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Danos morais decorrentes da prática de cartel

PARTE II – CARTEL E RESPONSABILIDADE CIVIL

5. RESPONSABILIDADE CIVIL POR DANOS DECORRENTES DA

5.2 Pressupostos da responsabilidade civil por danos decorrentes da prática de

5.2.4 Dano

5.2.4.2 Danos morais

5.2.4.2.2 Danos morais decorrentes da prática de cartel

Como visto acima, a reparação dos danos morais no ordenamento jurídico brasileiro é assegurada pela Constituição Federal e pelo Código Civil. Nesse contexto, não há qualquer razão para afastar a possiblidade de reparação por danos morais oriundos de infrações à ordem econômica332. Veja-se, a respeito, o posicionamento de LUIZ CARLOS

BUCHAIN333:

―Haveria dúvida sobre o direito a obter indenização por danos morais provados ao lesado a partir de determinados efeitos anticoncorrenciais? A resposta deverá ser negativa, pois onde o legislador não restringiu, não caberá ao intérprete fazê-lo. Ademais, a matéria está lavrada em nível constitucional, de onde deflui que a autorização à indenização por dano moral está inserida em todo o sistema jurídico, inclusive por pessoas jurídicas como reiteradamente e sumuladamente decidido pelo Superior Tribunal de Justiça‖.

Uma vez assentada a possibilidade de reparação por danos morais oriundos de infrações à ordem econômica, cabe avaliar as especificidades e hipóteses de cabimento da reparação por danos morais em casos de cartel. Devem ser analisadas três hipóteses distintas, conforme o dano seja sofrido por uma pessoa jurídica, por uma pessoa física ou por uma coletividade (danos morais coletivos).

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―Art. 13. Havendo condenação em dinheiro, a indenização pelo dano causado reverterá a um fundo gerido por um Conselho Federal ou por Conselhos Estaduais de que participarão necessariamente o Ministério Público e representantes da comunidade, sendo seus recursos destinados à reconstituição dos bens lesados‖.

332 Registre-se que o dano moral também é admissível mesmo em hipóteses de responsabilidade objetiva.

Como esclarece RUI STOCO: ―(...) em todos esses casos de responsabilidade objetiva, poder-se-á pleitear a

reparação do dano moral independentemente da perquirição de culpa, desde que fique demonstrada a existência de nexo de causa e efeito entre o comportamento do agente e o resultado danoso. (...) Ainda que se cuide de responsabilidade objetiva, seja ela prevista no Código Civil (como ocorre em inúmeras passagens), seja a responsabilidade sem culpa do Estado (...), ou ainda em decorrência da prática de atos lícitos por parte da Administração Pública, há que se proteger a vítima‖ (Tratado de Responsabilidade Civil..., cit., p. 1696).

333 O autor complementa: ―A questão que se impõe é sabermos se a imposição de penas pela autoridade

administrativa (autárquica) competente elide o direito da vítima ao pedido indenizatório de natureza moral. (...) a imposição de tais penas não elide o direito individual ao pedido indenizatório, seja ele patrimonial, moral ou misto‖ (O Poder Econômico e a Responsabilidade Civil Concorrencial, cit., pp. 165-166).

No caso de pessoa jurídica, como analisado acima, admite-se a reparação por danos morais em caso de ofensa à sua ―honra objetiva‖ (bom nome, imagem, reputação, credibilidade, etc.). Nesse sentido, como observa LUIZ CARLOS BUCHAIN, em determinados casos, como nos casos de concorrência desleal334, ―o ato ilícito concorrencial praticado pelo agente detentor de poder de mercado pode ter por objeto a ofensa e a reputação da empresa prejudicada, exatamente como meio de obter seu afastamento do mercado‖335

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Em se tratando de um cartel, poderá surgir o dever de indenizar caso o cartel gere prejuízos à reputação da pessoa jurídica. Isso pode ocorrer, por exemplo, no caso de a empresa não ter acesso a determinado insumo para fabricação de seus produtos – em razão das quantidades reduzidas e preços elevados fixados pelo cartel – e, por consequência, não conseguir honrar compromissos previamente assumidos com seus clientes, sofrendo, além de danos patrimoniais, abalo em sua reputação336. Nessas situações, a ofensa à reputação da pessoa jurídica deverá ser demonstrada, ainda que mediante prova indireta, não se aplicando em sua plenitude a teoria in re ipsa acima discutida337.

No caso de uma pessoa física, pode-se pensar no exemplo de um consumidor que, em virtude dos preços elevados decorrentes de um cartel, é obrigado a deixar de adquirir um bem, substituindo-o por outro que lhe proporciona menor utilidade. Como aponta LÍVIA GÂNDARA, ―essa restrição, na medida em que afeta a liberdade, um dos

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Veja-se, nesse sentido, exemplo fornecido por Calixto Salomão Filho: ―Imagine-se, por exemplo, a publicidade enganosa baseada na divulgação de informações falsas sobre o concorrente‖ (Direito Concorrencial – As Condutas, cit., p. 84).

335 O Poder Econômico e a Responsabilidade Civil Concorrencial, cit., p. 168. 336 Exemplo semelhante, embora não se trate de hipótese de cartel, é apontado por L

UIZ CARLOS BUCHAIN: ―Um exemplo que se pode construir como hipotética situação geradora de indenização moral e patrimonial de empresa, no âmbito da LDC, é a interrupção ou redução injustificada, pela empresa A de matéria-prima essencial à produção de bens de consumo pela empresa B, e que vinha sendo regularmente fornecida, de tal forma que a esta última torna-se impossível cumprir as entregas já contratadas com seus distribuidores. A conduta ilícita de A considerada de forma una e indivisível, provocará em B danos patrimoniais (dano emergente representado pela perda da venda contratada e lucro cessante representado pela diminuição ou paralisação das atividades produtivas) quanto danos não-patrimoniais, dano esse vinculado à credibilidade da empresa no mercado, a manutenção da imagem e a confiabilidade no cumprimento dos contratos, os quais restam maculados tanto pela interrupção quanto pela descontinuidade nas entregas, ilicitamente provocadas pela empresa A‖ (O Poder Econômico e a Responsabilidade Civil Concorrencial, cit., p. 168).

337 Deve-se mencionar a posição de M

ARIA CELINA BODIN DE MORAES, que, embora admita que pessoas jurídicas possam sofrer danos não-patrimoniais, prefere chamar tais danos de ―danos institucionais‖, os quais, segundo a autora, diferenciam-se do dano moral pela necessidade de comprovação potencial do prejuízo, não se aplicando a tese in re ipsa (Danos à Pessoa Humana..., cit., pp. 191-192).

pilares da dignidade da pessoa humana – e, portanto, aspecto personalíssimo do indivíduo – provoca uma lesão de caráter moral e não patrimonial‖338

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Com relação aos danos morais coletivos, sua admissibilidade em matéria de responsabilidade civil concorrencial decorre de expressa previsão legal, uma vez que o artigo 1º da Lei de Ação Civil Pública prevê a possibilidade de ajuizamento de ―ações de responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados" (...) ―por infração da ordem econômica‖ (inciso V) ou ―a qualquer outro interesse difuso ou coletivo‖ (inciso IV).

Nesse sentido, BRUNO OLIVEIRA MAGGI, partindo da concepção de danos

morais como aqueles danos que não podem ser reparados, mas apenas compensados, observa que o cartel reduz os incentivos das empresas para investirem na melhoria do atendimento e qualidade dos produtos, o que constitui um dano moral que atinge o mercado como um todo, gerando perdas coletivas. Além disso, o autor sustenta que o funcionamento do cartel resulta em ―diminuição geral de bem-estar social‖, observando que ―o rebaixamento da qualidade de vida, a diminuição da produção e a impossibilidade de compra dos bens por potenciais compradores que pagariam o preço normal de mercado são situações que não podem ser revertidas‖, de modo que ―a indenização poderá apenas compensar os valores perdidos‖339.

De modo semelhante, PAULO FELIPE CARNEIRO DE FREITAS sustenta que ―quanto ao dano moral em matéria antitruste tem-se, como exemplo, um dano causado à coletividade pela mácula à instituição concorrência por meio de um cartel, trazendo danos pulverizados no mercado como desincentivo a investimentos, desaceleração de crescimento, etc.‖340-341

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338 ―Responsabilidade Civil Concorrencial: Elementos de Responsabilidade Civil e Análise Crítica dos

Problemas Enfrentados pelos Tribunais Brasileiros‖, in Revista do IBRAC, ano 19, vol. 21, 2012, p. 338.

339 O Cartel e seus Efeitos no Âmbito da Responsabilidade Civil, cit., pp. 144-157.

340 Tutela Coletiva da Responsabilidade Civil por Infração da Ordem Econômica, cit., p. 54. 341

LÍVIA GÂNDARA sustenta que os danos morais coletivos devem ter por parâmetro o ―peso morto‖ gerado pelo cartel: ―(...) é válido lembrar que uma determinada conduta anticompetitivas gera, não só prejuízos àqueles que de fato compraram os produtos ou contrataram os serviços, mas também àqueles que deixaram de comprar o produto ou serviço em razão, por exemplo, de um sobrepreço, compondo o chamado peso morto. Dessa forma, é possível relacionar o cálculo dos danos morais coletivos com a reparação do mais próximo que se possa chegar do peso morto gerado pela prática da conduta em razão deste representar com eficiência os danos provocados na sociedade‖ (―Responsabilidade Civil Concorrencial...‖, cit., p. 348).

Na jurisprudência, em ações civis públicas pleiteando ressarcimento de prejuízos à coletividade causados pela prática de cartel, tem-se admitido, além do ressarcimento do sobrepreço (dano patrimonial), o cabimento de indenização por danos morais coletivos com o objetivo de reparar danos extrapatrimoniais decorrentes, nas palavras dos respectivos julgados, da ―ofensa ao sentido de coletividade caracterizado pela espoliação sofrida pelos consumidores locais, gravemente maculados em sua vulnerabilidade‖342 e da ―diminuição do bem-estar dos consumidores traduzida na sensação de impotência e de descrédito nas instituições públicas‖343

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Em síntese, a doutrina e a incipiente jurisprudência sobre o tema admitem a reparação de danos morais (individuais e coletivos) ocasionados pelos cartéis, os quais são associados às consequências do cartel cujo conteúdo econômico não é mensurável, tais como a redução dos incentivos à inovação e qualidade, a redução geral de bem-estar dos consumidores e os prejuízos decorrentes da exclusão de potenciais consumidores do mercado em razão de preços elevados. Esses efeitos decorrentes do cartel, que atingem o mercado e a economia como um todo, foram examinados no capítulo 1, que examinou a prática de cartel sob a perspectiva econômica.