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CAPÍTULO 2. TUDO DIGERIDO 149 Secreções e vibrações: sensações como estados de criação em arte

1. A MAGIA E A VIDA:

1.2 O correspondente da surpresa física em arte

1.2.1 Houve um estouro nos aprendimentos

– Fissuras e aproximações entre educação somática e criação em dança

Uma das primeiras surpresas no percurso de campo se deu em relação à Educação Somática, a qual me parecia um campo fértil e evidente a ser explorado para analisar e dar os contornos do que estava a entender como sensorialidade, dado que os princípios de praticamente todas as linhas somáticas se aproximam a determinadas abordagens da dança (Strazzacappa, 2012), a ponto de ser bastante comum bailarinos terem contato com esse tipo de abordagem. No entanto, me deparei com uma recorrente afirmação de alguns artistas ligados à Companhia Perdida, na qual apontam um descompasso entre os métodos somáticos e as questões que movem a criação em dança. Portanto, há mais mistérios entre os universos da sensorialidade, das abordagens somáticas e da criação do que pode supor uma vã compreensão da arte, talvez dissesse Shakespeare nessa encruzilhada. O mesmo desconforto senti em relação ao domínio do Teatro Físico, apesar da fisicalidade, dos estudos em torno dos estados de presença e da disponibilidade para a experimentação serem pontos de encontro com a dança. Longe de esgotar as relações, sempre dinâmicas e em atualização, entre as artes do corpo, a Educação Somática e o Teatro Físico, darei vazão às indagações sob a perspectiva da criação.

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“Dans le même temps, l’intérêt pour les pratiques somatiques mais aussi pour l’histoire de l’art et de la danse, la philosophie, les sciences de l’homme, pour d’autres approches cognitives encore se développait dans la communauté chorégraphique” (Louppe, 2007, p. 8).

Em comum, as bailarinas da Companhia Perdida ponderam que, embora as abordagens somáticas primem pela disponibilidade do corpo à experimentação, o que contribuiu para o mergulho vertiginoso no processo das sensorimemórias, elas não configuram, em si, um trabalho que dê conta das questões da criação artística e estética. Com vivências em Contato-Improvisação, no Estúdio Nova Dança, Carolina Callegaro acredita que a exploração da organicidade do corpo, focada em despadronizar hábitos motores e comportamentos e em ampliar os repertórios e percepções dos sentidos, por um lado potencializa o trabalho artístico, mas por outro pode formatar um corpo reconhecido por uma dada técnica somática. Para ela, alguns caminhos internos acabam por ser mapeados. Uma inflexão próxima a de Cunningham em relação ao procedimento de embriaguez do movimento usada por Laban.

Flávia Scheye observa que os laboratórios realizados com a Companhia Perdida não apresentaram novidades, do ponto de vista do tipo de exploração do corpo, dada sua experiência com abordagens somáticas como a técnica Klauss Vianna, por intermédio de Zélia Monteiro e Neide Neves, e Eutonia, através de Rosa Hércoles, iniciada na graduação em dança. No entanto, foi a primeira vez que aprofundou um trabalho artístico com um corpo sensível e mais perceptivo. As sensibilizações do corpo, no âmbito dos laboratórios, não eram o fim em si do processo, mas um procedimento para gerar materiais e estes, sim, tornaram-se o foco da criação em dança, embora também eles ainda não configurassem uma composição coreográfica. Portanto, é possível perceber que a bailarina segmenta essa experiência em três camadas de acesso à sensorialidade: a mobilização sensorial; a identificação de materiais potentes para a pesquisa em dança; e o trabalho de composição que resultou em uma série coreográfica levada a público. Para o ator Gustavo Sol, a Educação Somática faz com que os seus praticantes se tornem sencientes, ou seja, cientes das próprias sensações e experiências, do próprio corpo e do corpo do outro. Porém, não é comum que ensine a manipular esses processos artísticos, como obras de arte, como modos de articular a linguagem artística, embora aponte essa possibilidade. Ele questiona, ainda a noção de educação do ponto de vista somático, extensível à arte, pois percebe que algumas abordagens abrem os canais sensoriais, hipersensibilizam os praticantes e não oferecem recursos para que eles saibam como lidar com as próprias sensações, sensibilizações e mobilizações resultantes na relação com o mundo. Um exemplo é o fato de Érica Tessarolo ter se ancorado na ginástica para lidar com a sensação de um corpo que estava a se desfazer nos ensaios das sensorimemórias.

Esse cuidado, segundo o ator, é prudente e requer um envolvimento tanto estético quanto ético na medida em que o que se deseja é fazer frente a um mundo que pede um amortecimento da camada sensível para que as pessoas estejam subordinadas aos

discursos ficcionais das instituições. Nesse sentido, Gustavo Sol retoma o argumento de que é preciso articular técnica e criação, tal qual educação ou abordagem somática aos processos criativos, para que os trabalhos em torno da sensorialidade sejam feitos com maior responsabilidade no que tange as relações entre artistas/pessoas com o mundo, tornando essa relação paradoxal e não pacificadora das sensações, sensibilidades e subjetividades.

Juliana Moraes tem uma percepção um tanto paradoxal do corpo na técnica e na criação. Para ela, todas as informações que fazem parte de um treinamento estão conectadas no corpo, tanto que, mesmo em experimentações mais desafiadoras, ainda é possível perceber os caminhos da inervação, o alongamento. E isso faz, em sua opinião, os materiais emergirem plasticamente interessantes. Ao mesmo tempo, como diretora, ela diz que a desorganização corporal no processo das sensorimemórias foi tal que não houve sequenciamento de passos, nem lógicas de movimento que pudessem ser minimamente controladas e compreendidas. Tanto que as bailarinas, a despeito de toda a vivência técnica e somática acumulada, machucaram-se em determinados momentos, a exemplo de um dedo do pé quebrado de Érica Tessarolo, que adotou o tênis em sua criação, e do tipo de exigência das articulações de Isabel Monteiro, resultando no uso de cotoveleiras e joelheiras incorporadas ao figurino. Um limiar tênue entre mergulho na criação e confiança nos próprios recursos sensório-motores.

Ana Terra compartilha da inquietação dos artistas vinculados à Companhia Perdida e diz já ter criticado o que chama de um deslumbramento excessivo com a experiência somática na dança, limitada a um teor hedonista, no qual o foco está no prazer de perceber o próprio corpo em detrimento de uma pauta estética. Segundo ela,

Tal preocupação é pertinente, mas, talvez, o fator responsável por desvios dessa ordem seja a fragilidade que ainda identifico em campos específicos de formação dos artistas da dança, como a improvisação e a composição coreográfica. Ou seja, o problema não é a incorporação da abordagem somática, mas sim a falta de uma devida contextualização e compreensão do sentido da ação empenhada (Costas, 2010).

Há uma longa discussão entre autores que evidenciam aproximações entre dança e Educação Somática, sobretudo nos aspectos profiláticos, técnicos e expressivos (Cohen, 2015; Fortin, 1999; 2011; Fortin, Vieira e Tremblay, 2010; Wosniak e Marinho, 2011; Miller, 2007; 2011; 2012; Velloso, 2011; Costas, 2010; 2011c; Strazzacappa, 2012). Porém, a relação com a dança sempre acaba sendo justificada como um “algo mais” que proporciona melhor presença de cena, melhora na qualidade expressiva do artista por tornar o corpo mais disponível e bem treinado, ampliando suas capacidades sensório- motoras e técnicas. De acordo com Isabelle Ginot (2010), a maior parte das referências bibliográficas, no esforço de afirmar a eficácia desse campo do saber, dedicam-se a

comprovar cientificamente os benefícios das técnicas somáticas não apenas no universo da dança, mas no âmbito terapêutico.

Com isso, instaurou-se uma crença que visa generalizar e postular pela lente da ciência experiências relativas aos saberes sensíveis cujas naturezas são singulares, únicas e auto-referentes, o que, para a Ginot, é uma incoerência no cerne do próprio discurso somático, pois não há como criar generalizações diante de vivências pessoais. Esse afã cientificista, a meu entender, coaduna-se a uma outra crença que já foi bastante difundida e discutida de que quem faz balé clássico está apto para atuar com eficiência em quaisquer modalidades da dança. Por um caminho contrário, da não codificação de técnicas e da despadronização do movimento, o elogio excessivo à Educação Somática pode incorrer numa crença semelhante. Há que se considerar a existência de uma gama de possibilidades de usos do corpo e de situações a desafiá-lo que não passam, necessariamente, por esses tipos de registro e podem inclusive colapsar suas referências, haja vista o trabalho de pesquisa da Companhia Perdida. No entanto, tal como as discussões relativas ao balé clássico, as abordagens somáticas não são passíveis de descarte, apenas de revisão de uma perspectiva colonizadora do uso de determinadas técnicas e abordagens.

Maíra Santos (2016) também questiona se não seria “redundância criar uma nova categoria – a do campo somático – para compreender práticas da dança, sendo que seus componentes já se encontrariam dentro do campo da arte?” (Santos, 2016, p. 88). Afinal, a ampliação de repertórios, a exploração de espaços internos e de diferentes camadas de percepção, a consciência de si, do outro e do espaço, a sensibilização a partir de uma “escuta do corpo”, a expansão da propriocepção em diferentes estratos, dos articulares, musculares, ósseos, entre outros, são possibilidades de acionar a sensorialidade que atravessam tanto os campos somáticos como artísticos. O risco, segundo ela, é de incorrer na desvalorização de técnicas estruturadas de dança.

Como dito por Ana Terra, é interessante rever o sentido da ação empenhada ao que ela nomina como trânsitos somático-dançantes (Costas, 2010), os quais talvez sejam potencializados quando são artistas da dança a desenvolverem técnicas e linhas de abordagem somáticas (Strazzacappa, 2012) ou dela se apropriarem. Nesse tipo de linhagem, o movimento, de acordo com Márcia Strazzacappa, é fundamental para a consciência de si, do outro e das relações com o mundo, diferente de outra vertente na qual foram desenvolvidas técnicas em que o corpo fica em pausa ou em pequenas movimentações. No Brasil, um exemplo de prática somática aliada à dança é a Técnica Klauss Vianna, cujo mentor, na década de 1940, inquietou-se com o descompasso entre o que sentiu ao ver um espetáculo de balé, que o motivou a matricular-se em uma escola

de dança, e a decepção ao fazer aulas com movimentos que lhe pareceram tão limitados e sem vida.

Com isso, Klauss Vianna transitou por outras linguagens artísticas e territórios, estudou anatomia e cinesiologia, interessou-se por pinturas e esculturas. Ao atuar como modelo vivo para artistas plásticos, investigava, em pausa, as relações musculares e articulares com as musculaturas afetivas e o que seria a expressão impressa nos corpos. Foi quando entendeu que a dança estava dentro de cada um e que não havia regras e modelos prontos para a expressividade, a qual poderia ser encontrada pela sensibilização e percepção de si. Ele desenvolveu uma metodologia, junto com sua mulher e filho, Angel e Rainer Vianna, que depois foi nominada e sistematizada por Jussara Miller como “escuta do corpo” (Miller, 2007; 2012), na qual estimula um estado de prontidão no corpo por meio de tópicos corporais que são sugeridos para investigações tanto no contexto de sala de aula como para a cena73.

O ator brasileiro José Wilker passou por uma preparação corporal com Klauss Vianna, no Rio de Janeiro, quando foi desafiado a “falar com os pés” no espetáculo O arquiteto e o

imperador da Assíria (1970), com texto de Dante Alighieri. Como dar expressividade aos

pés? Segundo ele, o bailarino exercitou sua disponibilidade para perceber e notar cada parte do seu corpo em suas possibilidades e potencialidades, de tal modo que o ator sentiu que deixou de subir ao palco como quem vai a um palanque. Segundo o ator:

Me deparei com um verso do Drummond que diz “penetra surdamente no reino das palavras”. E eu acho que esse é o melhor resumo do que é acting. Eu juntei todo o universo de descoberta do meu próprio corpo junto com essa ideia. E isso para mim, até hoje, é o meu método, se é que eu tenho algum. É a descoberta do meu corpo, das possibilidades dele, da capacidade de expressão dele, aliada a um penetrar surdamente no reino das palavras. Isso parece meio poético, mas é bem prático. (...) Diferente de outros diretores, o Klauss não tinha uma forma final. Os diretores querem que você reproduza aquela imagem que ele tem na cabeça dele. Essa imagem interessa a ele. Essa imagem é uma reprodução dele. O Klauss perseguia uma imagem que ele via na gente e que de alguma maneira podia se associar, podia ser uma tradução da imagem adequada para aquele momento, para aquela cena, para aquela ideia.74

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Os princípios da Técnica Klauss Vianna são detalhados em Miller, 2007; 2012 e Neves, 2008a; 2008b.

74 Entrevista de José Wilker, no Acervo Klauss Vianna, realizada em 15 de Junho de 2007. Disponível em: