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Como a matemática pode ajudar você a entrar no Guinness dos recordes?

No documento Os mistérios dos números (páginas 156-163)

Há muitos jeitos malucos de você entrar para o Guinness. Um contador italiano, Michele Santelia, entrou por datilografar 64 livros de trás para a frente (3.361.851 palavras, 19.549.382 caracteres) em seus idiomas originais. Os livros incluíam A Odisseia, Macbeth, a vulgata da Bíblia e o Guinness World Records de 2002. Ken Edwards, de Glossop, Derbyshire, detém o recorde mundial de comer mais baratas em um minuto — 36 baratas —, e o americano Ashrita Furman levou doze horas e 27 minutos a

fim de abrir caminho para o livro dos recordes saltando com um pogostick uma distância recorde de 37,18 quilômetros. Ele detém também o recorde de bater o maior número de recordes! Mas será que a matemática pode ajudar você a conquistar um lugar no Hall da Fama Guinness dos Recordes?

Um dos desafios que vem sendo acompanhado pelo Guinness desde 1961 é visitar todas as estações do sistema de metrô de Londres no menor tempo possível. O desafio chama-se Tube Challenge — o Desafio do Tube, apelido do metrô londrino. O recorde, batido no fim de 2009, é de 6h44min16seg, e coube a Martin Hazel, Steve Wilson e Andi James, em 14 de dezembro. Alguns podem considerar que essa é uma busca trabalhosa, mas se você quiser tentar bater o recorde, então uma análise matemática do mapa metroviário poderia lhe dar alguma vantagem, servindo-lhe de ajuda para divisar a menor rota, garantindo que você passe por todas as estações ao menos uma vez.

O Tube Challenge não é o primeiro desse tipo. Ele é a versão mais complicada de uma brincadeira que costumava ser feita no século XVIII, na cidade prussiana de Königsberg. O rio Pregel tem dois braços que correm em torno da ilha central da cidade antes de se juntar, seguindo para oeste, e desaguar no Báltico. Durante o século XVIII, havia sete pontes sobre o Pregel, e virou passatempo de domingo entre os moradores da cidade ver se conseguiam achar um jeito de cruzar todas as pontes uma vez, e somente uma vez. Ao contrário do Tube Challenge, a questão não era velocidade, mas se havia a possibilidade de completar o roteiro. Todavia, por mais que tentassem, sempre descobriam que havia alguma ponte pela qual não passavam. Aquela seria, de fato, uma missão impossível. Ou haveria alguma rota que os moradores ainda não tinham percorrido e segundo a qual passariam pelas sete pontes?

A questão afinal foi resolvida por Leonhard Euler, o matemático suíço que havia apresentado o problema dos quadrados greco-latinos, na época em que lecionava na Academia de São Petersburgo, cerca de 800 quilômetros a nordeste de Königsberg. Euler deu um importante salto conceitual. Percebeu que as efetivas dimensões físicas da cidade eram irrelevantes: o que importava era como as pontes estão interligadas (o mesmo princípio se aplica ao mapa topológico do metrô de Londres). As quatro regiões de terreno ligadas pelas pontes de Königsberg podem ser condensadas, cada uma, em um ponto, e as pontes são as linhas que

conectam os pontos. Isso dá um mapa das pontes de Königsberg que é como um mapa do metrô de Londres muito mais simples (Figura 3.13).

FIGURA 3.13

O problema de saber se existe uma rota que passe por todas as pontes resume-se, então, a perguntar se é possível fazer um traço sobre o mapa sem levantar a caneta do papel e sem passar duas vezes pela mesma linha. Da nova perspectiva matemática de Euler, ele viu que, de fato, era impossível cruzar todas as sete pontes uma vez, e somente uma vez.

Então, por que é impossível? Quando se desenha o mapa, cada ponto visitado durante a viagem deve ter uma linha chegando nele e outra linha saindo dele. Se você visitar esse ponto outra vez, terá atravessado outra

“ponte” para chegar e atravessará outra “ponte” para sair. Então, deve haver um número par de linhas ligadas a cada ponto, exceto no início e no fim da viagem.

Se olharmos a planta das sete pontes de Königsberg, veremos que em cada um dos quatro pontos há um número ímpar de pontes se encontrando

— e isso nos diz que não há rota pela cidade que atravesse cada uma das pontes apenas uma vez. Euler levou sua análise adiante. Se o mapa tiver precisamente dois pontos com um número ímpar de linhas saindo dele, então é possível fazer o traçado sem tirar a caneta do papel e sem passar duas vezes em cima da mesma linha. Para fazer isso, é preciso começar em um dos pontos com número ímpar de linhas saindo e ter como objetivo terminar no outro ponto com número ímpar de linhas.

FIGURA 3.14: O teorema de Euler implica que é possível desenhar este mapa sem tirar a caneta do papel e sem passar duas vezes sobre a mesma linha.

Existe outro tipo de mapa no qual é possível seguir o que os matemáticos agora chamam de trajeto euleriano, aquele em que cada ponto tem um número par de linhas saindo dele. Num mapa desse tipo você pode começar onde bem entender, porque o trajeto precisa começar e terminar no mesmo ponto, formando um ciclo fechado. Mesmo que você tenha dificuldade de identificar o trajeto, o teorema de Euler afirma que, se o mapa é de um dos dois tipos que descrevi, deve haver um trajeto euleriano.

Esse é o poder da matemática: muitas vezes ela pode lhe dizer que algo deve existir sem que você tenha de construí-lo.

Para provar que o trajeto existe, lançamos mão de uma arma clássica no arsenal matemático: a indução. É o que eu faço para superar meu medo de altura quando subo em escadas altas ou faço rapel em cachoeiras: dar um passo de cada vez.

Comecemos imaginando que sabemos como desenhar todos os mapas com certo número de traços sem levantar a caneta do papel. Mas agora deparamos com um mapa que tem um traço a mais que aqueles encontrados até agora. Como saber se ainda é possível desenhar esse novo mapa?

Digamos que o mapa tenha dois pontos com número ímpar de traços saindo deles, e chamemos esses pontos de A e B. O truque é remover um dos traços de um desses dois pontos. Então vamos remover um traço que vai de B para outro ponto C. Este novo mapa, com um traço removido, ainda tem só dois pontos com número ímpar de traços saindo: A e C. (B agora tem um número par de traços, porque acabamos de remover um; C agora tem um número ímpar, porque removemos o traço que o ligava a B.) O novo mapa agora é pequeno o bastante para ser desenhado, com um

trajeto que sai de A e acaba em C. O mapa maior agora também é simples de desenhar: basta unir C a B, adicionando o traço que removemos antes.

Bingo!

Há algumas variações que precisamos analisar. Por exemplo, e se há apenas uma linha que sai de B e o liga a A, de modo que A e C sejam o mesmo ponto? Mas podemos ver que na essência da prova de Euler está a bela ideia de elaborar, passo a passo, por que um trajeto euleriano é possível. Assim como ao subir uma escada, degrau por degrau, posso usar esse truque para achar meu caminho, por maior que seja o mapa que tenha pela frente.

Para constatar o poder do teorema de Euler, desafie um amigo a desenhar o mapa mais complicado que quiser. Então, simplesmente contando os pontos onde um número ímpar de linhas se encontram, graças ao teorema de Euler, você pode dizer, imediatamente, se é possível desenhar o mapa sem tirar a caneta do papel e sem passar duas vezes sobre a mesma linha.

Recentemente fiz uma peregrinação a Königsberg, que foi rebatizada de Kaliningrado após a Segunda Guerra Mundial. A cidade ficou irreconhecível em relação aos tempos de Euler — foi devastada pelos bombardeios dos Aliados. Mas três das pontes pré-guerra ainda estavam no lugar: a ponte da Madeira (Holzbrücke), a do Mel (Honigbrücke) e a Alta (Hühe Brücke). Duas das pontes haviam desaparecido completamente: a ponte das Vísceras (Küttelbrücke) e a dos Ferreiros (Schmiedebrücke). As pontes restantes — a ponte Verde (Grüne Brücke) e a dos Mercadores (Krämerbrücke) —, embora destruídas durante a guerra, foram reconstruídas para sustentar um enorme elevado de pista dupla que passa por cima da cidade.

FIGURA 3.15: As pontes de Königsberg no século XVIII.

FIGURA 3.16: As pontes de Kaliningrado no século XXI.

Uma nova ponte ferroviária, que pode ser usada também por pedestres, agora une as duas margens do Pregel a oeste da cidade, e uma nova ponte, exclusiva para pedestres, chamada ponte do Kaiser, permitiu-me fazer a mesma travessia que se fazia na antiga ponte Alta. Sempre matemático, meu pensamento imediato foi se eu podia fazer a viagem pelas pontes de hoje com o espírito do desafio do século XVIII.

A análise matemática de Euler me disse que, se houvesse exatamente dois lugares com número ímpar de pontes saindo, haveria um trajeto euleriano: começaria em um dos pontos de número ímpar e terminaria no outro. Verificando a planta das pontes atuais de Kaliningrado, descobri que a viagem é de fato possível.

A história das pontes de Königsberg é importante porque deu aos matemáticos um novo modo de encarar a geometria e o espaço. Em vez de se interessar por distâncias e ângulos, a nova perspectiva concentrava-se em como as formas são interligadas. Foi o nascimento da topologia, um dos ramos da matemática mais influentes dos últimos cem anos, e que foi

explorado no Capítulo 2. O problema das pontes de Königsberg deu origem à matemática que hoje faz funcionar os modernos mecanismos de busca na internet, como o Google, que procura maximizar a forma de se navegar nas redes. E é útil até para planejar o jeito mais eficaz de navegar pelas estações do metrô de Londres, se você ficar tentado a encarar o Tube Challenge.

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