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Compor com sensações: por direção ou por digestão? Se as texturas são frequências qualitativas e se o modo como

CAPÍTULO 2. TUDO DIGERIDO 149 Secreções e vibrações: sensações como estados de criação em arte

1. A MAGIA E A VIDA:

1.1 O espírito recusa-se a conceber o espírito sem o corpo – Sensorimemórias, um modo de criar em dança

1.1.2 Uma nova perspectiva

1.1.2.6 Compor com sensações: por direção ou por digestão? Se as texturas são frequências qualitativas e se o modo como

elas passaram a emergir, a partir de sensações sem referentes fixos e fazendo os corpos variarem e comporem de modo inusitado, uma pergunta inquietava coreógrafa e criadoras- intérpretes: como manter a vibração e a força das experimentações numa situação de composição? Como fazer a direção cênica de materiais com naturezas coreográficas tão diferentes em relação a trabalhos anteriores da Companhia Perdida? Com que lógica cênica as texturas poderiam ser articuladas umas às outras? De que modo se constituiria uma dramaturgia? Como compor com essas sensações que emergiam? Sensações podem ser dirigidas artisticamente? Se os materiais têm uma natureza coreográfica diferenciada, ainda se produz coreografia? O que é coreografar sob a perspectiva das sensações? Quais são as implicações e impactos na criação de uma dança movida pelas sensações?

Tais questões atravessam os processos de pesquisa do projeto Sensorimemórias e de criação da série coreográfica Peças curtas para desesquecer. Ao vivenciar as potencialidades e as possibilidades de um corpo que se desconhece, a Companhia Perdida amplia o universo das interrogações, pois pressiona termos, conceitos e

procedimentos ao perceber que estratégias e dispositivos coreográficos conhecidos pela coreógrafa já não são suficientes para lidar com a natureza dos materiais sensíveis que emergem de suas experimentações. Trata-se, portanto, de um processo também de descoberta de outros modos de compor por esgarçamento, entrelaçamento e alterações tanto no entendimento técnico, quanto experimental e conceitual de abordagem do corpo e da dança. Os paradoxos instalaram-se, pois como pontuado por Juliana Moraes, em seu depoimento sobre as descobertas de suas sensorimemórias, era difícil não retornar aos mesmos registros, muito embora já se havia entendido que para dar forma a esse tipo de energia, de vibração, de um corpo de sensações, de provocação da sensorialidade, era preciso mexer no método.

Uma das necessidades que as bailarinas sentiram, após o trabalho com Ana Terra e nas experimentações posteriores com objetos, foi a de não fazer mais os aquecimentos que precediam os ensaios em conjunto. As texturas eram singulares e solicitavam uma preparação do corpo diferente para cada uma delas. Esse era um jeito de começar o trabalho marcadamente distinto de outros projetos da companhia. Até então, os aquecimentos eram coletivos, feitos com sequências de movimentos executadas em uníssono, com variações e alterações de velocidade sempre seguidas em grupo. A partir da percepção do que eram as sensorimemórias, as bailarinas compreenderam que cada

textura, em sua criação e desenvolvimento, exigia uma abordagem específica do corpo,

por vezes com longos períodos de pausa, outras com um exaustivo mover das articulações, um tipo específico de tônus ou um aquecimento de voz, conforme a tônica de cada experimentação que caminhava para uma composição. Assim, cada frequência qualitativa de movimento pedia uma disponibilidade singularizada. O processo passou a direcionar efetivamente o trabalho.

Curioso é que, embora os materiais descobertos fossem demasiadamente individuais e pessoais, apontando para uma abordagem mais particularizada, paradoxalmente tratavam-se de solos colaborativos, como as bailarinas fazem questão de registrar. As criações tiveram interferência dos pares das duplas, na aplicação dos objetos, no rememorar as experimentações e no delinear das texturas. Todas assistiram, comentaram, trocaram impressões e deram retornos sobre o modo como os corpos desenvolviam suas danças. Foram longas horas de maturação do material. Houve momentos em que cada uma trabalhou separadamente e outros em que todas estiveram juntas observando o desenvolvimento de cada textura.

Eram três encontros semanais da companhia, cada um com 5 horas, e um ensaio individual em um outro dia, durante quase dois anos, além do fato de que cada uma tinha consigo um disco rígido (HD) com a gravação de todos os ensaios. Um processo intenso que implicou um fazer, no qual cada criadora-intérprete se sentiu exaustivamente vista,

exposta e desnudada, e ainda desenvolveu um olhar sensível, apurado e o mais desconectado possível de julgamentos, sobretudo durante os momentos em que os solos eram compartilhados. Cada bailarina passou a conhecer a si e às outras de maneira profunda, em suas qualidades artísticas, cinéticas, sensoriais e até mesmo pessoais. A tal ponto que elas adquiriram a habilidade de saber quando uma textura era de fato movida pelas sensações e, por outro lado, quando isso não acontecia, embora houvesse movimento.

Os ensaios tornaram-se lugares de encontro, no qual se exercitava o respeito pelo material de cada uma, pelas impressões corporais que se evidenciavam de modo singular e que era visto como um trabalho de criação. Érica Tessarolo pontua:

Tudo que foi trabalhado tinha muita profundidade. Então você via no outro coisas muito profundas e você era visto em lugares muito profundos, o que nem sempre era confortável. Chegava a ser um desconforto muitas vezes. (...) Eu entendo que existe um lugar delicado de trabalho quando você tem esse tipo de abordagem. Um lugar delicado porque não é um lugar que a gente acessa socialmente ou a gente acessa para trabalhar. Mas eu identifico que existe sim o que eu chamo de profundidade. As coisas estão muito para lá do que é o corpo. Tanto para dentro como para fora. É muito maior do que a gente imaginava que fosse. E eu entendo essa delicadeza, mas as vezes eu acho que existe um pudor. Acho que existe muito controle também. (...) A gente tinha muita intimidade, muita confiança34.

Era como estar sem pele, diz Isabel Monteiro. Para ela, o processo foi um “mergulho de cabeça” em um universo de sensações demasiadamente íntimas, sem que se soubesse onde seria possível chegar. Ela se sentia descontruída, uma vez que não identificava a movimentação como bonita, bela e nem tecnicamente estruturada. Era uma dança feita de tremores, gritos, trabalhada no limiar da respiração, no perder o fôlego. Portanto, sentia-se angustiada com o que estava a elaborar esteticamente. Por isso, foi difícil perceber o momento de tornar aquele material uma criação a ser apresentada ao mundo. Parecia um trabalho desprotegido, a expor uma faceta de si raramente mostrada. A coragem, nesse contexto, vinha da coesão de grupo. As artistas fortaleciam-se umas as outras, uma vez que todas elas acreditavam na potência dessa dança que emergia. Esse espaço de trocas tão intensas e demoradas, na perspectiva de Carolina Callegaro, se deu sobretudo em função da dificuldade de Juliana Moraes em direcionar materiais tão novos, estranhos e pessoais. Por diversas vezes, a diretora não sabia como encaminhar os ensaios seguintes e dar seguimento às diversas tentativas de composições entre as

texturas. “Um espaço que se abriu para a gente descobrir outra coisa e não o que já

sabia”, constata Carolina Callegaro. Inerente a esse novo jeito de trabalhar colaborativamente estava a autonomia de cada criadora-intérprete em acatar ou não as sugestões feitas pelas colegas. Não havia uma palavra final centrada na coreógrafa.

Esse processo mudou o impacto da direção, já que Juliana Moraes não era a única responsável pela concepção e pela definição estética da criação. Embora confuso, Isabel Monteiro entende que foi um momento bastante rico, por ter sido um trabalho amplamente compartilhado e, ao mesmo tempo, focado nas singularidades das texturas. Se por um lado Juliana Moraes tinha dúvidas sobre o que fazer, por outro, o grupo encontrou um modo de produzir instigante e até prazeroso, mesmo quando o acesso às

sensorimemórias nem sempre fosse emocionalmente e fisicamente confortável.

O que decorreu dessa sensação de estar perdido, de não saber como direcionar as

texturas e, ao mesmo tempo, do desejo compartilhado de lidar com essa corporeidade

disforme e potente, foi uma série de novas experimentações com o uso de improvisação livre em grupos, no intuito de criar possíveis relações entre os materiais, em suas frequências qualitativas, como se umas pudessem dialogar com as outras. As improvisações aconteceram também com o uso de bancos de madeira de 150 centímetros de comprimento por 30 centímetros de largura, para investigar as texturas em outros níveis do espaço e mesmo para criar algumas situações espaciais para possíveis interações, muito embora tenha se mantido o predomínio dos movimentos no nível baixo e as conexões entre as bailarinas não tenham se efetivado. Uma outra tentativa de criar relação entre os materiais foi a preparação de um roteiro que os aproximava por níveis diferenciados de vibração. Nesse caso, seguindo uma ordem definida por Juliana Moraes, cada bailarina era o mestre do jogo de improvisação, conduzindo uma parte da experimentação que, em seguida, passava a ser direcionada por outra e, assim, sucessivamente. Uma espécie de brincadeira nos moldes do “siga o mestre”, na qual o objetivo era contaminar-se da movência de quem ia liderando o improviso.

Sobretudo, foi um momento, no processo de pesquisa das sensorimemórias, de dar consistência às texturas, definindo sua identidade, ou seja, os elementos significativos que as singularizam, sendo relativamente constantes para que elas se concretizassem e, simultaneamente, abertos o suficiente para variar. As possibilidades de variação eram percebidas a partir da noção de eixos qualitativos de identidade, desenvolvida especialmente durante esse projeto de pesquisa da Companhia Perdida. Tratou-se de definir, assim, os eixos fundamentais da textura em torno dos quais os movimentos se realizavam. Segundo Juliana Moraes,

uma textura de movimento pode ter como eixos fundamentais estabelecer-se nos níveis baixo e médio, com um balanço constante no tronco e gestos muito lentos das mãos proximais ao osso do esterno. Mantendo-se essas características, pode ser possível alternar posturas das pernas e torções do tronco, executar impulsos nas transferências de peso e variar entre olhar interno e externo. Somente a partir do exercício constante e da observação aprofundada é possível identificar os eixos de uma textura e descobrir possibilidades de variação. Muito provavelmente, os limites do material só são de fato

descobertos quando o trabalho se estica demasiadamente e a textura se deforma em outra coisa. Nesse momento, é preciso escolher trabalhar ainda criativamente dentro dos limites encontrados ou assumir a deformação para que outra identidade de movimentos surja, diferente o suficiente da textura anterior para que se torne uma nova textura (Moraes, 2012d, p. 55).

Assim, deixamos que os aspectos formais dos movimentos sejam derivados exclusivamente de suas qualidades, como se a forma fosse decantando a partir da repetição da experiência. (Moraes, 2012a, p. 2).

Carolina Callegaro e Érica Tessarolo acessavam as texturas pela memória da sensação do corpo, combinada com improvisação semi-estruturada, na qual havia o esboço de um roteiro de gestos repertoriados e, ao mesmo tempo, abertura para movimentos que surgissem ao longo na movência do corpo dentro das frequências qualitativas elencadas. Ambas não formalizaram blocos sequenciados, diferente de Isabel Monteiro, que preferiu fazer um encadeamento definido para o surgimento e a finalização de cada uma de suas

texturas, embora também mantivesse a improvisação semi-estruturada em relação à

gestualidade que ia se definindo entre o início e o fim de cada bloco. Flávia Scheye e Juliana Moraes elencaram texturas, entre as que haviam emergido nas experimentações, e preferiram aprofundar alguns aspectos mais particulares de seus materiais coreográficos, tendo como referência um modo de começar e de terminar, também deixando em aberto o que se passava entre um momento e outro.

Figura 23 – Desenho da artista plástica Márcia Moraes, feito durante o processo de pesquisa do projeto Sensorimemórias (2011/2012) e que ilustra o material gráfico da série coreográfica Peças Curtas para Desesquecer (2012).

Um pequeno balanço da coluna, tendo clara a memória da sensação, a imagem que a gerou e/ou a qualidade do movimento – peso, tônus, tamanho do corpo no espaço, desenho do movimento –, eram dispositivos de Carolina Callegaro para iniciar sua dança. Dentro da caixa de papelão, com o tempo a bailarina percebeu que, embora a lembrança geradora da sensorimemória fosse desconfortável, a sensação de fazer a textura tornou- se agradável. Também notou que na elaboração do seu processo de criação, a memória

era mobilizada sempre de um ponto diferente a cada ensaio, sendo geralmente a última experiência a que passou a rememorar no ensaio seguinte. Era um exercício de perceber a qualidade do movimento e também de notar qual era o mover que insistia em permanecer por mais tempo. E, nessa repetição, o desejo era manter a potência o mais próximo possível em relação ao momento em que as texturas surgiram.

A atuação profissional como improvisadora reforçou uma preocupação de manter viva a experiência, de se ater ao que se passa no momento mesmo do mover, tal como nas vivências advindas do Contato-Improvisação35, onde pessoas dançam juntas, mantendo partes do corpo ligadas, num jogo no qual, no acontecendo desse encontro, cada um toma as decisões sobre a maneira de responder e propor movimentos para manter um fluxo entre corpos. As sensorimemórias, para Carolina Callegaro, pediam uma combinação sensório-motora semelhante, em que o fluxo da dança se fazia pela percepção dos movimentos conectados às sensações, trazendo a atenção para os caminhos por eles anunciados, tanto pelo protagonismo das sensações memoradas como pelo tipo de contato de seu corpo com a caixa de papelão.

Figura 24 – Desenho da artista plástica Márcia Moraes, feito durante o processo de pesquisa do projeto Sensorimemórias (2011/2012) e que ilustra o material gráfico da série coreográfica Peças Curtas para Desesquecer (2012).

Ao repetir a experiência com os objetos, Érica Tessarolo foi percebendo estruturas de corpo que se mantinham. Depois, sem os objetos, ela retomava tais estruturas para que as sensações voltassem. O corpo encontrava uma sintonia que fazia com que os registros sensoriais pudessem ser novamente acessados. Conforme fazia a movimentação, ela percebia por onde o objeto havia passado pelo seu corpo e de que maneira a musculatura era acionada. “O material concretizou uma fisicalidade”, constata a bailarina. Trata-se de colocar o corpo em uma outra lógica de funcionamento.

35 Contato-Improvisação é um método desenvolvido pelo dançarino Steve Paxton. Em São Paulo foi difundido amplamente

Quando você estuda uma técnica, ela tem uma lógica que você reproduz para fazê-la. Só que nesse caso, por exemplo, o jeito que eu saia do chão ou voltava para ele, era uma lógica que aquele material trazia. E como são coisas e não pessoas, que dobram,

quebram, caem e torcem de um jeito que não respeita encadeamento ósseo, você acaba descobrindo outras conexões musculares e ósseas. Os materiais mexeram nessa lógica de corpo, por isso que ficaram corpos estranhos. E a gente falava:

“Nossa, que esquisita essa dança”. Eu acho super bonito, mas tinha essa questão de ser uma coisa esquisita e feia. Teve essa questão em algum momento, só que munida de outra coisa. (...) Eu achava interessantíssimo porque é munido de verdade. A gente se

questionou, mas a gente assumiu. E esquisito, é torto, mas é uma estética a ser respeitada e valorizada. (...) Era muito diferente do que todas nós já tínhamos dançado,

inclusive na companhia. O Antes da Queda tinha esse lugar, era belo, tinha uma mitologia do feminino. Era muito aceito nesse lugar, por ser belo. A gente foi para o avesso. (...) O que vem depois muda36.

Essa fisicalidade de que trata a bailarina implica em perceber o pulsar que sustenta a dança, a latência presente no corpo, responsável por fazer a textura acontecer. Com exceção da experiência com o metal, os demais estudos implicavam em movimentos rápidos. A duração das experimentações de Érica Tessarolo foi uma questão discutida na direção de Juliana Moraes, que dizia querer um tempo mais alargado, por considerar interessante que o material pudesse ser mais degustado por quem via. Foi o início da tentativa de um ajuste entre tempo e sensações e de manter viva essa latência. “Era como se ela me dissesse: é uma latência, mas você tem controle sobre ela. Então você pode permanecer mais tempo”, lembra a bailarina. Para ela, esse ajuste foi diferente para cada uma. Em relação às suas texturas, ela acredita que sua facilidade em acessar um estado transitório entre consciente e inconsciente, entre afinar pensamentos e movências, durante o dançar, pode ter contribuído para experimentar os ajustes solicitados pela direção – mesmo com alguma resistência em manipular os estudos no eixo da temporalidade, por acreditar que a duração dos estudos deveria preservar o tempo da própria sensação que emergia.

No processo de retomar o corpo e a dança ao longo dos ensaios, Érica Tessarolo foi sendo povoada e contaminada de outras obras que incitavam sua sensorialidade. Loie Fuller surgiu como referência a uma sensação de atravessamento, de um vento, de fluxo de movimento. Isso aconteceu quando a criadora-intérprete via os vídeos dos ensaios, nos quais percebia-se em dinâmicas tão aceleradas que borravam a imagem do seu corpo e a remetiam aos tecidos de Fuller. “Era uma abstração do corpo e do movimento”, diz. Outra referência era a obra Luz que cega_Sentado, da artista visual Tatiana Blass37, na qual o calor emitido pela luz de um refletor derrete uma escultura em microcristalina e bronze fundido. Essa criação juntou-se a uma impressão de infância da bailarina, na qual ia tornando-se pequena, ao gesto figurativo e abstrato de do artista plástico Francis

36

Érica Tessarolo, bailarina. Entrevista realizada em 20 de Agosto de 2015, em São Paulo (Brasil). Informação verbal. Antes da Queda é um dos espetáculos da Companhia Perdida, cuja estreia foi em 2008.

Bacon, aos Trepantes de Lygia Clark, o vento forte e a brisa numa plantação de bambu que curva e retorna, o mexer desengonçado de uma galinha, o caminhar sobre cascas de ovos, a peça Loss, do artista visual Antony Gormley38, com a escultura de uma pessoa em pé, cuja cintura escapular está curvada para frente. Uma intensa mistura imagens e situações.

Quando eu fazia a dança que tinha esse apoio imagético, eu derretia, mas eu queria ficar em pé. Uma sensação que eu tive em vários ensaios. Era desmontar e construir. Em alguns momentos a gente questionou se eu não poderia ficar em baixo. E eu dizia “gente eu preciso ficar em pé”. Era uma necessidade, talvez a ver com aquela necessidade de encontrar o eixo (...). Era físico, eu precisava voltar a sentar. Se eu ficasse lá embaixo, o emocional que aquilo despertava em mim não era uma coisa com a qual eu queria ir embora. (...) E eu chamei essa dança de lugar. O corpo como um lugar a ser habitado. (...) O corpo como extensão do movimento. O movimento existe e o corpo é extensão dele. E não o corpo que faz o movimento. Isso é bem interessante, faz parte do trabalho da Key Zetta e Cia.39 e diz respeito a esse lugar40.

As texturas de Érica Tessarolo foram se entrelaçando umas às outras, de tal modo que as marcações também passaram a ser o modo de começar e de terminar. Entre um momento e outro, sua dança era movida por imagens e reverberações sensoriais, tanto relativas às experimentações com os objetos como ao universo de referências a elas associadas ao longo dos ensaios. Em uma das estratégias coreográficas com o uso de um banco, mantida posteriormente, ela derretia até o chão para, em seguida, voltar à postura inicial, como a passar um vídeo de trás para frente. Da textura movida pela relação com o metal, houve a opção por um duo com Carolina Callegaro, a qual torcia, articulava, pressionava um metal ao outro, soltava-os ao chão, depois saia de cena quando a bailarina estivesse contaminada pela sensação desse objeto em seu corpo. Depois o solo seguia com as reverberações dessa movência, com os metais dividindo a cena com ela. Pode-se, inclusive, dizer que esta é uma relação em trio, mais do que de um duo, tal a presença viva de um corpo a implicar na composição do outro.

Como as sensorimemórias solicitavam foco em um corpo sensível, para Flávia Scheye houve um esforço de todas as criadoras-intérpretes em manter esse lugar. Segundo ela, a questão que guiava o grupo era: como manter um corpo sensível ao que está acontecendo naquele momento, dentro de uma coreografia determinada? Havia uma