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3. O DESCENTRAMENTO DO SUJEITO

3.2 Manifestações e invenções de presença

A presença de uma ou um artista em cena tem sido assunto frequentemente pautado em certos círculos da dança contemporânea. Percebem-se esforços para circunscrevê-la a uma dimensão compreensível e, assim, elaborar meios de acessá-la, atitude que, por vezes, demonstra grande propensão a enveredar por lógicas redutoras da questão.

Louppe (2007) questiona-se sobre a possibilidade de discutir acerca de presença. A autora avalia que cada artista, e ou, pensador da cena artística tem um olhar muito próprio do que significa e como se deve trabalhar a presença. Desse modo, a partir das referências com as quais trabalha, a autora identifica alguns modos de ver e pensar presença, como por exemplo Presença-Suspeita, Presenças Dispersas ou Presença Nikolais.

A presença é plural segundo a história do sujeito-actante, seus aprendizados, suas experiências. Mas, mais uma vez, esse "estado de presença" não vem de outro mundo: ele é conduzido por um trabalho específico que requer um conjunto de favores colocados em jogo e cuja combinatória leva a um certo tipo de emprego de si. O mais importante seria tomar essa consciência na observação dos fenômenos ligados às presenças dos sujeitos num espaço de apresentação (LOUPPE, 2007, p.77).

Em consonância com o percurso traçado a partir do desdobramento da declaração de Louppe (2012), em que diz ser o solo o modo de fazer e pensar dança que melhor veicula o projeto da dança contemporânea, faz-se oportuno lembrar a respeito de alguns argumentos tecidos pela própria autora, que podem se tornar ideias-chave para desenhar o entendimento de presença nesta pesquisa. A pesquisadora coloca a questão do envolvimento do indivíduo na obra, no momento da cena, como assunto fundamental da criação solo. Esse dado pode ser observado no seguinte trecho de seu trabalho:

[...] compreende-se que o jovem bailarino de hoje tenha herdado uma ferramenta inestimável para explorar o que se designa por <<presença>>, nomeadamente, o laboratório por excelência cujo exercício é o solo. A presença como um acto de envolvimento na identidade do momento presente e na matéria do <<eu>> em relação ao mundo é uma prática específica e muito invejada da dança contemporânea (LOUPPE, 2012, pp.296- 297).

Louppe confere ao solo o status de laboratório do ser e do movimento, ou seja, um lugar de experiência e labor do sujeito. Sinaliza com a declaração acima que a presença é algo aprendido, que pode e deve ser investigado.

Com base na reflexão feita pela autora, é possível observar, extraída da experiência da bailarina e coreógrafa Juliana Moraes, como a artista entende e trabalha presença em sua obra:

Para os meus trabalhos eu crio estratégias, como as minhas coreografias são partituradas, mas não são lineares, eu tenho que usar essa partitura no tempo presente, se eu não estou muito presente em cena, eu não faço nada, porque eu não sei se eu vou para a direita, se eu vou para a esquerda, se eu olho para cima, se eu olho para baixo, então esses trabalhos forçam uma sensação de realidade muito grande. Mas eu coreografo muito isso, às vezes com exaustão, às vezes com algum exercício que é interno para mim, que eu não conto para o público, mas que me mantém atenta, muito presente. Mas acho que também há uma certa hipervalorização do "momento presente", quase como um fetiche, não sei se precisa (Juliana Moraes, em entrevista concedida para esta pesquisa).

Por sua vez, o bailarino e coreógrafo Eduardo Fukushima apresenta leitura diferente, relacionando presença à repetição:

Acho que a presença se faz no ato da repetição de algo, acho que a coisa fica forte quando se repete e, então, tem um tempo e histórico de apresentar outras camadas. Acho que a presença se faz nesse ato do artista repetir, mesmo (Eduardo Fukushima, em entrevista concedida para esta pesquisa).

Louppe (2007) extrapola as dimensões acerca do entendimento de presença na criação solo, quando adentra os modos de ver e de pensar presenças particulares de certos artistas e pensadores. Uma perspectiva importante das presenças elencadas pela autora a ser observada é a de presença como força não irradiada exclusivamente pelo corpo que dança, mas refletida e redimensionada pelo e no público que testemunha a dança de um corpo. Na "Presença-Olhar", a pesquisadora destaca a importância do público na manifestação da presença de um corpo dançante, enquanto acontecimento, como agente ativo e não meramente receptor dessa força.

A questão da presença também retoma o olhar do espectador ou do crítico de dança (público especializado, mas não necessariamente o melhor). A noção de presença na troca com o olhar do outro encontra uma nova dimensão, senão um novo estatuto: ela não está presa ao ser que atua. Ela está no “ - ” de uma relação que se estabelece, e a noção de presença-troca nunca para de atravessá- la em todos os sentidos. O espectador é convidado à presença. Ele se encontra no vaivém dessa relação que implica sempre sujeitos atores-receptores

(LOUPPE, 2007, p.78).

Corroborando a ideia de que o público é parte da produção de presença de um corpo dançante, Ferracini (2015) apresenta um entendimento do funcionamento da presença, como força não depositada exclusivamente nas capacidades físicas e expressivas da(do) artista, a(o) qual decidiu chamar de atuante, na geração de signos ou na procura de capturar a atenção do público. O autor afirma que:

m ã é g m m m dos signos que esse corpo produz, na capacidade de reter uma determin ã m g ã m ó dos espectadores. ã âmica “entre” m . ã é ã ou atributo de um elemento ó m ã ã m m m m g m ã b ncia (FERRACINI, 2015, p.2).

Desse modo, percebe-se o caráter oscilante e engendrado por diferentes fatores no que diz respeito à presença. Portanto, faz sentido quando Louppe (2007) se questiona sobre o benefício de discutir acerca de presença. Entretanto, ao apontar para o papel ativo do espectador na produção da presença de um ou uma artista em cena, a autora provoca uma descentralização do sujeito no solo de dança.

Partindo de minha experiência na plataforma Exercícios Compartilhados45, a orientadora do programa, Adriana Grechi, tinha o entendimento da presença como algo estabelecido, também na relação da(do) artista com o público, o que a levava a questionar, nós os participantes da plataforma, sobre o modo como cada uma(um) escolhia apresentar seu trabalho. Por meio das falas de Adriana Grechi, também conclui que a presença para ela era gerada a partir daquilo que chamava de "equalização das forças motoras, pulsionais e sensoriais" do corpo em cena, na ativação das

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Exercícios Compartilhados é uma plataforma de pesquisa e criação em dança concebido e orientado por Adriana Grechi, diretora do grupo de dança Núcleo Artérias, da cidade de São Paulo. Plataforma conta com uma média de 18 artistas que desenvolvem pesquisas individuais ou em parcerias, além de contar com a provocação de artistas e pensadores experientes da dança contemporânea brasileira e internacionais como o coreógrafo Alejandro Ahmed, a dramaturgista e professora Rosa Hercoles e o coreógrafo marroquino Taufiq Azzediou, por exemplo.

corporeidades, gestos e movimentos. Equalizar seria uma interação dessas forças em cena, encontrada e acessada em cena por cada artista. Essa equalização não parecia implicar na ideia de equilíbrio, mas de geração de uma força cênica capaz de mover interna e externamente com o e pelo espaço, lugar e público.

Retomando a percepção a respeito de presença apresentada por Ferracini (2015), o autor fala dessa interação de elementos produtores de presença, enquanto contágio e contaminação, em que a(o) artista em cena se dispõe a ser afetado pelo outro e, desse modo, gerar afeto a partir dessa afetação nela ou nele provocado. A partir desse pensamento, o pesquisador nomeia tal capacidade como uma "escuta-ação" ou, como propõe, uma "escutação".

O m v m m m g âm : Como compor afetiva-mente (capaci é v m x v m m m m m - v mbém é g m ã da vontade? Como dinamizar ess ão?

(FERRACINI, 2015, p. 3).

Para esta pesquisa, o cenário que se desenha para um entendimento sobre presença é a de uma força que depende da convergência de diferentes fatores, tanto do engajamento do sujeito naquilo que se propôs a investigar e abordar em criação solo de dança, quanto da capacidade desse trabalho de se conectar com o público e deste com a obra. Sempre levando em conta que a presença nunca será percebida de igual modo por cada inviduo de uma plateia. Também fica exposta, pelos pensamentos apresentados, a presença como algo a ser trabalhado a partir de técnicas próprias com a finalidade de auxiliar a(o) artista na geração dessa força.

Mas Louppe (2012) deixa uma lacuna, quando declara que a presença do sujeito se revela no movimento, a pesquisadora estaria afirmando que uma dança só acontece por meio de movimento? E todos os deslocamentos realizados pela dança desde então, que incluíram o silêncio, a pausa ou o movimento extremamente lento? O que Louppe (2012) diria sobre o solo Vestígios da dançarina e coreógrafa brasileira Marta Soares46,

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Marta Soares é bailarina e coreógrafa da dança contemporânea independente de São Paulo. Seus trabalhos tem como questão condutora a impossibilidade de dançar. No solo “V g ” a artista realizou uma pesquisa em cemitérios indígenas na região de Laguna, em Santa Catarina. A obra entrelaça dança, artes visuais(vídeo e instalação) e performance. Disponível em: <http://www.agendadedanca.com.br/bailarina-e-coreografa-marta-soares-apresenta-retrospectiva-de-

em que a artista permanece a peça inteira deitada sobre uma grande placa de pedra, soterrada por areia e partes de seu corpo vão sendo reveladas, à medida em que o vento, provocado por um ventilador, vai removendo a areia que cobre seu corpo? A autora preenche essa lacuna ao discutir a respeito da ideia de presença implicada em uma peça de Trisha Brown, naquilo que ela chamou de Imobilidade Browniana. Na peça For MG: the movie, a autora relata a presença contrastante entre um dançarino, que permanece imóvel, durante todo o desenrolar da dança, enquanto outras dançarinas e dançarino se movimentam ao seu redor. Desse modo, para Louppe (2007), o dançarino imóvel se torna um eixo central em torno do qual a coreografia se arvora e para o qual o público tem seu olhar atraído como um imã. Também, nesse exemplo, a autora chama a atenção para a importância do olhar do público e como este influi nas obturações, força presencial instaurada pela tríade: dançarino imóvel, dançarinas e dançarinos moventes e público observador.

4. O SOLO EM DANÇA CONTEMPORÂNEA: