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O objetivo de prevenir a prática de infrações concorrenciais

PARTE II – CARTEL E RESPONSABILIDADE CIVIL

3. O PAPEL DA RESPONSABILIDADE CIVIL NO CONTEXTO DA

3.2 O objetivo de prevenir a prática de infrações concorrenciais

Além da reparação dos prejuízos, a doutrina concorrencial também destaca que a responsabilidade civil pode funcionar como importante fator de prevenção de práticas anticompetitivas (“deterrence”), complementando os esforços das autoridades de defesa da concorrência.

O modelo teórico comumente empregado no estudo das regras de prevenção de infrações à ordem econômica – e da possível contribuição das ações indenizatórias nessa tarefa – é a análise econômica do direito, que constitui ferramenta útil para a avaliação das normas destinadas à prevenção e dissuasão de práticas ilícitas101.

100 Em documento da Comissão Europeia sobre a reparação de danos causados por infrações concorrenciais,

destaca-se que ―compensation of the harm is fundamental so that companies who comply with the law do not suffer from a competitive disadvantage, and victims who are harmed do not bear the costs of the infringements: these costs must be borne by the infringers. Victims have a right to compensation, as confirmed by the ECJ, and it is fundamental that they can enforce it effectively‖ (Commission Staff Working Paper accompanying the White Paper on Damages Actions for Breach of the EC Antitrust Rules, 2008, disponível em: <http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=SEC:2008:0404:FIN:EN:PDF>. Acesso em: 5.abr.2013, p. 10).

101 A análise econômica do direito, também conhecida como direito e economia, é uma corrente de

pensamento que busca aplicar os principais conceitos da ciência econômica com o objetivo de explicar os efeitos de normas jurídicas sobre o comportamento dos agentes e avaliar a efetividade das normas. Como esclarece RACHEL SZTAJN ―direito e economia ou análise econômica do direito, segundo alguns, uma escola ou corrente de pensamento que busca, para compreender e explicar efeitos de normas jurídicas, apoio em modelos e premissas desenvolvidos por economistas, é, para outros, apenas uma técnica de avaliação da eficácia das normas‖ (―Direito e Economia‖, in Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, vol. 144, out./dez., 2006, p. 221). Sobre os objetivos da análise econômica do direito, RICHARD

O estudo sistematizado da matéria foi iniciado na década de 60 do século passado por GARY S. BECKER, que foi o primeiro autor a aplicar um modelo de comportamento racional para explicar os incentivos levados em conta pelo agente que comete uma infração. O modelo descreve o infrator como um agente racional, que decide praticar determinado ato ilícito por concluir que os ganhos a serem auferidos com a prática ilícita são superiores ao prejuízo esperado em decorrência da sanção eventualmente aplicada caso a infração seja descoberta102.

O modelo pode ser sintetizado da seguinte forma: ao decidir sobre a conveniência de cometer determinado ato ilícito, o potencial infrator leva em conta os ganhos decorrentes da prática (G) e o prejuízo esperado em razão de eventual sanção, o qual corresponde ao prejuízo efetivamente incorrido caso a sanção seja aplicada (P) multiplicado pela probabilidade de que a infração seja descoberta (p). Desse modo, na hipótese de os ganhos serem superiores ao prejuízo esperado (G > P.p), o agente irá cometer a infração. Caso os ganhos sejam inferiores ao prejuízo esperado (G < P.p), ele não cometerá a infração.

Diante disso, a sanção (S) que pretenda coibir adequadamente prática da infração deve corresponder ao benefício que o infrator acredite obter com a prática, multiplicado pelo inverso da probabilidade de que a sanção seja de fato aplicada (ou seja, S

aspects. It tries to explain and predict the behavior of participants in and persons regulated by the law. It also tries to improve law by pointing out respects in which existing or proposed laws have unintended or undesirable consequences (…)‖ (―Values and Consequences – An Introduction to Law and Economics‖, in ERIC POSNER (org.), Chicago Lectures in Law and Economics, New York, Foundation Press, 2000, p. 190). Com relação ao tema, PAULA FORGIONI observa que ―o operador do Direito, ao se deparar com a AED e com seus postulados, não pode ser movido nem pela paranoia, nem pela mistificação: a relação entre o método jurídico e o método juseconômico deve ser de complementaridade e não de substituição ou oposição. Na ausência da correta compreensão da AED, de duas, uma: ou será desprezado instrumental apto a dar concreção aos princípios de nosso ordenamento jurídico, ou – o que é pior – a AED será tomada como remédio apto a solucionar todos os males, reduzindo o papel do direito à simples reafirmação e legitimação dos determinismos econômicos‖ (―Análise Econômica do Direito (AED): Paranoia ou Mistificação?‖, in Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, vol. 139, jul./set., 2005, p. 256).

102 Nas palavras do autor: ―Rationality implied that some individuals become criminals because of the

financials and other rewards from crime compared to legal work, taking account of the likelihood of apprehension and conviction and the severity of the punishment. (…) Total public expending on fighting crime can be reduced, while keeping the mathematically expected punishment unchanged, by off-setting a cut in expenditures on catching criminals with a sufficient increase in the punishment to those convicted.‖ (―Nobel Lecture: The Economic Way of Looking at Behavior‖, in The Journal of Political Economy, vol. 101, n. 3, Jun., 1993, pp. 385-409). Os estudos do autor sobre a matéria foram inicialmente apresentados na obra ―Crime and Punishment: An Economic Approach‖, in Journal of Political Economy, vol. 76, 1968, pp. 169-217.

= P.1/p). Por exemplo, caso o benefício esperado pelo agente ao cometer determinada infração seja de R$ 30.000,00 (trinta mil reais) e a probabilidade de que a infração seja descoberta seja de 1/3 (um terço), a sanção deve corresponder ao benefício esperado multiplicado por três, ou seja, R$ 90.000,00 (noventa mil reais). Isso porque, caso a sanção seja inferior a esse valor, um agente racional concluirá que os ganhos potenciais decorrentes da prática superam o prejuízo esperado e continuará a ter incentivos para cometer o ato ilícito103.

Por esse modelo, a adequada dissuasão de crimes e práticas ilícitas pode ser obtida por uma combinação entre a magnitude da sanção e a probabilidade de detecção. Caso a probabilidade de detecção seja elevada, as sanções podem ser fixadas em patamar mais reduzido e, ainda assim, as práticas ilícitas serão coibidas. No entanto, caso a probabilidade de detecção seja baixa, as sanções terão que ser mais elevadas para que possam efetivamente desestimular a ocorrência de infrações.

O modelo acima descrito costuma ser aplicado à análise da prevenção da prática de cartel, reconhecendo-se que, por se tratar de infração caracterizada pelo sigilo, com baixa probabilidade de detecção104, a ―sanção ótima‖ que pretenda coibir adequadamente a conduta em tese deve ser superior ao benefício esperado pelos infratores105.

103

Esse modelo parte do pressuposto de que os agentes são neutros ao risco. Caso se pressuponha que os agentes em questão são avessos ao risco, mesmo que a penalidade aplicável seja inferior ao benefício esperado multiplicado pelo inverso da probabilidade de detecção, ainda assim o agente será adequadamente dissuadido de cometer o ato ilícito. Como ensina STEVEN SHAVELL ―the optimum strategy involves maximal sanctions if parties are risk neutral, but lesser sanctions if parties are risk averse‖ (Foundations of Economic Analysis of Law, Cambridge, Harvard University Press, 2004, p. 491).

104 Em estudo que levou em conta dados estatísticos sobre cartéis nos Estados Unidos, P

ETER G.BRYANT e E. WOODROW ECKARD estimaram que a probabilidade de detecção da prática seria de 13% a 17% (―Price

Fixing: the Probability of Getting Caught‖, in Review of Economics and Statistics, 73, 1991, pp. 531-540).

105 Para uma discussão sobre a aplicação do modelo de prevenção ótima de infrações às práticas

anticompetitivas, vide: WILLIAM M.LANDES, ―Optimal Sanctions for Antitrust Violations‖, in University of

Chicago Law Review, vol. 50, Spring, 1983, pp. 652-678. Sobre o assunto, MASSIMO MOTTA sustenta que uma efetiva política de prevenção de cartéis depende da existência de instituições que aumentem a probabilidade de identificação e punição de cartéis e da aplicação de sanções que levem os agentes a concluir que os benefícios decorrentes do cartel não compensam a sanção esperada caso a prática seja descoberta. Nas palavras do autor: ―For deterrence to take place, it is necessary that a firm perceives that its expected net gain from taking part in cartel, Δπ, is lower than its expected cost, which equals the probability that the cartel is being uncovered (and successfully prosecuted), p, times the fine F the firm would receive if that case realizes. In formal terms, a firm will not take part in a cartel if the condition Δπ < pF holds. Competition law and policy can affect this inequality in two ways. First, by establishing an antitrust authority (and more generally institutions) that can effectively operate against cartels, so that the probability p to uncover a cartel and make an infringement decision is large enough; second, by introducing fines F which are large enough to

Examinando-se a responsabilidade civil em matéria antitruste à luz do modelo acima descrito, a doutrina concorrencial conclui que as ações de cobrança de indenização por parte dos prejudicados podem reforçar os mecanismos de prevenção de cartéis e, desse modo, contribuir para a dissuasão da prática. Isso pelas seguintes razões:

i) as demandas aumentam a probabilidade de detecção de cartéis, por incentivarem os próprios prejudicados a denunciarem a prática e a ingressarem em juízo para fazê-la cessar e obter reparação;

ii) as demandas individuais permitem uma divisão de tarefas entre os particulares e as autoridades de defesa da concorrência, viabilizando que as autoridades poupem recursos que podem então ser empregados na detecção de outros cartéis e práticas anticompetitivas, o que também aumenta a probabilidade geral de detecção; e

iii) as demandas aumentam a sanção jurídica esperada em caso de detecção do cartel, pois, além de estarem sujeitos às sanções administrativas e criminais, os infratores também podem ser obrigados a pagar indenizações aos prejudicados em caso de condenação106.

No Brasil, embora se reconheça que a prevenção de cartéis é tarefa precípua do sistema de controle de condutas a cargo do CADE e das autoridades criminais, a doutrina também sustenta que as ações de responsabilidade civil podem dar sua

discourage prospective cartel members to engaging in the cartel‖ (On Cartel Deterrence and Fines in the EU, European University Institute, Florence and Università di Bologna, October 12, 2007, disponível em: <http://www.barcelonagse.eu/tmp/pdf/motta_carteldeterfines.pdf>. Acesso em: 23.mar.2013, p. 5).

106 Veja-se: ―There are various reasons why policy-makers find private actions attractive, and hence have

sought to facilitate them. One is that they save taxpayers‘ money. Competition authorities have limited budgets and must prioritize their enforcement actions. (…) Another reason for policy-makers to encourage private damages actions is that they contribute to the deterrence of anti-competitive practices. Effective deterrence enhances competition without costing taxpayers much money. Nowadays, hefty fines, and possible prisons sentences for individuals, already constitute a strong deterrent (though apparently still not sufficiently strong, judging by the numbers of cartels still being uncovered every year – see Chapter 9). The prospect of having to pay damages on top of the fines may further dampen any enthusiasm to form cartels.‖ (GUNNAR NIELS, HELEN JENKINS e JAMES KAVANAGH, Economics for Competition Lawyers, cit., p. 493).

contribuição na tarefa de coibir a prática. Nesse sentido, veja-se o entendimento de ROBERTO AUGUSTO CASTELLANOS PFEIFFER107-108:

―A propositura de ações de indenização possui dupla função. Em primeiro lugar, a de recompor a esfera patrimonial dos consumidores que tiveram os seus interesses econômicos lesados. Em segundo lugar possuem uma função dissuasória, ou seja, desestimulam a prática de infração contra a ordem econômica‖.

De igual modo, BRUNO OLIVEIRA MAGGI, em dissertação de mestrado sobre o assunto, defende que109-110:

―as indenizações civis (...) podem auxiliar nessa conta, pois aumentariam o valor de M, previsto na fórmula acima, desequilibrando o resultado contra os cartelistas. Ademais, surgem como uma variável com grau de imprevisibilidade muito maior que o das penas administrativas, pois para estimar as perdas, os cartelistas precisam levar em consideração todos os eventuais pedidos de indenização iniciados pelos lesados e o valor das condenações, que serão definidos caso a caso. Assim, mesmo considerando apenas o caráter reparatório da indenização, sua contribuição para o desestímulo da prática de cartéis é imensa‖.

Após estabelecidas as premissas com relação ao debate doutrinário acerca do papel da responsabilidade civil em matéria antitruste, os capítulos subsequentes

107 Defesa da Concorrência e Bem-Estar do Consumidor, Tese de Doutorado, Faculdade de Direito da

Universidade de São Paulo, 2010, p. 250.

108

No mesmo sentido, TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JÚNIOR, comentando o sistema norte-americano, também chama a atenção para a complementariedade dos objetivos de compensação dos danos e de ―enfrentamento do poder econômico‖ em matéria de ações indenizatórias: ―E nos Estados Unidos o tema vem provocando discussões no sentido de aprimorar os mecanismos usuais em private litigation que conduzam a uma descentralização do enforcement como instrumento ancilar e eficaz no fortalecimento da ação oficial no enfrentamento do poder econômico, sobretudo em sede de condutas cartelizadoras. Assim, nos Estados Unidos, por exemplo, embora ações privadas estejam usualmente focadas na reparação de danos em termos de compensação, já existem muitos processos dos quais resultam condenações que são três vezes maiores que os danos estritamente privados, pois o perfil do sistema norte-americano está antes no encorajamento às vítimas para peticionar e defender seus direitos como ―compensação‖ da própria conduta anticompetitiva. Há, nesses termos, um ostensivo e real empenho, teórico e prático, na literatura e na jurisprudência norte- americana e europeia, em estabelecer um relacionamento eficaz entre prejuízo à concorrência e danos privados‖ (―Direito da Concorrência e Enforcement Privado na Legislação Brasileira‖, cit., p. 13).

109 O Cartel e seus Efeitos no Âmbito da Responsabilidade Civil, Dissertação de Mestrado, Faculdade de

Direito da Universidade de São Paulo, 2010, p. 181.

110

Em sentido semelhante, veja-se a posição de ANDRÉ MARQUES FRANCISCO: ―(...) as ações privadas terão a

função não apenas de prover efetiva reparação aos agentes atingidos pelas práticas anticoncorrenciais, mas também a de efetivamente complementar a função repressiva promovida pela atividade estatal. No atual contexto legislativo, a utilização das ações privadas em matéria antitruste se mostra necessária como forma de complementar a função repressiva do enforcement do antitruste‖ (Responsabilidade Civil por Infração da Ordem Econômica, Dissertação de Mestrado, Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2014, p. 70).

examinarão a disciplina da reparação de danos decorrentes da prática de cartel no direito estrangeiro (direito federal norte-americano e direito comunitário europeu) e no direito brasileiro.

4.

RESPONSABILIDADE POR DANOS DECORRENTES DA