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CAPÍTULO 2. TUDO DIGERIDO 149 Secreções e vibrações: sensações como estados de criação em arte

1. A MAGIA E A VIDA:

1.1 O espírito recusa-se a conceber o espírito sem o corpo – Sensorimemórias, um modo de criar em dança

1.1.4 A existência palpável da vida

– Estou onde estou? Aquietar o monólogo do pensamento por Antonio Januzelli

As pessoas vão chegando, se cumprimentam, conversam, bebem água, umas alongam- se, outras seguem conversando umas com as outras. Todos espalhados pela sala de ensaio, as bailarinas da Companhia Perdida e seus convidados – os bailarinos e atores Carolina Nicolino, Fabrício Licursi, Gustavo Sol, Laila Padovan e Renata Aspezi –, bem como o ator e diretor Antonio Januzelli, o Janô, professor da Escola de Arte Dramática e do Departamento de Artes Cênicas da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP), convidado para o terceiro laboratório do Projeto

Sensorimemórias, que aconteceu entre os dias 31 de outubro, 1, 3, 7 e 10 de novembro

de 2011. De repente, uma sensação estranha, um certo silêncio começa a se espalhar. Todos a espera de um sinal claro de que as atividades seriam iniciadas. E sem que ninguém diga nada, uma roda se forma em torno de Janô. Isabel Monteiro começa a se perguntar:

O que está acontecendo? Porque ninguém fala nada? Ai, que vontade de rir! As pessoas estão se olhando. Será que é para olhar? Vou olhar para o Fabrício. Só um pouquinho, não posso rir, não posso rir! Respira fundo. O Janô tá olhando para a Juliana. Acho que não consigo olhar para ninguém. Pronto; olhei um pouquinho. Pronto. Nossa, que olho fundo! Olhei o Janô. Eu olhei o outro olhando para mim. Eu me olhei. Eu vi meu reflexo no olho do outro. Eu fiquei séria (Moraes, 2012a, p. 20).

Sem fazer distinção entre arte e vida, o laboratório de Janô já havia começado sem que um exercício fosse formalizado. Nenhuma proposta foi verbalizada. Os olhares começaram a se cruzar e, intuitivamente, um círculo foi formado e instaurou-se um tempo para que cada um pudesse demorar-se nos olhos uns dos outros. Segundo Juliana Moraes (2012d), perguntas foram “sentidas” pelo grupo e tornaram-se fundamentais para abrir o trabalho que seria feito ao longo dos dias: quem sou eu?, quem são essas pessoas?, como são essas pessoas?, permito-me olhar?, permito ser olhado? Uma cumplicidade conectou os artistas.

Era preciso desalojar-se de si, tornar-se outro. Transitar entre o corpo físico – anatômico, do ver, do apalpar – e o corpo sutil – do olhar, do toque –, num tempo sem tempo. O primeiro gesto? Concentrar-se, “co-centrar-se”, estar dentro de si, porque afinal quase sempre se está do lado de fora de si mesmo. Desalojar-se de si deriva do mergulho profundo em si, diz Janô (Januzelli, 2009). Seu desejo? Que seja possível não pensar, aquietar o monólogo automático do pensamento para, enfim, estar-se onde se está, sem julgamentos, sem fissuras, a viver o presente como um tempo vivo.

Cuca e corpo, a divisão a qual estamos submetidos e não acordamos. Como reparar essa fissura? (...) Olhar, olhar mesmo. Tocar, tocar mesmo. Na hora de comer, comer. Na hora

de estar contigo, estar contigo. Jamais abandonar o “eu estar comigo mesmo”. A cada instante. O real é o instante, único, sempre (Januzelli, 2009, p. 35).

O foco do trabalho é a presença cênica que advém, de acordo com o ator, de uma transparência possível pelo exercício de desprogramar-se, pelo ócio e pela autoventilação, e desmecanizar-se, num tomar de consciência de ações automatizadas no palco e na vida. Estar em cena é, ao mesmo tempo, ser em cena, ser a figura na qual o artista se transmuta. Segundo ele, é notório que personalidades de reconhecida atuação de diferentes especialidades têm afirmado que o último refúgio do homem, na atualidade, encontra-se no continente das artes. “Como penetrar profundamente nessa região?”, pergunta-se (Januzelli, 2009, p. 35).

A presença de Janô nesse momento da pesquisa parece ter contaminado os artistas por uma dimensão vivencial e filosófica, a um só tempo, numa mesma dobra de fluxos entre arte e vida, num confluir entre artista e pessoa. Uma contiguidade que só se aprende, segundo ele, por meio de exercícios. “Só aprendo a amar amando. Quanto mais amo, mais refinada se torna a minha qualidade de amante”, diz (Januzelli, 2009, p. 34). A frase é uma deixa que parece conduzir a uma paráfrase dedutiva: quanto mais se “artista”55, mais refinada se torna a qualidade de um artista. São 40 anos de uma longa experimentação em arte, influenciada pelo desafio de fazer um teatro sem palavras, em tempos de ditadura política e militar no Brasil, em fins dos anos 1960, tendo como foco um trabalho corporal que demarcou os interesses de Janô.

O ator propôs o exercício de “artistar” por meio de improvisações com temas livres (livre- livre) e com temas ou qualidades pré-definidos (livre). Atividades atravessadas, a todo instante, de perguntas tão simples quanto complexas: quem é o ator?, qual a diferença entre o ator e o homem? Como se dá a relação entre o indivíduo, o ator e a personagem?, como deve ser o treinamento do ator?, como dar forma a uma cena sem perder a espontaneidade vista em jogos simples, como pular corda? (Moraes, 2012d). Segundo Juliana Moraes, no cerne das questões está a crença de que o trabalho do ator implica numa investigação profunda em torno do “homem”. “Para Janô, o mais importante é o estado de presença, não exclusivamente cênica, mas na Vida. “Quando não se está é um tempo morto” é uma de suas frases”, destaca a coreógrafa (Moraes, 2012, p. 58). Para Érica Tessarolo,

O Janô é um senhor muito jovem que traz consigo a pulsação das perguntas não respondidas. (...) Meu caderno ficou esquisito, ganhou até desabafo, um não sei quê metafísico, filosófico, humanitário, e uma frase entre enormes aspas: o exercício é

55

Artistar é um verbo que não faz parte do dicionário da língua portuguesa, mas que é usado pela pesquisadora brasileira Sandra Mara Corazza no livro Artistagens: filosofia da diferença e educação (2006). Ao transformar o substantivo “artista” em verbo, a autora abre possibilidades de variação em torno dos modos de efetuação inventiva do profissional das artes.

lembrar-se de si. Eu “sensorimemória”, muito prazer. Como, Por quê, Pra que? (Moraes, 2012a, p. 21).

Diante de tantas questões, efervescentes há quatro décadas de experiência profissional, Januzelli desenvolveu uma metodologia cuja equação contempla: o caminho dos exercícios; a sensibilização dos corpos físico e sutil; o trânsito entre os aspectos motores/físicos, emocionais e mentais, devendo o homem dar primazia à compreensão do centro emocional; e a escala dramática, na qual o foco está na escuta da gradação dos sentimentos e emoções cotidianas e na acuidade em torno dos cinco sentidos do corpo para fazer emergir o sexto sentido, o da intuição. Assim, o laboratório tencionou passar pelas seguintes etapas, descritas pelo ator no texto O caminho do homem ao ator

e o retorno:

Laboratório da Chegada, do Aquecer/Incandescer/Desaquecer, do Brincar, do Improvisar, do Resgatar as Vivências, do selecionar os Embriões e Núcleos Dramáticos, do Articular esse material, do Repeti-lo, do Expô-lo, do Registrar a Experiência Vivida, do Refleti-la, do Adormecer, e do Recomeçar no dia seguinte, e tudo isso sem se apartar do nosso cotidiano no mundo (Januzelli, 2009, p. 35).

Alguns princípios, entre uma série elencada por tópicos, no referido texto, que orientam os procedimentos de trabalho de Janô são: silêncio, percepção de si e do outro, atentar- se para as transições entre movimentos e ações como ondas, não romper o fluxo das ações, entrar em um “não-tempo” compreendido como o “vórtice que se manifesta quando se atinge o estado incandescente” (Januzelli, 2009, p. 36), desconstruir castelos, expor-se, desmecanizar-se, desprogramar-se, circular entre o eixo do indivíduo-ator no cotidiano, o eixo do ator indivíduo no palco (sensível, aberto às relações que se são no instante da cena) e o eixo da personagem ou figura cênica criada (colocar-se em um contexto). Destaque para um deles: “das chaves” a serem caçadas para abrir “tesouros surrupiados”. Segundo Carolina Callegaro,

Janô disse, que o trabalho do artista cênico de hoje não é mais o de representar algo que seja externo a ele, mas sim o de se expor, o de expor sua pessoalidade (...). E neste sentido, repensei com muito carinho e cuidado na pesquisa que estamos fazendo agora na Companhia Perdida, já que escolhemos um assunto e um caminho que evidenciam esse expor-se: escolhemos buscar em nós mesmas, no que está gravado nos nossos corpos enquanto memória e sensação, assunto e material para nos comunicarmos e compor o discurso de uma nova peça da companhia. E como fazer para tornar esses materiais, que surgem da subjetividade de cada uma de nós, capazes de conversar com o público? Como não ficarmos fechadas em nós mesmas, falando apenas de nossos universos pessoais? (...) Este trabalho deve acontecer no sentido de que o Homem lembre-se de si; exercite a consciência de si mesmo e do que está ao redor, a escuta de seu corpo, do que o afeta e de como o afeta; silencie seus pensamentos analíticos e julgamentos; neutralize seus condicionamentos e tensões; desmecanize as ações (retire delas a qualidade mecânica que vamos adquirindo no cotidiano) e recupere a ação inteira, o tempo (inato) de cada ação; lembre-se e reviva seu animal (no sentido do que é natural, instintivo, do que anima, dá vida); reviva sua criança (a liberdade, o prazer, o não saber e não julgar). Ele não nos ensinou fórmulas nem exercícios com resultados imediatos, mas mostrou que tudo na vida é laboratório para o ator se este está acordado, presente,

sensível e disponível para se perceber na relação com o mundo, pois isso nos constitui e, conscientes disso, podemos trabalhar-nos (Moraes, 2012a, pp. 18-19).

Toda a complexidade da metodologia, durante o laboratório com a Companhia Perdida, foi apreendida pelo mergulho na qualidade de presença e na preparação para a improvisação livre-livre. Não houve tempo para mais aprofundamentos, nem para o desenvolvimento de processos de dramaturgização, que decorre da elaboração em cenas de elementos descobertos nas improvisações. Ainda assim, todas as bailarinas apontam, em seus relatos, a importância de sua passagem pelo projeto. A sua forma de estar no mundo e na cena influenciou profunda e diretamente os estudos que se seguiram, por estabelecem uma rede de relações, por vezes complementares, com os trabalhos desenvolvidos com Ana Terra, Gustavo Sol e pelos próprios questionamentos e descobertas com os quais se deparava o grupo. Em especial, Janô contribuiu para a efetivação da estética que a companhia encontrou para expor as sensorimemórias ao público.

1.1.5 Acreditar nos sinais, acreditar nos instrumentos e nas estrelas