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4. O SOLO EM DANÇA CONTEMPORÂNEA: Um corpo em processo

4.1 Quem Sou Eu na Fila do Pão?

Eu sou de ancestralidade africana, mas eu não falo com os deuses. Eu falo com o representante da MCI [companhia telefônica]. Eu falo com a minha mãe. Eu falo com Wittgenstein, Heidegger, Terry Eagleton, Bahktin e Frantz Fanon, mas eu não falo com os deuses.

(BESSIRE, 2002, p. 72)

"Quem sou eu na fila do pão?", tem sido uma expressão recorrente, escutada durante este processo de pesquisa e, na maioria dos casos, proferida por artistas que demonstravam certo desconforto ao falar de seus próprios trabalhos, procurando escamotear as origens dos destes; muitas vezes, os trabalhos emergiam de suas experiências de vida, mesmo que tentassem se esquivar ao serem indagados a respeito. Parecia existir um medo de que um "gene egoísta" se espalhasse por seus corpos e mentes.

Nos estudos iniciais em dança, fui frequentemente encorajado a compreender e a expressar o que pulsava em mim, e a relação de tal pulsação com o contexto no qual me encontrava envolvido. Ao ouvir as preocupações desses artistas, fazia-o com certa incredulidade. Para a bailarina e coreógrafa Juliana Moraes, a questão não está em criar uma obra a partir da experiência pessoal, mas de como essa experiência é utilizada para criar dança. Por outro lado, o bailarino e coreógrafo Eduardo Fukushima diz que apesar de uma ou um artista apresentar uma dança não construída, a partir de um assunto biográfico – como podemos ver, por exemplo, em algumas das peças solo de Trisha Brown –, ainda assim, é pessoal. É o corpo da artista em cena, portanto não é possível separar sua dança de sua pessoa, mesmo que um acontecimento específico da vida da coreógrafa não esteja cenicamente em questão. Em tempo, vale recordar Berstein (2001), quando afirma ser difícil na performance solo separar o sujeito da obra, característica também válida para se pensar na criação solo em dança contemporânea. Penso que a escolha de uma(um) artista por um tipo de movimentação e as características dos materiais apresentados em cena revelam ao público, implicitamente, como esta ou este artista percebe-se e experiencia o mundo.

O solo de dança se apresenta como um momento de confronto consigo mesma(o). A criação solo demanda da(do) artista o desenvolvimento de um olhar para si, que mantenha a conexão com o mundo à sua volta e espera que a(o) artista seja capaz de perceber-se em meio às situações, lugares e pessoas com os quais estabelece relações,

no decorrer de sua trajetória de vida. Desses contextos, a(o) artista elabora sua subjetividade, que não preexiste, mas se faz na experiência cotidiana dessa capacidade relacional.

A citação que abre este capítulo refere-se ao artista visual estadunidense William Pope.L. e pode ser encontrada na obra de Lepecki (2006) no quinto capítulo, intitulado "Stumbling dance: William Pope.L's crawls" (Dança Tropeçante: rastejamentos de William Pope.L), ou no livro que trata exclusivamente do trabalho do artista e que carrega no título seu nome, do autor Mark H.C. Bessire (2002).

O trabalho de Lepecki (2006) procura dar conta de uma nova política do movimento em formação na dança contemporânea; para tanto, reserva um capítulo no qual versa a respeito da série de performances realizadas pelo artista: crawls, traduzida como "rastejamentos", cuja proposta do artista é lidar com a questão de como locomover-se após Frantz Fanon ter tropeçado no assombro do menino europeu que, apontando-lhe o dedo, grita: "Olha, um g !” … . Eu tropecei (...) (LEPECKI, 2006).

O primeiro contato que tive com o texto de Lepecki (2006), acerca do trabalho performático de William Pope.L, ocorreu no período de realização do meu trabalho de conclusão de curso de graduação em dança da Unicamp, apresentado pela professora e orientadora na época, Holly Cavrell47. O texto em inglês, a falta de conhecimento profundo do idioma e o estágio de maturidade do período foram impeditivos na percepção daquilo que estava sendo depositado em minhas mãos. Passaram-se, aproximadamente, quatro anos depois desse primeiro encontro para que eu tivesse a oportunidade de reencontrar o texto e pudesse elaborar as relações apresentadas nesta pesquisa.

Esse texto chegou após uma considerável parte da pesquisa ter sido realizada, mas conversou de tal modo com tudo o que havia sido trilhado, que não era possível ignorar seu impacto e forte conexão com o trabalho desenvolvido, tendo-se tornado uma referência importante.

Desse modo, gostaria de protagonizar uma situação de apropriação da fala de Pope.L., Com a finalidade de tentar responder, neste tópico do quarto capítulo, quem sou eu na fila do pão?, assim como, o artista visual e performer, eu sou de ancestralidade africana, mas eu não falo com os deuses. Eu falo com a NET, empresa de telecomunicações que oferece serviços de telefonia fixa, acesso à internet e também a

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Professora Doutora do curso de graduação em Dança da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Foi discípula direta de Martha Graham e desenvolveu trabalhos em dança em diversos países até se estabelecer no Brasil.

canais de TV por assinatura. Eu falo com minha mãe adotiva, branca e de origem italiana, ou com meu tio negro e testemunha de Jeová48. Eu falo com Laurence Louppe, Stuart Hall, André Lepecki e William Pope.L, dentre outros pensadores, artistas, pessoas das mais diferentes áreas do conhecimento, profissionais e estilos de vida distintos.

Meu início nos estudos em dança, deu-se em aulas que partiam de abordagens de danças e manifestações populares brasileiras como o jongo, a capoeira e as folias de reis, dentre outras, por meio das quais os alunos se preparavam e extraíam materiais cênicos-corporais para a criação artística. Paralelamente, estava envolvido com grupos de militância pelos direitos e combate à discriminação de travestis, transexuais, lésbicas, bissexuais e gays, assim como, frequentava um cursinho popular do sindicado dos metalúrgicos, cujo corpo discente era majoritariamente composto por indivíduos oriundos de camadas sociais economicamente desfavorecidas.

Ao ingressar no curso de dança, do Instituto de Artes da Universidade de Campinas, segui no engajamento em processos que privilegiavam as manifestações populares brasileiras, como fonte de recursos técnicos e poéticos para a criação em dança. Com o tempo, percebi uma certa restrição dessas práticas na abordagem de algumas inquietações que me tomavam à época e, desse modo, decidi realizar um desvio de rota.

A partir daquele momento, passei a procurar modos de fazer e pensar dança que pudessem conciliar os diferentes interesses que ocupavam minhas preocupações poéticas, estéticas e técnicas da época.

Trazer a ideia de descentramento do sujeito, em Hall (2015), para esta pesquisa, me parece muito revelador e, de certa forma, algo esperado quando se pensa no percurso investigativo trilhado até este momento. De modo que, somente com a bagagem atual, posso fazer tais reflexões, me pergunto se não há um atrito entre as antigas concepções das identidades dos sujeitos e as novas, surgidas nos sucessivos processos de fragmentação da cultura ocidental hegemônica e, que, em certa medida, esse atrito afeta e inflige uma transformação dos conhecimentos, pensamentos e práticas presentes em nossas instituições.

No capítulo acerca da observação de contextos da dança contemporânea independente da cidade de São Paulo, discorri a respeito da série de acontecimentos que

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Testemunhas de Jeová é uma linha religiosa cristã, que acredita em Deus, o chamando de Jeová. Seus devotos são reconhecidos pela obstinada capacidade de evangelização, tendo dias específicos dedicados à visitação de casas para falar a respeito de suas crenças e trazer adeptos para sua religião.

vinham reconfigurando esse cenário, no mesmo momento em que me encontrava mergulhado na escrita desta dissertação. Um desses acontecimentos, ocorrido no ano de 2013, tratava-se da reivindicação de grupos artísticos de comunidades periféricas e economicamente desfavorecidas da cidade, da contemplação de seus trabalhos artísticos pelo edital de Fomento à Dança. Tal reinvidicacão era justificada pela, dentre outras questões, denúncia de que o edital discriminava trabalhos elaborados a partir de matrizes de danças e manifestações africanas e afrobrasileiras, favorecendo danças conectadas às concepções e modos de fazer europeus e estadunidenses.

Embora esses grupos tenham levantado uma série de questões importantes, estas não terão a oportunidade de serem melhor observadas pela presente pesquisa, pois no que eu gostaria de focar é o atravessamento provocado em mim, por esses acontecimentos, enquanto artista da dança.

Além de estar envolvido em uma sociedade euro-estadunidense referenciada, que constantemente envia informações de como eu, a partir de minha identidade étnica, devo conduzir a arte que se espera que eu faça, de modo que eu possa representar, em certa medida, todo um grupo racial. Agora, diante dos acontecimentos testemunhados na cena da dança contemporânea paulistana, eu me deparava com grupos pertencentes a mesma identidade étnica que a minha, que a partir daquele momento, também diriam como a arte produzida por pessoas com essa identidade deveriam articular seus trabalhos na cena da dança contemporânea independente da cidade de São Paulo. Essa convergência de acontecimentos trouxeram as mesmas questões que me tomaram na época da graduação em dança e que foram responsáveis pela minha mudança de rota. Quem sou eu, e, a partir disso, como a arte produzida por mim poderia ser construída?

Retomando o meu desvio de rota, realizado na universidade, percebo que a atitude tomada naquele período, me parece, hoje, relacionada ao fato de que existe uma idealização a respeito de certos sujeitos e, de que também há determinada expectativa de que tais idealizações sejam confirmados na arte produzida por eles. Talvez esse atrito aconteça, porque a incursão desses indivíduos, nas instituições produtoras de conhecimento, ciência e arte, como sujeitos de fala (de dança), seja recente e, porque anteriormente, tais sujeitos constituíam objetos a serem estudados nesses espaços. Repentinamente, eles não estavam mais nessa posição, em alguma comunidade geográfica e temporalmente distante, guardiões da essência de uma nação a ser resgatada e preservada.

Pensando hoje, naquela época de desvio de rota realizada na graduação em dança, não vejo sentido em me tornar mais aquilo que eu já sabia que eu era, por isso, a citação de William Pope.L, pessoalmente, faz muito sentido para o momento atual que vivencio na cena da dança contemporânea paulistana: eu sou de ancestralidade africana, mas eu não falo com os deuses. Mesmo que eu não fale com os deuses isso não me faz menos negro.

Essa reflexão não é uma rejeição do valor e da necessidade do ensino das danças e manifestações de matrizes populares brasileiras ou afro-brasileiras e da sua potencialidade na criação artística em dança. O que eu coloco em questão é a percepção deste lugar como o único lugar de existência e produção artística de uma(um) indivíduo negra(negro).

De modo mais acentuado, as questões envolvendo as negritudes, de gênero, acerca das masculinidades e feminilidades, e também acerca das sexualidades pautaram desde cedo, consideravelmente, boa parte da minha produção em dança até o momento, mas não exclusivamente e nem sempre de modo evidente. Embora esses assuntos sejam recorrentes e tenham sido dançados por muitos artistas, de modos menos ou mais bem- sucedidos, a percepção que tenho deles se modificou com o tempo e não somente a partir de uma visão pessoal, mas porque se transformaram em um contexto mais amplo, cultural, social, político e econômico no qual estou envolto e procuro tramar um modo próprio de dançar.

Os temas de interesse modificaram-se em virtude de minha caminhada nos territórios da dança cênica contemporânea paulistana que traz, por sua vez, uma demanda de questões próprias que agem sobre meus interesses particulares e, consequentemente, as reconfiguram sugerindo possibilidades de abordagens e, até mesmo, sabotando outras. Estou desautorizado a ignorar tais forças, sendo constantemente desafiado a lidar com elas.

Nas primeiras observações que realizei, sobre minha trajetória artistica até este momento, identifiquei que o trajeto realizado, até então, evidenciava uma incursão insistente pelas tramas que vinham forjando minhas corporeidades, movimentos, gestos e comportamentos, ao longo dos anos, percorrendo estradas que atravessavam diferentes territórios em instâncias micro e macropolíticas, sociais, culturais e até mesmo econômicas. Penetrando camada por camada, das escolhas e das direções artísticas tomadas, procurei fazer um levantamento das coreografias e danças que naqueles lugares se apresentavam. A questão: o que te move?, é uma pergunta escutada em

grande parte dos lugares da cena da dança independente, da cidade de São Paulo, pelos quais transito. Em minha percepção, essa questão parece ter um caráter processual. É necessário fazer tal pergunta a mim mesmo, periodicamente, como uma forma de afinação do percurso.

No exercício de observar mais atentamente a questão, parece-me plausível trazer como resposta à questão: o que me move?, uma nova pergunta extraída do título de uma entrevista com a filósofa estadunidense Judith Butler, realizada em 1998, chamada: "Como os corpos se tornam matéria: entrevista com Judith Butler"49, a qual aconteceu no Departamento de Estudos da Mulher, na Universidade de Ultret, na Holanda. Contudo, apesar do apreço pela obra científica produzida pela filósofa, ao me apropriar de parte do título da entrevista, por ela concedida como forma de responder à questão “ que me m v ?” tal indagação se converte em elemento propulsor na criação em dança.

Realizando um deslocamento da questão para área de conhecimento da dança, faço por motivos outros, que de modo algum se tratam de transpor o arcabouço teórico desenvolvido por Butler (1998) para a dança. Pelo contrário, tal questão redimensiona os temas que usualmente conduzem minhas criações e práticas em dança contemporânea e, desse modo, me fazem indagar: Como as negritudes se tornam matéria? Como as masculinidades e feminilidades se tornam matéria? E esse mecanismo denuncia que meu entendimento acerca de tais questões é de que elas são construídas pelos e nos processos de elaboração culturais, econômicos, sociais, políticos e religiosos presentes em diferentes épocas do desenvolvimento das sociedades.

A questão deslocada para a dança contemporânea “C m os corpos se tornam m é ?” faz emergir outros questionamentos. As perguntas que me faço, durante o processo de investigação, são respondidas com outras perguntas, que vão desvelando o que está pulsando, de fato, no momento. Como meu corpo se torna matéria? Como nossos corpos se tornam matéria? Como os corpos se tornam matéria na dança? Como os corpos negros se tornam matéria na sociedade brasileira? Como os corpos masculinos

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Publicado originalmente como "How Bodies Come to Matter: An interview with Judith Butler", em Signs: Journal of Women in Culture and Society, v. 23, n. 2, p. 275-286, 1998. © 1998 by The University of Chicago Press. Traduzido para o português com permissão da University of Chicago Press. Segundo explicação presente na entrevista, que pode ser conferida em nota: "O verbo matter significa importar, ser importante. O substantivo matter significa matéria, substância ou assunto, trazendo portanto ao título conotações de concretude ou materialidade." Esta nota está relacionada ao seguinte trecho da entrevista: "O trocadilho de seu título é muito feliz: "bodies that matter" ao mesmo tempo se materializam adquirem significado e obtém legitimidade. Corpos que não importam são corpos 'abjetos'. Tais corpos não são inteligíveis (um argumento epistemológico) e não tem uma existência legítima (um argumento político ou normativo). Daí, não conseguem se materializar" (MEIJER; PRINS, 2002, p. 160).

se tornam matéria? E assim consecutivamente.

A exemplo dos pensamentos de Butler (1998), entende-se nesta pesquisa que tornar-se matéria é tornar-se legível, tangível pelas capacidades perceptivas das pessoas. Fazer tais questionamentos, no território da dança, não tem como finalidade o desejo de desvendar uma suposta "verdade" que possa estar encoberta, mas revela o desejo de transitar pelas tramas sociais, culturais, políticas, econômicas, que se embrenham pelas carnes, ossos, peles, nos órgãos, orifícios, colorações, líquidos, odores, posturas, gestos, sonoridades, pensamentos e outros lugares recônditos do corpo. E, desse trânsito, torna- se possível liberar outras forças coreográficas e danças, nesses lugares encerrados.

O processo criativo solo relatado e discutido a seguir foi elaborado a partir da observação e reflexão a respeito de dois trabalhos realizados anteriormente: Ovelhas(2008) e Nunca Mais Bom Crioulo (2010) que se desdobrou na estudo chamado Sismos e Volts que teve início no ano de 2013. A escolha para esta pesquisa foi pela continuidade do processo iniciado anteriormente, retomando a partir de onde a investigação foi interrompida, o que se mostrou uma decisão coerente com a trajetória que culminou na presente pesquisa de mestrado.

Não sou um proeminente solista na cena da dança contemporânea paulista, mas, longe dos holofotes do circuito artístico oficial, forjei algumas peças solos e reencontro este formato em um momento de vida no qual tenho me perguntado: para onde ir agora? A resposta foi procurar um isolamento para pensar e questionar, não somente como atividade intelectual, mas por meio da prática em dança, colocando o corpo todo na realização dessa jornada.