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PARTE I – CARTEL: EFEITOS ECONÔMICOS E DISCIPLINA JURÍDICA

2. A DISCIPLINA JURÍDICA DO CARTEL NO DIREITO BRASILEIRO

2.3 Esfera penal: o crime de cartel

A análise aprofundada do crime de cartel escapa aos limites do presente trabalho. De qualquer modo, serão examinados brevemente a seguir os principais elementos da disciplina jurídica dos cartéis na esfera penal.

O art. 4º da Lei nº 8.137/1990 tipifica a prática de cartel como crime, punível com pena de reclusão de dois a cinco anos e multa. Veja-se o teor do dispositivo:

―Art. 4° Constitui crime contra a ordem econômica:

I - abusar do poder econômico, dominando o mercado ou eliminando, total ou parcialmente, a concorrência mediante qualquer forma de ajuste ou acordo de empresas;

II - formar acordo, convênio, ajuste ou aliança entre ofertantes, visando: a) à fixação artificial de preços ou quantidades vendidas ou produzidas; b) ao controle regionalizado do mercado por empresa ou grupo de empresas; c) ao controle, em detrimento da concorrência, de rede de distribuição ou de fornecedores.

Pena - reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos e multa‖.

81 Os acordos de leniência passaram a ser admitidos pela Lei 8.884/1994 após as alterações introduzidas pela

Lei 10.149/2000. Atualmente, os acordos de leniência são disciplinados pelos artigos 86 e seguintes da Lei 12.529/2011. Esses acordos são celebrados entre a administração e pessoas físicas ou jurídicas e permitem a redução da penalidade ou a extinção da punibilidade (em âmbito administrativo e criminal) para aqueles que confessarem a prática de infração à ordem econômica e auxiliarem nas investigações. Esse auxílio deve ser efetivo e resultar na identificação dos coautores da infração e na obtenção de documentos comprobatórios da prática.

82 Nesse sentido, o então Superintendente-Geral do CADE, Carlos Emmanuel Joppert Ragazzo e o atual

Presidente do CADE, Vinícius Marques de Carvalho, declararam que o CADE deverá manter o foco nos próximos anos na investigação de prática anticompetitivas, em especial cartéis (―Depois da onda de fusões, CADE quer concentrar atuação nas investigações‖, Valor Econômico, 19.06.2012).

Na doutrina, prevalece o entendimento de que o crime previsto no inciso I constitui crime de resultado, sendo necessário, para sua configuração, que haja efetiva dominação do mercado ou eliminação da concorrência83.

Critica-se a excessiva generalidade do tipo penal previsto no inciso I do dispositivo, o qual em tese possibilita a persecução penal do abuso de poder econômico genericamente considerado, e não apenas da formação de cartel. Nesse sentido, ANA

PAULA MARTINEZ defende, de lege ferenda, a revogação do inciso I do art. 4º da Lei

8.137/1990, sustentando que a persecução penal em matéria concorrencial deveria ser reservada à prática de cartel84-85:

―Uma política pública que confira tratamento penal a um amplo rol de infrações à ordem econômica pode ser fonte de alta ineficiência social, ao inserir um elemento de incerteza na condução das atividades econômicas e restringir a criatividade e a liberdade dos executivos de buscarem novas políticas e arranjos comerciais – o que é crítico, considerando a importância da inovação para o desenvolvimento. (...) Como visto (...), a ampla redação do artigo 4º, I, da Lei 8.137/1990 permite que qualquer abuso de poder econômico decorrente de ajustes ou acordo entre empresas que leve à dominação do mercado ou eliminação da concorrência seja perseguido criminalmente. Isso significa que, nos termos do ordenamento jurídico atual, indivíduos responsáveis por acordos de exclusividade, fixação de preços de revenda e mesmo fusões e aquisições anticompetitivos estão sujeitos à imputação penal – regra que deveria ser extirpada de nosso ordenamento (...)‖.

O crime previsto no inciso II, por sua vez, está relacionado à prática de cartel, prevendo-se que constitui crime a formação de ―acordo, convênio, ajuste ou aliança entre ofertantes‖86 visando à fixação artificial de preços ou quantidades (alínea a), ao

83 E

DUARDO REALE FERRARI e JOÃO AUGUSTO PRADO DA SILVEIRA GAMEIRO, O Cartel de Empresas e seus Aspectos Criminais, sem data, disponível em: <http://www.realeadvogados.com.br/opinioes/edu_joao.pdf>. Acesso em 8.nov.2014, p. 13.

84 Repressão a Cartéis..., p. 291.

85 Nos Estados Unidos, a Comissão para Modernização do Direito Antitruste (“Antitrust Modernization

Commission”), criada por lei com o objetivo de avaliar e propor aperfeiçoamentos ao direito antitruste norte- americano, sustenta, de modo semelhante, que ―while no change to existing law is recommended, the Antitrust Division of the Department of Justice should continue to limit its criminal enforcement activity to ‗naked‘ price-fixing, bid-rigging, and market or customer allocation agreements among competitors, which inevitably harm consumers‖ (Antitrust Modernization Commission: Report and Recommendations, 2007, disponível em: <http://govinfo.library.unt.edu/amc/report_recommendation/amc_final_report.pdf>. Acesso em: 17.mar.2013, p. 295).

86

Sobre os conceitos de acordo, convênio, ajuste ou aliança entre ofertantes, veja-se o ensinamento de LUIZ

REGIS PRADO: ―Por ajuste, na seara penal, entende-se o acordo, livre e consciente, feito entre vários

controle regionalizado do mercado (alínea b) ou ao controle da rede de distribuição ou fornecedores (alínea c).

Trata-se de crime de perigo concreto, de modo que, para sua configuração, não se exige a efetiva ocorrência do dano, sendo suficiente a potencialidade de geração de efeitos anticompetitivos87.

É possível notar uma discrepância entre a definição de cartel apresentada no artigo 36, § 36 Lei 12.529/2011, discutido acima, e a definição do inciso II do art. 4º da Lei 8.137/1990. Na doutrina, defende-se de lege ferenda a compatibilização do dispositivo da lei penal com a norma prevista na lei concorrencial, de modo a evitar decisões conflitantes88.

Especificamente com relação à prática de cartel em licitações, a Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993 dispõe que a conduta constitui crime punido com reclusão de dois a quatro anos e multa, nos seguintes termos89:

―Art. 90. Frustrar ou fraudar, mediante ajuste, combinação ou qualquer outro expediente, o caráter competitivo do procedimento licitatório, com o intuito de obter, para si ou para outrem, vantagem decorrente da adjudicação do objeto da licitação: Pena - detenção, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.‖.

conjugando suas vontades para a efetivação do ato negocial, gerando uma obrigação de dar, de fazer ou não fazer‘ (...). O convênio é o ‗instrumento de declaração de vontades que se encontram e se integram, dirigindo-se, todas elas, a um objetivo comum, sem que, portanto, umas às outras se oponham; não há oposição e sim conjugação de interesses‘, e a aliança é ‗o acordo, a coligação feita entre instituições ou pessoas para um fim comum‘. Ofertante é quem oferece bens ou serviços no mercado, por determinado preço e por determinado período de tempo‖ (Direito Penal Econômico, 3ª ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 2009, pp. 45-49).

87

ANA PAULA MARTINEZ, Repressão a Cartéis..., cit., pp. 186-189.

88 Sobre o assunto, E

DUARDO REALE FERRARI e JOÃO AUGUSTO PRADO DA SILVEIRA GAMEIRO sustentam que ―a legislação penal peca pela falta de técnica jurídica e legislativa; primeiro porque a lei se mostra, em alguns pontos, totalmente alheia aos conceitos da Lei 8.884/94, destacando que, mesmo após a sua superveniência, não se operaram as adequações necessárias à tipificação dos crimes‖ (O Cartel de Empresas e seus Aspectos Criminais, cit., 13). No mesmo sentido, ANA PAULA MARTINEZ sustenta que ―definições distintas para a prática de cartel clássico hoje contidas na Lei 8.137/1990 e na Lei 12.529/2011 podem gerar dificuldades práticas de cooperação entre autoridades criminais e administrativas, além de aumentar a probabilidade de decisões conflitantes, razão pela qual se sugere a uniformização dos dispositivos‖ (Repressão a Cartéis..., cit., p. 291).

89 De acordo com A

NA PAULA MARTINEZ, ―se houver formação de cartel no âmbito de um processo

licitatório público, haverá a aplicação da Lei 8.666/1993 com base nos princípios da especialidade e da consunção, desde que presentes os elementos do tipo. Fraudes a licitações privadas continuam sendo regidas pela Lei 8.137/1990‖ (Repressão a Cartéis..., cit., p. 196).

As principais diferenças entre a disciplina dos cartéis nas esferas administrativa e penal – além das penalidades aplicáveis –, residem nos seguintes fatores: (i) a responsabilidade pela prática de cartel no âmbito penal é restrita às pessoas físicas, enquanto na esfera administrativa admite-se a punição de pessoas físicas e jurídicas; e (ii) a responsabilização na esfera penal exige a demonstração de dolo do agente, enquanto na esfera administrativa, como visto, admite-se a responsabilidade por simples culpa (no caso das pessoas físicas) ou até mesmo sem demonstração de culpa (no caso das pessoas jurídicas)90.

Nos últimos anos, dois fatores contribuíram para o incremento da persecução penal de cartéis no Brasil. O primeiro fator foi a criação, no âmbito dos Ministérios Públicos Estaduais e da Polícia Federal, de áreas especializadas destinadas a investigar crimes de cartel, como, por exemplo, o Grupo de Atuação Especial de Repressão à Formação de Cartéis e Lavagem de Dinheiro (―GEDEC‖) do Ministério Público do Estado de São Paulo, criado em outubro de 2008.

O segundo fator foi o aprofundamento da cooperação entre as autoridades administrativas de defesa da concorrência e as autoridades de investigação e persecução penal, mediante a criação de convênios de cooperação técnica e operacional com o objetivo de coordenar as atividades dos diferentes órgãos responsáveis pela investigação de práticas anticompetitivas91.

90 Nesse sentido, C

ALIXTO SALOMÃO FILHO ensina que ―os crimes ora analisados são do tipo doloso, isto é, pressupõe-se o conhecimento do tipo e a autodeterminação consciente na sua realização. Mais do que isso, estamos diante de um exemplo claro de dolo específico, isto é, ‗a conduta típica deve ser realizada para alcançar um fim que transcende o momento consumativo do fato punível‘. (...) Por outro lado, o art. 11 da Lei n. 8.137/90, praticamente reproduzindo os termos do art. 29 do Código Penal, estabelece a responsabilidade exclusiva das pessoas físicas pelos crimes ora analisados‖ (―Cartel: Aspectos Concorrenciais e Penais‖, in Regulação e Concorrência..., cit., pp. 183). No mesmo sentido, LUIZ REGIS

PRADO sustenta que ―o tipo subjetivo é representado pelo dolo, elemento subjetivo geral dos tipos constantes no artigo 4º e incisos, ou seja, para sua configuração exigem-se a consciência e a vontade de realizar o tipo objetivo do delito. Ademais, há a presença do elemento subjetivo do injusto consistente num especial fim de agir, que, nesses casos, é o de dominar o mercado ou eliminar, total ou parcialmente, a concorrência (delitos de tendência)‖ (Direito Penal Econômico, cit., p. 54).

91 Em 26.12.2007 a SDE, órgão então responsável pela instrução dos processos administrativos para

investigação de infrações à ordem econômica, firmou convênio de cooperação técnica-operacional com a Polícia Federal. Em 24.05.2008, foi firmado convênio entre a SDE e o Ministério Público Federal. Também foram celebrados convênios com instituições estaduais, como o Ministério Público da Paraíba, de 11.04.2008, e o Ministério Público de São Paulo, do qual resultou a criação do GEDEC, mencionado acima. Em 08.10.2009, diversas autoridades públicas envolvidas na investigação de cartéis firmaram a ―Declaração de Brasília‖, pela qual foi estabelecida a Estratégia Nacional de Combate a Cartéis (―ENACC‖), que visa ―fomentar a definição de um plano coordenado e sistemático de atividades entre os diversos órgãos estatais responsáveis pela investigação e repressão às infrações à ordem econômica‖ (Declaração de Brasília –

Embora tais esforços não tenham se refletido até o momento em número expressivo de decisões condenatórias definitivas92 – em especial quando comparado com a persecução penal de cartéis em outros países, como os Estados Unidos93 – a maior importância conferida à persecução penal de cartéis no Brasil pode ser notada pelo número crescente de processos e investigações em curso94.

Estratégia Nacional de Combate a Cartéis – ENACC, ―Combate a Cartéis: uma prioridade na política criminal e administrativa‖). Sobre o tema, ANA PAULA MARTINEZ avalia que ―a criação do novo CADE, com estrutura única mais racional e alinhada com as melhores práticas internacionais, trouxe externalidade negativa para a cooperação entre autoridades administrativas e criminais. No regime anterior, a Secretaria de Direito Econômico, responsável pela investigação de condutas anticompetitivas na vigência da Lei 8.884/1994, beneficiou-se largamente do fato de ter como órgãos-irmãos o Departamento de Polícia Federal e a Secretaria Nacional de Segurança Pública, no âmbito do Ministério da Justiça. Isso não quer dizer, claro, que uma atuação coordenada não seja possível, mas apenas que isso requererá maior esforço das partes envolvidas no bojo do novo sistema‖ (Repressão a Cartéis..., cit., p. 245).

92

Ao analisar recentemente o sistema de persecução penal de cartéis no Brasil, a OCDE relatou: ―Os dados sobre processos penais referentes a cartéis são, infelizmente, incompletos. Ainda assim, o SBDC relata que trinta e quatro indivíduos foram condenados criminalmente desde que a iniciativa começou. A maioria desses indivíduos estava envolvida em conluios locais ou regionais, particularmente em cartéis na revenda de combustíveis. Destes, dez receberam sentenças de prisão, mas nenhuma dessas sentenças foi cumprida até a presente data, pois todos os casos estão em fase recursal‖ (Direito e Política da Concorrência no Brasil..., cit., p. 19).

93 ―Criminal antitrust prosecution is a vital component of overall antitrust enforcement in the United States.

(...) The Antitrust Division of the Department of Justice (DOJ) has made the detection, criminal prosecution, and deterrence of hard-core antitrust offenses its highest priority. This priority, in combination with improved enforcement tools, cooperation from international antitrust enforcers, and a robust amnesty program, have led to the detection and prosecution of an ever-increasing number of cartels, often global in scope. These cartels can affect millions, if not billions, of dollars in commerce. Congress has recognized the seriousness of these economic crimes, and has recently substantially increased maximum fines and jail sentences and authorized the DOJ to use wiretaps in the investigation of suspected criminal cartel conduct‖ (Antitrust Modernization Commission…, cit., p. 293).

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Nos termos do relatório da OCDE ―o SBDC informa que, até o final de 2009, cerca de 100 indivíduos estavam sendo formalmente acusados por crime de formação de cartel ou estavam sob investigação por tal atividade criminosa.‖ (Direito e Política da Concorrência no Brasil..., cit., p. 19).