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Desabituar, provocar, perder o fôlego: Estudos de Isabel Monteiro

CAPÍTULO 2. TUDO DIGERIDO 149 Secreções e vibrações: sensações como estados de criação em arte

1. A MAGIA E A VIDA:

1.1 O espírito recusa-se a conceber o espírito sem o corpo – Sensorimemórias, um modo de criar em dança

1.1.2 Uma nova perspectiva

1.1.2.4 Desabituar, provocar, perder o fôlego: Estudos de Isabel Monteiro

Uma coberta de pelúcia. Num emaranhado, o tecido é colocado em uma parte da pele e girado. Depois, é aberto e deslizado para outras partes do corpo, por dentro da roupa, passando na pele do ventre, plexo solar e pescoço. Sensação de um movimento contínuo, suave e no universo da torção que ganha vida. A pelúcia segue a deslizar pelas costas e pernas, algumas vezes é abraçada por Isabel Monteiro. De bruços, apoiada nos antebraços e mãos, ela empurra-se para trás, deslizando o corpo pelo chão. Seguindo a fluidez do movimento, por vezes a cabeça entra e sai por entre os braços, os quais são sempre amplos. Caminhadas sobre os joelhos, no nível médio. Coluna sempre em movimento, pernas passando por dentro umas das outras, as vezes uma mão puxando uma perna. Combinações cinéticas que se acumulam no mover do corpo. Um olhar sempre no sentido do nível alto, deixando em evidência o branco do globo ocular. Queixo voltado para baixo. Deitada na lateral do quadril, apoio num dos antebraços, pernas alternam-se riscando o chão, um braço é lançado para trás, passando por cima da cabeça. Ao mover-se, uma melodia cíclica emerge como estratégia para desprogramar um padrão sensório-motor fluido e tão habitual, previsível e característico da bailarina. Perder e retomar o ar junto à melodia. O corpo encontra os locais de passagem dessa canção pela musculatura. As vezes é com uma onda a passar, em outras duas em simultâneo, em movimentos sem paragem. Descoberta de suspensões e quedas com a respiração. A melodia é cantada até que se perca o fôlego, levando cada expiração ao seu limite. Em seguida, uma queda. E o corpo volta a deslizar de maneira macia, para frente, para trás, girando em torno de si, subindo e descendo de nível até que estabiliza no nível alto. Para continuar com a sensação da pelúcia a deslizar pelo corpo, um dos pés arrasta-se no chão. O fluxo e as acumulações de movimento seguem sem cessar.

Figura 15 – Imagens still de gravações do projeto Sensorimemórias (2011). A criadora-intérprete Isabel Monteiro em experimentação com coberta de pelúcia.

Linhas interligando mãos e pés. Mãos com movimentos delicados, leves, próximas ao rosto. Por vezes uma das linhas rompe-se. O mover é do centro para as extremidades, as quais ganham extensão, com um aspecto arredondado. Outros fios rompem-se. Tempo sustentado. Em alguns momentos, apoio somente nos ísquios, enquanto braços e pernas elevam-se. Em pé, as mãos seguem a passar pelo rosto e depois os braços abrem-se lateralmente, com os cotovelos dobrados. São movimentos simples, sustentados, delicados. Transferências de peso entre uma perna e outra, cabeça que se volta para trás. Lentidão, sutileza. Fios que se soltam, que se enroscam em outras partes do corpo, deslizam pela pele, pela cabeça, pelo pescoço, pelo rosto. Braços que se expandem e rompem outras linhas. O corpo sobe e desce, mantendo a mesma relação entre suavidade, romper de linhas, novos entrelaçamentos, mãos que se aproximam do rosto e braços que se expandem. Assimetrias são inseridas, com investigação das direções laterais. Força distribuída entre o plexo solar e o baixo ventre e o apoio dos pés para não enrijecer as mãos, que seguem suaves a dançar com as linhas pelo espaço.

Figura 16 – Imagens still de gravações do projeto Sensorimemórias (2011). A criadora-intérprete Isabel Monteiro em experimentação com linhas.

Um pedaço de tronco de árvore. Uma lasca seca e escura cujo cheiro é de uma infância longínqua. Casa de avó, repleta de móveis de madeira maciça, com círculos infinitos nos detalhes do design das peças. Ao tentar apoiar-se no pedaço de tronco, na passagem para o nível alto, surgem tremores incontroláveis em uma das pernas cujo pé está em meia ponta. Essa imprecisão na musculatura aciona uma nova textura, cujas sensações são associadas às mãos e pernas trêmulas da avó, quando não encontra um apoio estável. Coluna voltada para frente, cabeça próxima ao plexo solar. Braços para frente, coluna e cabeça girando lateralmente em direção à diagonal trás alta e retornando ao centro. O corpo escorre para o chão. A perna direita segue trêmula, enquanto as outras partes estão mais relaxadas, com peso entregue ao solo, por onde a bailarina desliza. Sem parar, seus movimentos são sequenciados, onde cada segmento corporal se acomoda em função de outros até que o corpo começa a girar como se os braços dessem nós em si mesmo, a produzir uma inquietação crescente. Pausa para um espreguiçar.

Figura 17 – Imagens still de gravações do projeto Sensorimemórias (2011). A criadora-intérprete Isabel Monteiro em experimentação com pedaço de tronco.

Pregadores de roupa/molas, colocados nos dedos das mãos e pés, depois plissando diversas partes da pele das pernas, do ventre, da cintura, dos braços, do pescoço. Punhados de pregadores/molas dispostos no baixo ventre, no plexo solar. Os dedos escancaram e abrem espaços entre si. Outras plissagens no nariz, ombros, cabelos. Boca tensionada para baixo, tensão entre as sobrancelhas. Pequenas contorções por todo o corpo. Apoio do corpo nos calcanhares e nas escápulas, quadril levanta, deslocamento lateral. Respiração forte, pontuada e somente pelo nariz. Investigação de apoio nos cotovelos. Deslizamento sobre os ísquios, com as costas arqueadas para cima, fora do chão. Mãos começam a guiar o movimento. Sentada, ponta dos dedos das mãos, ísquios e calcanhares tocam o chão. Deslocamento em blocos: bacia, tronco, calcanhares. Respiração forte e constante. Um jogo interno é aberto: sensação de tortura e uma necessidade de precisão nos movimentos. Projeção do peito, pescoço alonga-se posteriormente, esterno recolhe-se. Apoio nos dedos das mãos e calcanhares, elevação do quadril e deslocamentos em diferentes direções. Pressão da sola dos pés no chão para subir ao nível alto, dedos saem do chão. Nas mãos, os dedos seguem espaçados e angulosos, porém começam a formar desenhos, quando algumas pontas se tocam.

Tensão e tremores ao mover-se, sobretudo na região do plexo solar. Retorno aos níveis baixo e médio, uma série de variações emergem tendo como base os apoios nos cotovelos e calcanhares, com deslocamentos alternados pelo quadril, ombros e cabeça em diversas combinações de segmentos do corpo. Contrações e assimetrias são incorporadas ao movimento. Tremores ao longo da coluna. Cruzamentos de braços, giros em torno do próprio eixo. Sensação de ser um caranguejo com variadas possibilidades de articulações e desarticulações.

Figura 18 – Imagens still de gravações do projeto Sensorimemórias (2011). A criadora-intérprete Isabel Monteiro em experimentação com pregadores de roupa/molas.

Um campo de imagens e sensações, como numa noite de insônia. O universo onde as

texturas se formam é assim descrito por Isabel Monteiro, num misto entre imprecisões,

tremores incontroláveis, contrações, assimetrias e, ao mesmo tempo, de uma necessidade de precisão e claro sequenciamento das partes do corpo. Um movimento cíclico e incessante entre consciência e inconsciência. Das primeiras lembranças, do início do projeto Sensorimemórias, nada resta. Há memórias de infância que emergem no momento mesmo das experimentações com as linhas e o pedaço de tronco, sendo uma mescla de sensações produzidas pelos materiais e outras de fatos rememorados nesse encontro entre corpo-humano e corpo-objeto. E há memórias de sensações vividas somente na relação com a coberta de pelúcia e os pregadores/molas. Com o tempo, as

texturas afastam-se das memórias que as geraram, corporificam-se, tecem-se, urdem-se,

fundem-se umas às outras, nesse ciclo entre mover-se e não saber como parar.

Encontrar a gravidade depois do agudo, vibrar o baixo ventre, intestino grosso, útero, vagina: as cavernas onde escondemos alguns monstros, onde me contorço e me recolho. (...) As quinas dos ossos, tão duros quanto muros, tão quina quanto encontro de dois, tão rígido quanto o que pode, de súbito, esfacelar. Tudo isso lido com mais

velocidade, alguns saltos para respirar, a melodia em nove tempos que não sai da cabeça, como faço para que você ouça, como não ferir os seus ouvidos, como não perder de vista, como parar de mexer depois de tudo isso. E ir escorrendo, como escovando os músculos, os ossos e as palavras todas, como Manoel de Barros, o espaço cheio e eu vazia. (...) Afinal, depois de meses de pesquisa sobre memória, percebemos que ela não é algo estanque e encaixotada, e sim um estado latente, que vez ou outra irrompe na consciência. Então, o exercício dessa dança seria como um ato de lembrar, ou de “desesquecer”. E como cada dia é diferente do outro, deve haver um espaço que comporte diferenças que são somadas à dança construída no presente (Monteiro, 2012, pp. 106-108 – grifos meus).