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Como ver em quatro dimensões

No documento Os mistérios dos números (páginas 99-105)

Ainda posso me lembrar da agitação que senti a primeira vez que

“enxerguei” em quatro dimensões, aprendendo a linguagem que me permitiu conjurar essas formas no meu olho mental. Ver em quatro dimensões é confiar em seus olhos. Como Descartes costumava dizer: “Percepções

sensoriais são decepções sensoriais.”

FIGURA 2.35: Rearranje as peças, e a área parece ter diminuído em uma unidade.

Embora a segunda figura seja simplesmente composta das formas da primeira rearranjadas, a área total parece se reduzir de um quadrado. Como pode ser? Isso acontece porque, embora as hipotenusas dos dois triângulos pequenos pareçam alinhadas, na verdade formam ângulos ligeiramente diferentes, o suficiente para que, quando rearrumados, façam parecer que perdemos uma unidade de área.

Para lidar com o problema da percepção, Descartes criou um poderoso dicionário que traduz geometria em números, e agora estamos familiarizados com ele. Quando procuramos uma cidade no atlas, descobrimos que ela é identificada por uma grade localizadora, composta de dois números. Esses números especificam nossa localização norte-sul e leste-oeste a partir de um ponto no equador que está diretamente ao sul de Greenwich, em Londres.

Por exemplo, Descartes nasceu numa cidade na França chamada…

Descartes (embora, na época em que ele nasceu, o nome fosse La Haye, em Touraine), que fica numa latitude de 47°N e longitude 0,7°L. No dicionário de Descartes, sua cidade natal pode ser descrita por duas coordenadas: (0,7;

47).

Podemos usar processo similar para descrever formas matemáticas. Por exemplo, se quero descrever um quadrado em termos do dicionário de

coordenadas, posso dizer que ele é uma forma com quatro vértices localizados nos pontos (0,0), (0,1), (1,0) e (1,1). Cada aresta corresponde à escolha de dois vértices cujas coordenadas diferem em uma posição. Por exemplo, uma das arestas corresponde aos dois pares de coordenadas (0,1) e (1,1).

O mundo plano bidimensional precisa apenas de duas coordenadas para localizar cada posição, mas, se também quisermos incluir a altitude em relação ao nível do mar, é possível acrescentar uma terceira dimensão.

Necessitaremos também dessa terceira coordenada se quisermos descrever nesses termos um cubo tridimensional. Os oito vértices do cubo podem ser descritos pelas coordenadas (0,0,0), (1,0,0), (0,1,0), (0,0,1), (1,1,0), (1,0,1), (0,1,1) e, finalmente, o ponto mais distante do primeiro vértice, localizado em (1,1,1).

Mais uma vez, uma aresta consiste em dois pontos cujas coordenadas diferem em exatamente uma posição. Se você olha um cubo, pode facilmente contar quantas arestas ele tem. Mas se não tivesse essa imagem, bastaria contar quantos pares de pontos existem diferentes de uma só coordenada. Tenha isso em mente quando passarmos para uma forma em que não há figura.

O dicionário de Descartes tem formas e geometria de um lado; do outro, números e coordenadas. O problema é que o lado visual se esgota quando tentamos ir além de formas tridimensionais, pois não há uma quarta dimensão física na qual possamos ver formas de dimensão superior. A beleza do dicionário de Descartes é que o segundo lado simplesmente vai seguindo adiante. Para descrever um objeto quadridimensional, basta adicionar uma quarta coordenada que acompanhe para onde estamos nos movendo nessa nova direção. Assim, apesar de não poder jamais construir fisicamente um cubo quadridimensional, utilizando números posso descrevê-lo com exatidão. Ele tem dezesseis vértices, começando em (0,0,0,0), estendendo-se a pontos em (1,0,0,0) e (0,1,0,0) e chegando até o ponto mais distante (1,1,1,1). Os números são um código para descrever a forma, e posso usar esse código para estudar a forma sem precisar vê-la fisicamente.

Por exemplo, quantas arestas tem esse cubo quadridimensional? Uma aresta corresponde a dois pontos em que uma das coordenadas é diferente.

Em cada vértice juntam-se quatro arestas, correspondendo à variação de cada uma das quatro coordenadas, uma de cada vez. Isso nos dá 16 × 4 arestas — certo? Não, pois contamos cada aresta duas vezes: uma no vértice

de onde ela emerge e outra no vértice onde ela chega. Logo, o número total de arestas num cubo quadridimensional é 16 × 4/2 = 32. E não para aí.

Podemos passar para cinco, seis ou até mais dimensões, e construir um hipercubo em todos esses mundos. Por exemplo, um hipercubo em n dimensões terá 2n vértices. De cada um desses vértices emergem n arestas, cada uma contada duas vezes; então o cubo n-dimensional tem n × 2n – 1 arestas.

A matemática nos proporciona um sexto sentido, permitindo que brinquemos com as formas que vivem além das fronteiras do nosso universo tridimensional.

Onde em Paris se pode ver um cubo quadridimensional?

Para celebrar o 200º aniversário da Revolução Francesa, o então presidente da França, François Mitterrand, encarregou o arquiteto dinamarquês Johann Otto von Spreckelsen de construir alguma coisa especial em La Défense, o distrito financeiro de Paris. A construção se alinharia com diversas outras Spreckelsen construiu é um cubo quadridimensional no coração da capital francesa.

Bem, não é efetivamente um cubo quadridimensional porque vivemos num universo tridimensional. Mas assim como os artistas da Renascença foram confrontados com o desafio de pintar figuras tridimensionais em telas bidimensionais, o arquiteto em La Défense captou a sombra do cubo quadridimensional no nosso universo tridimensional. Para criar a ilusão de ver um cubo tridimensional olhando para uma tela bidimensional, o artista podia desenhar um quadrado dentro de um quadrado maior e juntar os cantos dos quadrados para completar a figura de um cubo. Claro que não é um cubo

de verdade, mas fornece ao espectador informação suficiente: podemos ver todas as arestas e visualizar o cubo. Von Spreckelsen usou a mesma ideia para construir a projeção de um cubo quadridimensional na Paris tridimensional, consistindo em um cubo situado dentro de um cubo maior com as arestas juntando os vértices do cubo menor e do maior. Se você visitar La Grande Arche e contar com cuidado, poderá ver as 32 arestas que identificamos na seção anterior usando as coordenadas de Descartes.

FIGURA 2.36: La Grande Arche, em Paris, é a sombra de um cubo quadridimensional.

Toda vez que visito La Grande Arche, em La Défense, é sinistro que sempre haja um vento uivando que parece nos sugar pelo centro do arco.

Esse vento se tornou tão sério que os projetistas tiveram de erigir um dossel no coração do arco para interromper o fluxo de ar. É como se, ao construir a sombra de um hipercubo em Paris, tivesse se aberto um portal para outra dimensão.

Há outras maneiras de ter a sensação do cubo quadridimensional no nosso mundo tridimensional. Pense em como você faria um cubo tridimensional a partir de um pedaço de cartolina bidimensional. Primeiro você desenha seis quadrados ligados em forma de cruz, um quadrado para cada face do cubo. Então você dobra o desenho para formar o cubo. O desenho na cartolina bidimensional chama-se “malha” da forma tridimensional. De maneira similar, é possível no nosso mundo tridimensional construir uma malha tridimensional que, se houvesse uma quarta dimensão, pudesse ser dobrada de modo a formar um cubo quadridimensional.

Você pode se propor a fazer um cubo quadridimensional recortando e juntando oito cubos. Eles serão as “faces” do seu cubo quadridimensional.

Para fazer a malha do cubo quadridimensional, você precisa juntar esses oito cubos. Comece por colar os primeiros quatro numa coluna, um em cima do outro. Depois, pegue os quatro restantes e cole-os nas quatro faces de um dos quatro cubos na coluna. O seu hipercubo não montado deve ter agora a aparência de duas cruzes que se interceptam, como na Figura 2.37.

FIGURA 2.37: Como fazer um cubo quadridimensional a partir de oito cubos tridimensionais.

Para dobrar essa coisa, você teria de começar grudando os cubos da base e do topo da coluna. O passo seguinte seria colar as faces quadradas externas

de dois dos cubos grudados em lados opostos da coluna ao tubo inferior da coluna. Então, finalmente, você precisaria grudar as faces dos outros dois cubos laterais às faces restantes do cubo inferior. O problema, naturalmente, é que mal você começa a colar, a coisa fica emaranhada, pois simplesmente não há espaço para tudo no nosso mundo tridimensional. Você necessita de uma quarta dimensão na qual possa fazer as dobraduras como descrevi.

Assim como o arquiteto em Paris foi inspirado pela sombra do cubo quadridimensional, o artista Salvador Dalí ficou intrigado por esse hipercubo não dobrado. Em seu quadro A crucificação (Corpus Hypercubus), Dalí retrata Cristo crucificado na malha tridimensional do cubo quadridimensional. Para o pintor, a ideia da quarta dimensão como algo além do nosso mundo material ressoava o mundo espiritual além do nosso universo físico. Seu hipercubo não dobrado consiste em duas cruzes que se interceptam, e a figura sugere que a ascensão de Cristo ao céu está relacionada à tentativa de dobrar essa estrutura tridimensional numa quarta dimensão, transcendendo a realidade física.

Por mais que tentemos retratar essas formas quadridimensionais em nosso universo tridimensional, elas nunca podem nos dar uma figura completa, assim como a sombra ou silhueta no mundo bidimensional pode nos dar apenas uma informação parcial. Quando movemos e viramos o objeto, a sombra muda, mas nós nunca vemos tudo. Esse tema foi colhido pelo romancista Alex Garland no livro O tesseracto, outro nome do cubo quadridimensional. A narrativa descreve visões de diferentes personagens acerca da história central, que se passa no submundo da bandidagem em Manila. Nenhuma narrativa isolada fornece um quadro completo, mas, juntando todas as vozes — da mesma maneira que olhar as muitas sombras diferentes projetadas por uma forma —, você começa a entender a história.

Mas a quarta dimensão não é importante apenas para construir estruturas, pinturas e narrativas. Ela pode ser também a chave para o formato do próprio Universo.

No documento Os mistérios dos números (páginas 99-105)