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4. O SOLO EM DANÇA CONTEMPORÂNEA: Um corpo em processo

4.2 Que Corpo?

Imagem 1: Sismos e Volts. Centro de Referência da Dança de São Paulo (CRDSP). Foto: Vanessa Moraes. 2016.

Como verificado anteriormente, em Louppe (2012), a(o) artista engajado na criação de um projeto artístico deve pensar sobre que corpo se encontra em jogo no momento. Uma questão que, segundo a autora, antecede a leitura de um projeto de dança.

Sismos e Volts trata-se de um recorte, uma síntese de um processo retrospectivo que decidi realizar refletindo acerca dos caminhos que vinha trilhando na dança até aquele momento, em meados do ano de 2013. Como mencionado na primeira parte deste capítulo, para realizar tal processo defini como pontos, marcos desse percurso dois solos criados anteriormente: Ovelhas (2008) e Nunca Mais Bom Crioulo (2010).

Na criação do solo Ovelhas, na noite anterior do início das atividades em sala, meus pensamentos foram tomados por imagens de corpos, figuras humanas dançantes, que se movimentavam de modo disparatado, obsceno e desconectado. Imediatamente, no dia seguinte, me coloquei em sala para experimentar as imagens que povoavam meus pensamentos.

No percurso criativo, fui descortinando um corpo, que se percebia como um corpo inadequado, e me fazia a seguinte pergunta: "mas o que provocava essa sensação de inadequação?". Recordando minha jornada pregressa à incursão no campo da dança, desde as memórias de uma adolescência restrita, que dificultou o desenvolvimento das capacidades de sociabilidade, até o envolvimento com um grupo ativista de direitos

humanos voltados às comunidades de lésbicas, travestis, transexuais, bissexuais e gays da cidade de Campinas, passei a considerar os xingamentos, os insultos, as ofensas e as falas de desqualificação vivenciados e procurei rememorar como se deram as reações a essas tramas de palavras-adjetivos-verbos no momento em que fui exposto a elas e, como em um processo de ressenti-las, continuamente, possibilitou que fossem se enxertando no corpo e desdobrando-se em gestos, posturas, comportamentos, modos de respirar, de olhar, de tensionar os ombros, de pressionar as mãos umas contras as outras, de morder os lábios, de sorrir de modo inseguro e, desse modo, compreender as coreografias desses contextos a fim de torná-las dança.

Contudo, na época, também me encontrava apaixonado pelo modo de dançar de muitos artistas que acabara de conhecer e pelas possibilidades corporais adquiridas pelo intenso treinamento proporcionado pela universidade. Quando apresentei para a comunidade universitária, a peça de dança veio atravessada por todas essas outras paixões. Não havia nada de errado com elas, mas elas não foram articuladas em consonância com a proposta e o solo acabou enveredando por caminhos que não eram os melhores para dançar aquilo que inicialmente pretendia abordar.

No entanto, vale ressaltar que a experiência de criação de modo algum constituiu um fracasso. Sob a perspectiva de aprendizado, o exercício de criação solo conferiu-me autonomia na investigação em dança, que me parece estar de acordo com a proposta pedagógica do curso de graduação em dança direcionado ao desenvolvimento do intérprete-criador, embora não signifique que esta capacidade esteja exclusivamente focada no aperfeiçoamento de artistas solo.

Em Nunca Mais Bom Crioulo, o desejo era o de explorar corporal e cenicamente a relação conflituosa gerada pela percepção que tinha sobre mim e a imagem senso comum acerca dos homens negros presente no imaginário da sociedade brasileira. Esta imagem resultava em um modo superficial, generalizado e estereotipado de olhar para as pessoas de cor negra, que se tornava uma barreira a ser transposta por esses indivíduos na realização de suas potencialidades existenciais. Impedia que fôssemos olhados como sujeitos.

Para desenvolver a proposta trazida pela peça solo, Nunca Mais Bom Crioulo, a melhor forma que acreditei ser possível trabalhar esse assunto, naquele momento, foi estabelecer um diálogo entre dança e literatura. Escolhi coreografar um diálogo entre mim e o personagem Bom Crioulo da obra homônima do escritor Adolfo Caminha (1867-1897), de 1895. Dentro dos recursos técnico-corporais em dança de que dispunha na época,

procurei elaborar gestos, movimentos e corporalidades, a partir das abundantes descrições físicas presentes no livro. A peça continha uma quantidade de materiais corporais distintos, que procurei conciliar, forjando uma costura compositiva entre eles; entretanto, a sensação particular ao final de uma série de apresentações do trabalho era a de não aprofundamento e elaboração de um vocabulário apropriado que pudesse dar conta do assunto tratado.

Observando essas peças solo, compreendi que meu impulso criativo era gerado pelo interesse de percorrer as tramas que forjavam a minha construção como indivíduo no mundo. Procurei entender qual era o modo como caminhava, os caminhos, os territórios pelos quais atravessava e como tais espaços, lugares, pessoas e contextos coreografavam meu corpo. Examinando os trabalhos, identifiquei três movimentos, que apareciam de modo recorrente nessas danças e em trabalhos realizados com outros artistas e grupos dos quais participei. Esses três movimentos eram: tremores, desequilíbrios e giros.

Entre os anos de 2013 e 2014, na plataforma Exercícios Compartilhados, coordenado por Adriana Grechi, diretora e coreógrafa do Núcleo Artérias, somente foi possível explorar as possibilidades cênico-corporais dos tremores e desequilíbrios. Os giros apareceram nos primeiros dias de investigações, mas acabaram não entrando no resultado final dessa primeira fase de estudo, porque, de certo modo, o corpo não estava preparado para articulá-los com os outros dois movimentos, e também em razão de serem elementos novos com os quaisnão sabia exatamente de que forma trabalhar e precisava daquele tempo para desenvolver um modo de explorá-los. Eu precisava construir esses modos devagar, passo a passo. Não havia uma técnica que pudesse preparar o corpo para os trabalhos com os materiais. Poderia fazer aulas de qualquer técnica de dança específica, que, certamente, proporcionariam um condicionamento físico relevante, mas nenhuma seria capaz de desenvolver as capacidades necessária para lidar com aqueles movimentos. Assim, o próprio trabalho com os materiais era o treinamento. Nesta pesquisa de mestrado, iniciada em 2015, os giros foram acrescentados na retomada da investigação, logo no primeiro dia.

Conforme segui, dia após dia, entrando em estúdio e trabalhando esses três movimentos, fui encontrando um corpo que, mais do que mover-se pelo espaço, era movido por um chão que possuía vontade própria, um chão no qual já estava escrito o roteiro esperado e que deveria ser seguido por mim.

capaz de aniquilar o corpo. O script apresentava e apresenta os lugares que devia ocupar e aqueles pelos quais era permitido circular. As falas que poderiam ser realizadas, no tom que poderiam ser pronunciadas. Mas entendi que o corpo de Sismos e Volts não estava inteiramente vulnerável aos sabores desse chão voluntarioso. Este corpo força uma negociação dos termos e elabora estratégias para romper com as coreografias preestabelecidas nesses territórios. Procurando avançar, seu trânsito é insistentemente interditado pelas erupções que rompem o chão sobre o qual trafega. Esse corpo entende que para atravessar e habitar este território, precisa dançar com o movimento do chão.

A percepção de corpo discorrida acima não é um dado novo descoberto por mim nos laboratórios de criação do solo Sismos e Volts. No desenvolvimento de seu pensamento a respeito das ideias de coreopolítica e coreopolícia, Lepecki (2011) disserta acerca das dimensões políticas da dança como prática e crítica das ideias de mobilidade livre presentes no cenário urbano das sociedades ocidentais modernas. Na linha de seu raciocínio, o autor traz para desenvolver a noção de coreopolítica a ideia de "política do chão", de Paul Carter:

P C ã ã é mais do que isto: m g m m ã b m m m m ã ã m ó . O j m g ã m m g m m m m m é ã m; m ã m m - m mbém m . é m â v b g ; g . (LEPECKI, 2011, p.47).

Como visto anteriormente no segundo capítulo, Lepecki (2011) declara que nas sociedades ocidentais desenvolvidas propagou-se a ideia ilusória de livre mobilidade em uma cena predominantemente urbana constituída por um chão liso e plano, cujo símbolo privilegiado (dessa percepção social, política e cultural) seria o automóvel. Essas sociedades produziram nos indivíduos a ideia de independência e autodeterminação por meio do imaginário de liberdade de movimento, de estabelecimento de relações, de ideias e ações em fluxo contínuo e acelerado. Desse m m m v “ m g m- mb m m é ã m â ” (LEPECKI, 2011, p. 47).

O chão liso que alimenta a ilusão de fluxo livre de indivíduos e objetos da cena urbana moderna opera no sentido de escamotear um chão político, social, econômico e cultural irregular, acidentado e frágil. Essa ideia de fluxo contínuo sem obstáculos ao

trânsito dos sujeitos e objetos da modernidade produz um tipo de dança condizente com este espaço. Para o autor, a dança em sua dimensão política em ação conjunta com a cidade pode desfazer essa miragem e propor uma "nova política do chão" (2011) capaz de renovar a potência de vida.

Quando relaciono o corpo encontrado e elaborado em Sismos e Volts oriundo das questões presentes anteriormente em Ovelhas(2008) e Nunca Mais Bom Crioulo(2012), com a questão do descentramento do sujeito a partir da perspectiva apresentada por Hall (2015) e a compreensão desse chão político que projeta tal efeito ilusório de liberdade móvel, compreendo minha propensão a enveredar em construções corporais que evidenciam sua precariedade e incompletude.

O descentramento do sujeito em Hall (2015) retira do sujeito sua autonomia absoluta em relação ao mundo no qual está envolto, e o chão político deflagrado por meio da coreopolítica apresentada por Lepecki (2011) corrobora a destituição do sujeito ao mostrar que ele não tem liberdade plena para circular pelos espaços da modernidade urbana, território acidentado e policiado. Vale lembrar que esta perspectiva de Lepecki (2011) atinge de modo certeiro a ideia da identidade dos sujeitos como uma "celebração móvel". Apesar do descentramento do sujeito e globalização crescente que deslocou as categorias de pertencimento de classe, gênero, raça, dentre outras do sujeito da pós- modernidade de Hall (2015), tal fenômeno não eliminou por completo essas categorias. Como pode também ser observado nas considerações realizadas por mim no primeiro tópico do quarto capítulo, a partir da relação que estabeleci entre Sismos e Volts e os rastejamentos de William Pope.L, as antigas categorias coexistem com as novas possibilidades de construção de identidade dos sujeitos causando embates constantes em seus desejos de mobilidade cultural, social, política e econômica. Em tempo, lembremos do tropeço de Fanon, na sociedade da igualdade, fraternidade e liberdade francesa. "Olha, um g !” … . Eu tropecei (...) (Lepecki, 2006).

Tal lógica de pensamento não deixa de evidenciar os perigos que uma(um) artista da dança engajada(o) na criação solo corre ao tratar este modo de fazer e pensar dança contemporânea como um campo de liberdade absoluta. Um território sem leis, como se estivesse passeando pelo chão liso e plano da urbanidade e fosse o sujeito autocentrado e autodeterminado, ideal da sociedade ocidental euro- estadunidense referenciada.

Por isso, o corpo que venho trabalhando é um corpo que se faz no mover-se e ser movido pelos próprio desejos em relação aos desejos dos outros. Como o poeta

Álvaro de Campos ao dizer que “somos feitos dos nossos desejos e dos desejos dos outros em relação a nós”.

Imagem 2: Sismos e Volts. Centro de Referência da Dança de São Paulo (CRDSP).

Foto: Thiago Soares. 2016.

O chão se move. O chão convulsiona. O chão esburacado. As placas tectônicas deslizam umas sobre as outras. Escavo. O vento derruba muros e arranca telhados. O chão me faz dançar. Resistir não é enrijecer. Assim você se parte. Resistir é ser flexível. Resistir é a esquiva e o golpe imprevisível do capoeirista. Resistir é rastejar como William Pope L. pelo campo minado e hostil da sociedade ocidental. Resistir é o giro realizado pelo topo da cabeça, nas pontas dos dedos, nos compartimentos corporais móveis dos bboys. O Acrobata de Pablo Picasso (Centro de Referência da Dança, São Paulo, 29 de agosto de 2016).