelos tremores, desequilíbrios e giros.

Os movimentos desmantelavam meu corpo por completo, ossos, músculos, fáscia, órgãos, pele e assim por diante. Uma pessoa que assistiu ao experimento na mostra dos Exercícios Compartilhados, apontou-me essa possibilidade de leitura do trabalho. Ela disse: "eu percebo os tremores vindo do chão, mas para mim parece, também, que você está estilhaçando por dentro." Fazia sentido. A imagem era como se por dentro do corpo ossos, músculos e órgãos eram como pratos, copos e jarras que despencavam das prateleiras e quebravam no chão em milhares de cacos.

O mecanismo utilizado para organizar esses materiais foi o que chamei de trânsito. A intenção era a de transitar por entre os materiais: tremores > desequilíbrios > giros. Apenas uma vez, em uma apresentação, transitei de forma aleatória sem seguir a sequência descrita anteriormente, o que foi uma tarefa hercúlea: tremores <> desequilíbrios <> giros. Nesse experimento, adicionei mais alguns elementos descobertos nos laboratórios de criação: 1) lançar-me contra uma parede (colisão); 2) ricochetear pela parede, após o impacto da colisão; 3) deixar a voz se precipitar, liberada pelos tremores, que faziam minha caixa torácica vibrar provocando sons.

No processo, encontrei mais possibilidades de trânsito. Para além de transitar dos tremores para os desequilíbrios, e deste para os giros, eu podia também deixar que os tremores transitassem pelo meu corpo ou que os desequilíbrios e os giros também o pudessem fazer.

Cada um trazia um universo de possibilidades em que precisei definir quais lugares em cena visitaria durante o trânsito. Criei uma espécie de arquivo de cada lugar encontrado , por cada movimento, para acessá-los no momento da apresentação. Mas, na maior parte do processo, permaneceu a sequência de trânsito: tremores > desequilíbrios > giros, porque esta se mostrou mais viável para o momento.

Toda a concepção cênica resultou como extensões da corporeidade. Nos esboços de luz, a ideia que se apresentou foi como se um terremoto tomasse o espaço cênico por completo, fazendo-o ruir – então, as luzes deviam falhar de tempos em tempos. Tais ideias surgiram nas apresentações do processo nas residências, que funcionaram para testar as deias.

Imagem 10: Sismos e Volts. Experimento a voz em apresentação na Mostra dos

Residentes do CRDSP.

Foto: Vanessa Moraes. 2016.

Imagem 12: Ilustrações de tipos de tornados feitos por David Hoadley (1938).