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Compatibilidade dos métodos de quantificação do sobrepreço com o

PARTE II – CARTEL E RESPONSABILIDADE CIVIL

5. RESPONSABILIDADE CIVIL POR DANOS DECORRENTES DA

5.2 Pressupostos da responsabilidade civil por danos decorrentes da prática de

5.2.4 Dano

5.2.4.1 Danos patrimoniais (ou materiais)

5.2.4.1.3 Compatibilidade dos métodos de quantificação do sobrepreço com o

O breve exame empreendido acima permite confirmar que não é possível medir com precisão absoluta o prejuízo decorrente do sobrepreço, uma vez que todos os métodos de cálculo, em maior ou menor extensão, dependem da adoção de determinadas

285 ―As análises financeiras, por exemplo, dependem de informações contábeis da empresa, cuja

disponibilidade depende da estrutura de governança da empresa e de seus interesses estratégicos, de modo que a viabilidade da análise fica condicionada à possibilidade de se utilizar esses dados. A vantagem desse método é que ele traz informações mais objetivas do que os modelos teóricos baseados em estruturas de mercado‖ (GUSTAVO MADI REZENDE, SOLANGE KIELBER e MARIA FERNANDA CAPORALE MADI, ―Métodos

de Mensuração das Indenizações Privadas em casos de Cartel‖, cit., p. 417).

286 Oxera Consulting, Quantifying Antitrust Damages…, cit., pp. 76-86.

287 ―Essa mensuração está sujeita a diversas críticas relativas à dificuldade de aproximação entre as

características reais dos mercado e as estruturas de mercado concebidas teoricamente‖ (GUSTAVO MADI

REZENDE, SOLANGE KIELBER e MARIA FERNANDA CAPORALE MADI, ―Métodos de Mensuração das

premissas para que seja possível estimar um cenário contrafactual hipotético e compará-lo com o cenário de cartel.

Essa característica dos métodos de quantificação do sobrepreço, contudo, não constitui óbice à sua adoção no direito brasileiro. A interpretação mais coerente com os objetivos da lei concorrencial é aquela que, a exemplo das soluções adotadas em outros países, permite a quantificação dos prejuízos de acordo com critérios razoáveis e acessíveis às partes. Desse modo, entende-se que os métodos discutidos acima poderão ser aplicados ao tratamento da matéria no Brasil.

Confirmando a compatibilidade dos métodos acima com o direito brasileiro, deve-se observar que a jurisprudência nacional em matéria de responsabilidade civil já admite que, em determinadas circunstâncias, o cálculo dos prejuízos seja feito mediante critérios de razoabilidade a serem apurados no caso concreto, sem necessidade de precisão absoluta, como ocorre, por exemplo, no caso da indenização por lucros cessantes. Como ensina CARLOS ROBERTO GONÇALVES288:

―em se tratando (...) de lucros cessantes, a razão e o bom senso – assinala Giorgi – ‗nos dizem que os fatos, ordinariamente, são insuscetíveis de prova direta e rigorosa, sendo, igualmente, de ponderar-se que não é possível traçar regras claras, a não ser regras muito gerais, a este respeito, o que dá lugar ao arbítrio do juiz na apreciação dos casos‘‖

Além disso, em outras áreas do direito brasileiro também se admite o cálculo de valores com base em estimativas pautadas por um critério de razoabilidade – caso, por exemplo, haja mais de um método de cálculo e/ou não haja possibilidade de apuração do valor exato – em situações que, embora não envolvam responsabilidade civil, igualmente acarretam consequências patrimoniais significativas aos envolvidos. Essa situação ocorre nas mais diferentes hipóteses, como por exemplo:

i) na apuração da prática de dumping (preço de exportação inferior ao preço no mercado interno) por produtores/exportadores de país em que não vigora economia de mercado (e.g., China), caso em que o valor deverá ser calculado com base (a) no preço de venda do produto similar em terceiro país, substituto, em que vigore

economia de mercado; (b) no valor construído do produto similar em um país substituto; (c) no preço de exportação do produto similar de um país substituto para outros países, exceto o Brasil; ou (d) em qualquer outro preço razoável, sempre que nenhuma das hipóteses anteriores seja viável e desde que devidamente justificado289;

ii) na avaliação do valor de sociedades empresárias para fins de dissolução parcial ou exercício de direito de retirada; embora a lei e/ou os atos constitutivos das sociedades comumente prevejam critérios que devam nortear tais avaliações, os métodos de avaliação são variados e todos eles conferem certa margem de discricionariedade e subjetividade ao avaliador290; e

iii) na fixação do preço de venda por terceiro nos termos do artigo 485 do Código Civil, a qual é vinculante para as partes contratantes e cujo preço, de acordo com a

289

Artigo 15 do Decreto nº 8.058, de 26 de julho de 2013. O exemplo consta de: TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ

JÚNIOR, ―Direito da Concorrência e Enforcement Privado na Legislação Brasileira‖, cit., p. 26.

290 Ao discorrer sobre os métodos de avaliação de sociedades para fins de apuração dos haveres devidos ao

sócio retirante, excluído ou falecido, PRISCILA M. P. CORRÊA DA FONSECA chama a atenção para a diversidade de metodologias e para a subjetividade conferida ao avaliador: ―Reina muita controvérsia a respeito da forma de apuração do goodwill entre os valores que devam integrar a avaliação dos haveres devidos ao sócio retirante, excluído ou falecido. A dissenção reside não apenas na diversidade de critérios existentes para a elaboração de cálculos, como também na complexidade da mensuração, em determinados casos, do referido sobrevalor. (…) Há vários e diversificados métodos para a avaliação da sociedade. Com amparo no lucro verificado, são inúmeras as fórmulas sistematizadas pelos experts para o cálculo do goodwill. Aquela mais comumente empregada é a que se denomina Fluxo de Caixa Descontado e que se baseia nos fluxos de caixa gerados em um determinado número de anos anteriores à avaliação, os quais são projetados para o futuro, também ao longo de um certo período de tempo. (…) Ao valor acima apurado é aplicada uma taxa de desconto, denominada de custo de capital – ‗constituída do custo de oportunidade de cada fonte de financiamento‘ – calculada segundo critérios estabelecidos consoante as peculiaridades de cada caso, inclusive e principalmente com o denominado risco do fluxo, ou seja, um índice relativo às variáveis mercadológicas e macroeconômicas. Ao valor final encontrado é aplicada uma taxa de juros, geralmente aquela refletida pelos índices oficiais. Uma vez aplicada essa taxa de desconto, obtém-se o valor presente dos fluxos futuros, isto é, um importe contemporâneo à avaliação e que se viesse a ser investido em títulos daquela natureza deveria gerar, naquele mesmo prazo em que os fluxos de caixa foram projetados, os lucros que, em princípio, deveria auferir a sociedade, naquele mesmo período. (…) É este o método mais frequentemente utilizado para avaliação do valor econômico de uma pessoa jurídica e, por conseguinte, para mensuração do valor correspondente ao fundo de comércio. No entanto, as perícias voltadas à apuração dos haveres decorrentes da extinção parcial do vínculo societário, dizem respeito evidentemente a sociedades de capital fechado, nas quais a medição da taxa de risco e do custo de capital é tarefa de grande complexidade e subjetividade porquanto o perito deve se valer de elementos concernentes ao grau de risco de sociedades que atuam no mesmo segmento ou ainda fazer relacionar o risco a variáveis contábeis da própria sociedade. (…) Por outro lado, como a mensuração do goodwill implica a projeção, para o futuro, de resultados pretéritos, a incerteza que a cerca é intuitiva e não seria exagero afirmar que, muitas vezes, tal fixação ficará na dependência de apreciação subjetiva do magistrado acerca das perspectivas inerentes à atividade empresária desenvolvida, isto é, o futuro da economia do país, concorrência, novas tecnologias, o nível de modernização e adequação tecnológica da empresa, taxas de juros vigente, recessão, retração do mercado, facilidades na obtenção de crédito, etc.‖ (Dissolução Parcial, Retirada e Exclusão de Sócio, 5ª ed., São Paulo, Atlas, 2012, pp. 202-207).

doutrina, somente pode ser repudiado em caso de má-fé ou erro manifesto que afete a razoabilidade do preço291.

Nesse sentido, a exemplo do entendimento vigente quanto à apuração dos lucros cessantes e dos demais casos de apuração por critérios de razoabilidade previstos no ordenamento jurídico brasileiro, a jurisprudência nacional em matéria de cartel deve caminhar no sentido de admitir que a quantificação dos prejuízos seja feita com base em estimativas baseadas em estudos econômicos. Essa é a posição da doutrina concorrencial brasileira, que reconhece que, caso não se permita que o sobrepreço seja calculado com base em tais critérios, restará inviabilizada a reparação dos danos oriundos de cartel292.

291

Veja-se a lição de CARLOS ROBERTO GONÇALVES, em comentário ao art. 485 do Código Civil de 2002: ―Se as partes expressamente convencionarem submeter-se ao preço fixado por um terceiro que escolherem, implicitamente renunciam ao direito de impugnar o laudo que este apresentar. Não têm o direito de repudiar a sua estimativa, que se torna obrigatória. Todavia, o preço não poderá ser desarrazoado, contrário às legítimas expectativas dos contratantes ou em desacordo com as circunstâncias que devem ser levadas em conta. Embora a estimação feita pelo terceiro não possa ser reduzida, é ressalvado a qualquer dos contratantes o direito de demandar a nulidade do contrato por dolo. O terceiro escolhido de comum acordo pelas partes levará em conta, ao fixar o preço, o valor atual da coisa, que é contemporâneo da estimativa e não o da data da celebração da avença, salvo estipulação em contrário‖ (Direito Civil Brasileiro, vol. 3, 9ª ed., São Paulo, Saraiva, 2012, pp. 222-223).

292 T

ÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JÚNIOR cita como exemplo o tratamento da matéria no direito alemão: ―Conforme a jurisprudência internacional, a matéria da efetivação de pretensões privadas ao ressarcimento de danos causados por exercício de cartel é regida pelo princípio da reparação integral [no Brasil, por exemplo, CCiv. 2002, art. 944], que assenta: por princípio, o dano deve ser integralmente indenizado. Ora, a prova do dano material (dano emergente, lucros cessantes, juros), por força da natureza dos casos de cartel (e de abuso de poder econômico em geral) exige, na prática, uma apuração com base em uma ―análise hipotética‖. (p. 26). Em regra, essa hipótese é construída e demonstrada sobre pesquisas econômicas de dados de mercado e das transações realizadas. É com base nessas pesquisas, apuradas no enforcement público, que são quantificados os danos no enforcement privado. O que se pede então ao prejudicado individual é a demonstração da relação de dependência (insumo necessário) em face do fornecedor cartelizado (fornecedor necessário) e a quantificação das aquisições efetuadas no período (faturas). Assim, a Corte Suprema alemã (BGH) aceita e fala, com esse objetivo, de Vergleichsmarktkonzept (conceito de mercado comparativo), ou seja, para avaliar o dano ocorrido em um mercado relevante concorrencialmente falseado é preciso recorrer, se possível, à comparação com mercados relevantes sob regime de livre concorrência. O que parece, então, à Corte alemã um procedimento correto, pois se baseia em dados concretos de mercados existentes. Com isso não se exige uma certeza rigorosa na quantificação do dano, mas antes uma consideração aproximada e em média (Durchschnittsbetrachtung), pois, do contrário – e aí a base da presunção –, o atendimento a uma pretensão de indenização ficaria impossível‖ (―Direito da Concorrência e Enforcement Privado na Legislação Brasileira‖, cit., pp. 26-27). Sobre a questão do cálculo do valor dos prejuízos, BRUNO OLIVEIRA MAGGI

pondera: ―Além da dificuldade ínsita à definição do valor da indenização, presume-se que haverá alguma resistência dos magistrados à forma de sua apuração. Ao contrário dos processos convencionais, nos quais a liquidação da sentença parte de valores reais que servem como base para o cálculo do valor da condenação, a quantificação dos prejuízos gerados por infrações à ordem econômica, em especial os cartéis, partem de um valor obtido através de estimativas baseadas em teorias econômicas. Nesse sentido, acredita-se que, antes mesmo da fase de apuração dos valores, as partes terão que convencer o juiz de que os estudos econômicos são formas legítimas e as mais adequadas para quantificar os prejuízos nesses casos‖ (O Cartel e seus Efeitos no Âmbito da Responsabilidade Civil, cit., p. 186). LUIZ CARLOS BUCHAIN também defende a aplicação de diferentes métodos para o cálculo dos prejuízos, tais como a comparação de preços em períodos anteriores e posteriores, a comparação com preços vigentes em outros mercados, a comparação das taxas de lucratividade, dentre outros (O Poder Econômico e a Responsabilidade Civil Concorrencial, cit., pp. 180- 181).

Qualquer que seja o método adotado, contudo, o cálculo do sobrepreço deve ser baseado em critérios objetivos, sendo imprescindível que haja sólida demonstração da razoabilidade das premissas adotadas, assegurando-se o contraditório.

5.2.4.1.4 Considerações sobre a admissão da chamada “pass-on defense”