• Nenhum resultado encontrado

Entre a compensação e a emancipação: relato de uma experiência concreta Enquanto docente de Educação Especial sentimos que, muitas vezes, as nossas práticas se aproximam mais

de uma lógica compensatória do que emancipatória. Isto é, sentimos que os contextos escolares em que temos vindo a intervir nos induzem mais para uma perspetiva de “dar para compensar” do que explorar para potenciar. E, nesse sentido, sentimos também que é necessário refletir sobre as nossas práticas, questi- oná-las e, caso seja necessário, modificá-las em nome da autonomia e da inclusão dos alunos.

É sobre isto que versa a análise do caso que neste texto relatamos.

Trata-se de um aluno do 11.º ano de escolaridade, com 16 anos, portador de glaucoma congénito bilateral e irreversível – cegueira congénita. Tem atrofia do globo ocular esquerdo. No olho direito foi-lhe colocada uma válvula AHMED que lhe proporciona uma perceção luminosa condicionada. Vive com os pais e uma irmã mais velha que já frequenta o ensino superior. No ano letivo anterior veio pela primeira vez para o agrupamento, ingressando no 10.º ano de escolaridade. Segundo relatos da atual diretora de turma, o aluno foi bem acolhido pelos seus colegas de turma. Os professores do ano letivo anterior tiveram uma ação de

formação por parte de um docente de educação especial ligado ao Centro de Recursos para a Inclusão do distrito onde está situado o agrupamento. Apesar de solicitado, no ano anterior o aluno usufruiu de apoio de uma docente do Grupo de Recrutamento 910 – Educação Especial (Cognitivo e Motor) e não do Grupo de Recrutamento 930 – Educação Especial (Cegueira e Baixa Visão), formação adequado à problemática do aluno. Além disso, teve apoio a várias disciplinas por parte do docente do ensino regular, fora da sala de turma. Estes docentes, na prática, funcionaram como uma espécie de “professores explicadores”. Ou seja, o aluno teve grande parte das suas aulas em contexto fora da sala de turma, apenas com o professor da disci- plina.

Aquando da nossa chegada ao agrupamento, em novembro do presente ano lectivo (2014/2015), e devido à nossa formação inicial em Filosofia, fomos confrontados com o pedido, por parte da direção do agrupa- mento e da diretora de turma, de apoio ao aluno à disciplina de Filosofia. A possibilidade do aluno ter que realizar exame nacional à respectiva disciplina, o facto de ter, desde o início do ano letivo, outros professo- res “explicadores” em outras disciplinas e a alegada dificuldade dos docentes do ensino regular da turma em dar resposta ao aluno, foram os principais argumentos apresentados.

Acatamos a solicitação, sem discutir a validade dos argumentos. Primeiro, porque estávamos a chegar ao agrupamento sem conhecer a sua dinâmica interna; segundo, porque partimos do princípio de que o diretor de turma, os elementos do órgão de gestão, a coordenadora do grupo de Educação Especial e outros do- centes, saberiam melhor do que nós o que era melhor para o aluno.

Começamos a lecionar aulas de Filosofia numa sala à parte, fora da turma, pois julgava-se que seria o me- lhor contexto para promover o sucesso do aluno. Logo nas primeiras aulas com o aluno verificámos que este é um adolescente inteligente, com uma memória fantástica, evidenciando, todavia, uma mentalidade “povoada” de preconceitos. Em relação à condição de cego, vê-se a si próprio como um “coitadinho” que precisa de muitos apoios e da atenção de toda a gente à sua volta, com baixas expectativas em relação ao seu futuro profissional, estando renitente em ingressar no ensino superior, apesar da pressão dos pais e dos conselhos dos professores e dos seus colegas.

A autonomia do aluno, nomeadamente no que diz respeito à questão da orientação e mobilidade, foi sem- pre o principal problema identificado pelos vários intervenientes. O aluno evidenciou forte resistência ao uso

da bengala, encarada por este como um símbolo estigmatizante perante os seus pares. Apesar de conside- rar que nunca foi discriminado pelos seus colegas ou outros elementos da comunidade educativa, ele conti- nua a preferir a ajuda de terceiros, especialmente, do seu primo – aluno na mesma escola – que o leva para todo o lado que ele solicite. Esta situação revela uma mentalidade eivada de valores considerados pelos do- centes como “retrógrada”, a que não é alheio o facto de o aluno residir numa pequena aldeia com um ín- dice elevado de idosos, cujos valores parecem divergir dos valores dos seus colegas adolescentes e de grande parte dos adultos que trabalham na escola (docentes e assistentes operacionais).

Em termos de intervenção, e ainda antes da chegada da colega do grupo de recrutamento 930 – cegueira e baixa visão, procurámos estimulá-lo para o uso da bengala, incentivando-o à sua autonomia. Fizemos algu- mas experiências pelo espaço escolar, e fora dele, ajudando o aluno a manipular a bengala, mas com pouco sucesso. Esta foi sempre a principal lacuna na intervenção com o aluno, sendo apenas a partir do 3º período que a orientação e mobilidade começaram a ser trabalhadas, ainda que apenas uma vez por semana tal como como atesta a última ata do conselho de turma:

«Tal como proposto no final do 2.º período, o aluno passou a beneficiar, uma vez por se- mana, de “Orientação e Mobilidade” (90 minutos semanais) para promover a sua autonomia na deslocação da sala de aula para o espaço interior/exterior da escola. No entanto, o “x” continua a revelar muitas inseguranças e resistência ao uso da bengala. O aluno revela ainda muita dependência da “bengala humana”. Ao nível das competências sociais, foram trabalha- dos diversos aspetos, como a sua postura e atitude dentro e fora da sala de aula, controle de estereotipias e autonomia no espaço escolar. A esses níveis foram conseguidos alguns pro- gressos, que só não foram mais significativos, dada a resistência à mudança das rotinas por parte do aluno.»

A parca intervenção da escola ao nível do trabalho orientado eficazmente para a mobilidade e autonomia revela que estas são questões que requerem também uma mudança de postura dos vários interlocutores em relação a determinados hábitos adquiridos e ao modo de olhar para os alunos com deficiência. Estes são muitas vezes olhados como” vítimas” e como “coitadinhos” o que leva a atitudes discriminação positiva que em nada contribuem para a sua independência. É o caso da situação que nos chamou, desde logo, a atenção: o facto de o aluno em causa, e o respetivo primo, terem prioridade na cantina, passando para a frente da fila dos alunos que esperam pela sua vez para almoçar. Esta situação é vista como natural por parte de todos: alunos, docentes e assistentes operacionais o que nos leva a questionar: Contribuirá esta discriminação positiva para a emancipação e autonomia pessoal?

Com efeito, parece claro que a visão compensatória que está subjacente a este episódio relatado em nada se aproxima de uma conceção de educação inclusiva. Parece fundamentar esta nossa inferência a frase, que nos ficou na memória, proferida por uma funcionária da cantina: “Coitadinho, é cego, pode comer primeiro que todos!”. Será que no modo como agimos diariamente promovemos a inclusão? Que reflexão crítica exercemos sobre as nossas práticas? Não serão, neste caso, os serviços e apoios prestados a este aluno um obstáculo à sua emancipação e autonomia?

Todas estas questões suscitaram em nós inquietações. Paulatinamente, em conversas que fomos tendo com a diretora de turma, fomos revelando a nossa opinião sobre toda esta problemática.

Um dos argumentos apresentados pela diretora de turma para continuar com todos os apoios consistia no facto de os colegas professores da turma, não terem formação adequada para atender às especificidades do aluno: Alegou-se, por exemplo, não serem capazes de fazer testes adaptados ao programa de computador utilizado pelo aluno, não saberem criar estratégias de diferenciação pedagógica ou não terem tempo para apoiar o aluno, até porque tinham que preparar a turma para os exames nacionais. A colega confessou que o aluno causou “pânico” a alguns colegas!

Um outro argumento justificativo da não alteração de procedimentos foi o facto de se mudarem as estraté- gias a meio do ano. Ou seja, a circunstância de o aluno já estar habituado aos apoios individualizados, por parte de vários professores, foi considerado um argumento forte uma vez que o próprio aluno não aceitava essa alteração pois queria continuar a ter vários professores a apoiá-lo. Este elemento parece, em si, ser re- velador de que “dar mais” pode ser um passo para a dependência e não para a emancipação e autonomia.

Fazendo proveito da nossa afinidade em termos de área científica de formação de base – uma vez que a diretora de turma é formada, e docente, em Filosofia –, argumentámos que o aluno, por não apresentar qualquer problema cognitivo, não precisava de ter professores “particulares” a várias disciplinas, podendo estar integrado na turma e ter aulas com os demais colegas. Além disso, considerávamos que o “pânico” era injustificado, pois resultava apenas do confronto com a nova situação.

Fomos também discutindo este assunto com a coordenadora do grupo de Educação Especial. Esta acabou por considerar que o aluno tinha um excesso de apoios, e que estes não favoreciam a sua autonomia, reco- nhecendo, assim, que se poderiam dispensar parte dos apoios.

A ideia foi, então, arranjar uma solução que não provocasse uma rotura drástica com aquilo que o aluno já beneficiava, mas uma solução moderada, em que alguns apoios fossem suprimidos e aproveitados para ou- tras prioridades mais prementes no âmbito do grupo de Educação Especial.

Com a chegada da nova colega, reuniram-se as condições para tomar esta decisão que não agradava ao aluno, nem à diretora de turma nem ao conselho de turma. A reunião do conselho de turma do 2.º período foi uma reunião “quente” onde, sozinhos, defendemos a nossa posição. Todos os restantes colegas se insur- giam contra a nossa decisão de deixar de dar aulas individuais de Filosofia. Não abdicamos da nossa posi- ção e quisemos que ficasse registada em ata, tal como se pode verificar:

«Tendo presente a vinda de uma nova colega de Educação Especial, do Grupo de Recruta- mento 930, especializada em cegueira e baixa visão, e a necessidade de atender a outros alu- nos com maiores necessidades educativas do agrupamento escolar, o professor de Educação Especial “W” deixou de dar o seu apoio ao aluno, no final do 2.º período.

Esta decisão visou promover uma maior eficácia na distribuição dos recursos humanos na área da educação especial no âmbito do agrupamento e a promoção da autonomia do aluno, permitindo que este vivencie situações em que lhe é exigido maior esforço, potenciando a sua capacidade de adaptação a diversos contextos sociais, algo absolutamente fundamental para uma vida escolar pós ensino secundário ou na transição para a vida adulta.

Relativamente à disciplina de Filosofia, esta decisão, além de contribuir para a inclusão do aluno na turma, permitiu que este pudesse participar nas discussões e debates de temas e/ou conteúdos filosóficos com os seus pares, algo importante na aquisição de competências de índole filosófica, como o espírito indagador e a capacidade argumentativa.»

Se todo este caso revela a importância da organização interna do agrupamento, e as perceções e formas de relacionamento entre os seus intervenientes, ele é também ilustrativo da influência significativa de fatores externos e administrativos, como são exemplo: as colocações tardias, geradoras, por vezes, de instabilidade e, consequentemente, com repercussões negativas para a inclusão dos alunos. Não nos esqueçamos que a docente especializada em cegueira, chegou no final do 2.º período!