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CAPÍTULO 2. TUDO DIGERIDO 149 Secreções e vibrações: sensações como estados de criação em arte

1. A MAGIA E A VIDA:

1.1 O espírito recusa-se a conceber o espírito sem o corpo – Sensorimemórias, um modo de criar em dança

1.1.3 Pela invenção e pela surpresa

– Estados de presença poética por Gustavo Sol: paradoxos da criação

Apenas uma certeza até aqui: o material havia se voltado contra a Companhia Perdida. Para Juliana Moraes, a pesquisa em torno das sensorimemórias produziu um “corpo- subjétil”, no sentido criado por Antonin Artaud. Segundo o ator, professor e pesquisador do Lume/UNICAMP, Renato Ferracini,

Subjétil é, como pondera Derrida, retomando uma palavra inventada por Artaud, aquilo que está no espaço entre o sujeito, o subjetivo e o objeto, o objetivo. Não um ou outro, mas o “entre”. Outro dado: a palavra subjétil pode, por semelhança, ressoar a palavra projétil, o que nos leva à imagem de projeção, para fora, um projétil que atinge o outro e

também se autoatinge. Tal aproximação pode ser realizada, já que “subjétil” é uma palavra intraduzível, (...) não encontrando correspondente possível em outras línguas (Ferracini, 2013, p. 71; Derrida; Bergstein, 1998).

O acesso ao “corpo subjétil”, na perspectiva de Juliana Moraes, acontece quando um bailarino entra em transe, ou num estado alterado de consciência, no qual perde o controle de si. É o momento em que o material começa a subverter o corpo. “Eu acho que esse caminho é o mais bonito”, diz a coreógrafa. Um modo de acionar o corpo que, para ela, está presente nas propostas de Lygia Clark, nos ritos da Umbanda e nos treinamentos físicos de Antonin Artaud e de Jerzy Grotowski, assim como no trabalho do ator e diretor Gustavo Sol. São abordagens, segundo a artista, nas quais se acredita que o corpo tem que atravessar experiências de verticalização das sensações e do aspecto visceral da deformação.

Com um viés sensorial, articulando experimentações na relação entre voz e movimento, Gustavo Sol desenvolveu conceitos e uma metodologia própria41 para a exploração do que ele nomina como estados de presença poética42, os quais são definidos por uma correlação entre colocação de voz, usos da respiração, tensão e relaxamento muscular, relações do corpo com a pressão gravitacional, impulso e atenção a memórias, sensações, pensamentos intencionais e fluxos de estados de consciência. O laboratório realizado com as criadoras-intérpretes da Companhia Perdida teve como desejo oferecer dispositivos acionadores de fluxos de estados criativos e poéticos, com foco numa investigação aprofundada no funcionamento fisiológico do corpo, através de uma afinada percepção dessas correlações. Para ele, um estado, quando emerge, transforma a textura da pele e isso pode ser percebido pela sua tonalidade, suor, olhar, qualidade da musculatura e da respiração, gerando uma geografia completamente diferente e um reconhecimento estranho na pessoa que vê o ator/bailarino. Portanto, um estado é multidimensional, passando por aspectos físicos, fisiológicos, sensório-motores, sensoriais, cognitivos.

Para acessar, técnica e criativamente, estados que se configurem por uma presença

poética, Gustavo Sol marca uma diferença em relação às mais conhecidas abordagens

do teatro físico, nas quais a exaustão é uma das estratégias para colocar o corpo em criação. O ator prefere fazer uso do relaxamento, durante um tempo distendido, para produzir um estado de desistência43, pois ele acredita que, ao desmontar as expectativas,

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O trabalho desenvolvido junto à Companhia Perdida tem como referência a pesquisa de mestrado de Gustavo Sol, intitulada Estados alterados de consciência em artemídia: o papel do corpo no trabalho do ator (Palma, 2008), realizada no Departamento de Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), sob orientação da Profa. Dra. Helena Katz. A pesquisa e a sistematização da metodologia de Gustavo Sol foram ampliadas e aprofundadas no âmbito do doutorado no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas (PPGAC), na Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP), concluído em maio de 2017, sob orientação do Prof. Dr. Luiz Fernando Ramos.

é possível manter o performer no tempo presente, para lidar com sensações, emoções e situações no momento mesmo em que elas acontecem, escapando de uma perspectiva semiotizante, representacional e figurativa, bem como de uma tendência a controlar ou determinar o mover. Uma vez nesse estado, o corpo abre-se à experiência investigativa e, portanto, à criação. As referências de Gustavo Sol estão no cruzamento entre a noção de “musculatura afetiva” de Antonin Artaud, para quem seria possível acessar emoções através de pressões exercidas em certos pontos do corpo, e no trabalho de Jerzy Grotowski, mais especificamente na relação com o transe e com massagens que liberam pontos de tensão (Sol, 2012).

A passagem do corpo parado, em estado de desistência, para o movimento se dá pelo uso da voz, sempre associada à respiração, gerando uma pressão no corpo que desmancha tensões e faz a energia circular, favorecendo, assim, a liberação do potencial criativo. Trata-se de deixar o corpo se mover, ao mesmo tempo em que é possível ao artista/pesquisador se perceber em movimento, num constante e simultâneo trânsito entre a atenção em si e ao mundo/ambiente, uma estratégia que Gustavo Sol nomina como olhar investigativo44. Segundo ele, esse trânsito corpo-mundo difere da noção de representação pois, esteticamente, supera o binômio dentro/fora, corpo/mundo, como instâncias separadas umas das outras.

Nesse sentido, o olhar investigativo é um dispositivo de pesquisa de si que assume a condição paradoxal do artista. Diz respeito a uma atenção passível de ser coreografada, caracterizando-se como mais um elemento da cena que implica na construção de um

estado de presença poética e consiste, ainda, no elo que liga o bailarino/ator ao momento

presente de sua atuação, tanto num contexto de ensaio como de apresentação. Por meio do olhar investigativo, o artista pode descobrir a emergência de estados, passando pelas diferentes fases de suas construções e desconstruções e acompanhando esse fazer e desfazer em minúcias, micromovimentos, micro-precepções, sutilezas45. Tais dispositivos favorecem que o intérprete opere com a linguagem artística, não ficando limitado a situações de transe, catarse e catatonia, conforme as abordagens do corpo em contexto de criação.

A Companhia Perdida e as artistas convidadas Carolina Nicolino, Mariana Costa, Renata Aspesi e Janaina Carrer vivenciaram os modos de exploração da sensorialidade de Gustavo Sol nos dias 11, 17, 18, 24 e 25 de outubro de 2011. O laboratório se repetiu alguns meses depois, nos dias 8, 14, 15, 21 e 22 de maio de 2012, com um aprofundamento das propostas metodológicas em diálogo com as texturas desenvolvidas

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Olhar investigativo é outro conceito desenvolvido por Gustavo Sol, detalhado no Glossário, na página 305.

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Acredito que a noção de olhar investigativo de trabalho de Gustavo Sol relaciona-se ao tipo de investigação do corpo que Steve Paxton nomina como small dance (pequena dança) e que José Gil vai analisar por meio do conceito de micro- percepções (Gil, 2004; 2006; Ferracini, 2013), apesar do tipo de abordagem do corpo ser diferenciada entre os artistas.

pelas bailarinas da Companhia Perdida, seguido de acompanhamentos individuais de cada uma pelo ator, entre os meses de junho e julho de 2012, quando foram estudadas novas perspectivas coreográficas e dramatúrgicas para a composição com as

sensorimemórias.

O primeiro laboratório começou com um aquecimento vocal. Um trabalho bastante desafiador, sobretudo porque no âmbito da dança é fato que a voz quase sempre é trabalhada em separado, sendo um recurso técnico e criativo raramente desenvolvido por bailarinos, tanto do ponto de vista da música tonal da tradição ocidental como da perspectiva dos ruídos e sons guturais, os quais comumente compõem o universo indígena. Ao considerar o treinamento técnico como parte importante e em conexão com o processo de criação, Gustavo Sol propôs uma investigação na qual o uso da voz tanto resultasse de um aprendizado da técnica como pudesse ser vivenciado enquanto provocação de estados poéticos do corpo, simultaneamente. Segundo ele,

Por implicar a participação consciente de certas musculaturas internas, através da respiração e de toda a complexidade do aparelho fonador, esse trabalho acaba por ampliar a consciência do intérprete em relação aos órgãos internos, porque as vibrações sonoras abrem espaço quando atravessam as camadas musculares e moles do corpo (Sol, 2012, p. 86).

Para isso, o aquecimento vocal contou com exercícios básicos de localização de ressoadores, através dos quais eram feitas as diferenciações entre articulações variadas de vogais (a, e, i, o, u), e a identificação da capacidade de modulação de volume na emissão sonora, em associação a diversos tipos de respiração e sustentação do ar. Junto a isso, era solicitado que a atenção do intérprete estivesse focada nas diferenças de estados do corpo provocadas pelas modulações da respiração. Dadas as proporções de oxigênio e gás carbônico em circulação, as alterações fisiológicas decorreram pela percepção do surgimento de maior acuidade visual, dormência na pele e o surgimento de emoções como ansiedade ou relaxamento. Também foi proposta uma movimentação assimétrica entre cintura escapular e cintura pélvica, bem como torsões, na qual a respiração possibilitava sentir a atuação da gravidade no corpo, num processo de relaxamento de tensões. “Apesar de certo desconforto inicial, esse procedimento é altamente eficiente em tornar clara a relação entre a parte interna do corpo e a sala de trabalho, através do caminho do ar”, pontua Gustavo Sol (2012, p. 87). Nesse sentido, para o ator, um trabalho que não separa voz e corpo pode favorecer e potencializar o aparecimento de fluxos poéticos de estados corporais intensos.

Dando sequência ao primeiro momento, todos se deitaram no chão, onde ficaram por cerca de 20 minutos. Ao longo desse período, as orientações eram no sentido de que o corpo percorresse as seguintes etapas:

• escuta dos sons externos ao corpo; • escuta dos sons internos ao corpo;

• passar do estado de atenção para o estado de escuta;

• passar do estado de escuta e prontidão para o estado de desistência.

Durante o percurso do exercício, foi pedido para que se desistisse até mesmo de relaxar, pois era importante cessar qualquer expectativa de conquista de resultados – uma marca que atravessa os corpos de sociedades regidas pela produtividade, sendo justamente o que Gustavo Sol tensiona romper com sua proposta técnica e artística (Palma, 2008; Sol, 2012)46. Com o tempo alargado, o ator começou a observar o desaparecimento de tensões nos olhos e sobrancelhas, em torno da boca, nas mãos, nos ombros e na maneira de respirar. Nesse estado de relaxamento, foi proposta a ideia de “aceitar o que vem”, como as condições impostas pelas circunstâncias do ambiente – barulhos, calor, frio, etc – e que não podem ser alteradas.

Esta é uma fricção de Gustavo Sol em relação a boa parte dos treinamentos nas artes da cena que ensinam a anular alguns acontecimentos ambientais para que o intérprete, do teatro ou da dança, não se influencie por questões alheias à cena, mantendo sua atenção especificamente à estrutura composicional da peça ou da dança que foi ensaiada – o que justifica a existência do binômio corpo/mundo. O desejo do ator é possibilitar a abertura de um limiar de atenção às conexões sensoriais que se dão no corpo numa correlação direta e simultânea entre as alterações fisiológicas vivenciadas e os estímulos que o ambiente produz, percebidas através do olhar investigativo, num contínuo observar-se. Portanto, trata-se de dar-se conta de que a existência do artista na cena pode ser profundamente paradoxal, pois “a todo momento ele afeta o mundo, ao mesmo tempo em que é afetado por ele” (Sol, 2012, p. 90). E é nesse paradoxo que operam os conceitos e a metodologia por ele desenvolvidos.

Em estado de relaxamento, cessadas as expectativas e aberto esse limiar de atenção, Gustavo Sol propôs uma improvisação inicialmente movida pela respiração, onde a ideia era começar a perceber-se em movimento. Não houve indicação sobre o tipo de respiração a ser feita, para evitar tensões e novamente a busca por se fazer algo julgado como correto. A única solicitação era que a inspiração fosse feita de maneira relaxada e a voz pudesse sair junto à expiração. Sons contínuos, como suspiros, tornaram-se as ondas sonoras dessa etapa de experimentação, sem qualquer preocupação com projeção de voz ou qualidades de encaixe e de ressoadores. A sensação da voz era o

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O relaxamento e a noção de desistência de Gustavo Sol parecem aproximar-se do que Lygia Clark nomina como vazio pleno. O músico Jards Macalé, assim narra o seu atendimento com a artista na fase da Estruturação do self: “Quando você se sentir vazio, não lute contra o vazio. Não lute contra nada. Deixe-se ficar vazio. Aos poucos você vai se preenchendo até voltar ao estado normal do ser humano, que é o criativo”. Entrevista para o projeto Arquivo para uma obra acontecimento, composto por uma série de 20 DVDs com entrevistas feitas por Suely Rolnik com artistas, intelectuais, terapeutas e pessoas que tiveram contato com a última fase de produção de Lygia Clark. Suely Rolnik (2011). Caixa de DVDs Arquivo para uma obra acontecimento. São Paulo: Sesc.

disparador do movimento, pela percepção do som a ocupar o espaço interno e externo, a expandir-se para dentro e para fora de si e a criar direções nos eixos, planos e níveis. Também o movimento poderia modificar a qualidade sonora. A relação entre reverberação dos sons no espaço e o reflexo vibracional que retornava ao corpo foi sendo percebida no decorrer da movimentação. A partir do relaxamento, a capacidade de resposta e de afetação entre corpo e espaço foi, aos poucos, promovendo uma adequação do encaixe sonoro nos ressoadores corporais.

Junto a essa proposta, o ator pediu para que cada um percebesse uma zona do corpo que estivesse com um desconforto, incômodo ou dor. O objetivo era criar uma relação dessa área com o chão, pressionando-a para fazer uma espécie de massagem para desbloquear a tensão, seguida de uma expiração acompanhada de voz. Essa dinâmica foi se repetindo sempre em movimento, num constante perceber de sensações, imagens, emoções e desejos que emergiam, esvaiam e davam passagens a outras sensações e, assim, sucessiva e aleatoriamente. Novas zonas de desconforto evidenciam-se, nessa incessante relação responsiva entre o uso do chão e da gravidade, a entrada e saída do ar e da voz. Um exercício em mão dupla, na qual tanto o corpo pressiona o espaço de dentro para fora, como há uma pressão do exterior que vem ao interior, numa complementaridade através da qual o som circula, expande a musculatura, provoca alterações de estados e emoções e produz os encaixes sonoros que retroalimentam o processo. Para Juliana Moraes,

o trânsito contínuo corpo-voz fazia com que um elemento se alimentasse do outro e instigasse a pesquisa de novas formas de estruturação motora. Apesar de o trabalho com as emoções não ser a intenção mais direta do exercício, era impossível fugir de momentos nos quais a voz e a respiração levavam o corpo a experiências fortemente emotivas – o que nos fez sentir que estávamos nos permitindo atravessar pela voz assim como

havíamos nos permitido atravessar pela materialidade dos objetos relacionais

(Moraes, 2012d, p. 53 – grifos meus).

Passado esse primeiro momento, Gustavo Sol dirigiu a improvisação de cada participante tocando em partes específicas de seus corpos, indicando direções possíveis para a circulação do fluxo da energia e do movimento, bem como intensidades e partes que podiam ser inseridas na pesquisa. Isto era feito sempre que ele identificava zonas musculares comprimidas a impedir que um encaixe sonoro acontecesse. Pelo olhar

investigativo, os artistas foram convidados a colocarem-se a perceber atentamente cada

uma das alterações de estados do corpo em relação a um estado físico observado anteriormente – pois é no liame entre estados que se observam as modificações, o que se altera. Entre os dispositivos de investigação dos fluxos e da configuração dos estados estavam: condensar os movimentos em uma única parte do corpo, mudar as intensidades entre 1% e 300%, articular o estado, esvaziar, insistir e desistir. “Para o intérprete, isso

desloca o foco de atenção das questões técnicas para as questões concretamente sensíveis e ao mesmo tempo impregnadas de subjetividade, e o trabalho de criação não acontece separado ao trabalho de percepção técnica”, analisa o ator (Sol, 2012, pp. 88- 89 – grifos meus).

Entre o segundo e o quarto dia de laboratório, o ator dividiu o grupo em pares para que cada um pudesse ajudar o outro a perceber as correlações das alterações fisiológicas produzidas e os momentos nos quais passavam a compor estados poéticos. Também era preciso estar atento às dificuldades de fluir na experimentação, o que se percebia quando um participante “rodava atrás do próprio rabo”, ou seja, quando se repetia uma dada qualidade de movimentação que se esvaziava por não renovar seu estado de criação. Um tipo de observação que, segundo Juliana Moraes, não era fácil de ser feita e demandou vários dias de estudo e de uma compreensão mais aprofundada sobre a metodologia apresentada.

Uma outra noção proposta por Gustavo Sol trouxe mais consistência ao processo de experimentação no sentido de explorar e perceber os estados de presença poética através do olhar investigativo: o conceito de brilho47. Segundo o ator, o brilho constitui a própria emergência de estados cênicos mais profundos, acompanhados de sensações, imagens, memórias e emoções vindas dos labirintos do inconsciente, num processo de conexão simultânea do artista consigo mesmo e com o ambiente. Diz respeito aos estados que aparecem, em instantes nos quais a energia se condensa e se torna matéria (Sol, 2012; Moraes, 2012c). O brilho tem um caráter efêmero, assim como os acontecimentos e as experiências. Não há como contê-lo. Qualquer tentativa de torná-lo constante e de domá-lo incorre na perda da qualidade, da frequência qualitativa do movimento e da força cênica dos estados poéticos e evidenciam o “rodar atrás do próprio rabo”, já alertado pelo ator.

Perceber a noção de brilho propicia ao artista atravessar a experiência, sem o desejo de repetir e fixar gestos ou sequências e favorece uma relação desapaixonada com os estados poéticos que emergem, dando-lhe a certeza de que é possível assumir a fugacidade como condição paradoxal do fazer cênico. Gustavo Sol compara o artista ao surfista e os brilhos às ondas do mar, onde cada qual aprende a perceber as aberturas de limiares de atenção dadas pelas correlações entre o que se passa consigo próprio e os sinais e interações com a natureza/ambiente/mundo. Diante disso, quando um brilho nitidamente irrompe um estado é possível aproveitar sua presença, potencializá-lo em sua duração e deixá-lo partir quando a energia que o mantém em vibração se esgota. Tal como o surfista, que sai de uma onda e vai em busca de outra, o artista sai de um brilho e

vai em direção a outro – e por que não comparar também a um caçador que afina sua percepção para aquele momento que se mostra favorável a captura de um selvagem? Portanto, essa metodologia trata de “instrumentalizar atores e bailarinos no sentido de materializar e potencializar estados de energia que irão, necessariamente, passar”, analisa Juliana Moraes (2012d, p. 53). Segundo Gustavo Sol, a exploração desses estados implica em uma composição técnica que requer uma combinação entre intuição e fluxos de sensação e, assim, uma presença efetiva do artista a tudo o que está a acontecer no corpo, em seus atravessamentos vivos de imagens, memórias, sensações, emoções e situações, os quais emergem e esvaem, aleatoriamente, sem linearidades, figuratividades, cronologias e lógicas previamente definidas. Trata-se de uma rede sensorial a instigar um criar e recriar incessantes.

Para indicar possibilidades de desdobramentos de trabalhos solos para criações coletivas, o primeiro laboratório terminou com a experimentação de uma série de dispositivos relacionais: contaminação entre duas ou mais pessoas, diálogo entre estados diferentes, diálogo entre estados análogos e troca de estados entre duas ou mais pessoas. As propostas foram, posteriormente, experimentadas nos ensaios da Companhia Perdida que se seguiram.

No segundo laboratório, foram aprofundados e aprimorados os aspectos da metodologia e a experimentação dos dispositivos para criação e manutenção de estados de presença

poética, na perspectiva aproveitar as aberturas de limiares de atenção. Para manter

efervescente um estado de inventividade e criação, foi intensificada a relação entre relaxamento, respiração, voz e movimento, num processo de exploração da plasticidade das correlações fisiológicas do corpo, o qual foi provocado por torsões, solturas de peso