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O que atropelava a verdade era a roupa

CAPÍTULO 2. TUDO DIGERIDO 149 Secreções e vibrações: sensações como estados de criação em arte

2. TUDO DIGERIDO

2.1 O que atropelava a verdade era a roupa

– Vazio pleno, fantasmática do corpo e liberação do potencial de criação

Sou da família dos batráquios: através da barriga, vísceras e mãos, me veio toda a percepção

sobre o mundo.

Lygia Clark, em Breviário sobre o corpo

Baba antropofágica, 1973, Paris, Ano 417 da Deglutição do Bispo

Sardinha. Linhas de costura coloridas cheias de saliva são puxadas das bocas de diversas pessoas que, ajoelhadas, cobrem de cor e baba um corpo deitado no chão. Quanto mais as linhas com babas se misturam pela superfície do corpo, mais a imagem assemelha-se a de um sistema nervoso exposto, como a materializar quase que literalmente a dimensão da subjetividade, diz, em 2014, Ana Terra4 sobre a proposição da artista plástica Lygia Clark. Sensação de uma rede de proteção e de que as linhas babadas entravam no seu corpo, é como o músico Jards Macalé descreve a experiência de ter sido coberto pela Baba antropofágica, numa reedição da proposição, em 2012, no Clark Art Center, Rio de Janeiro. Ele também destaca os sons diferenciados que ouviu de cada uma das bocas que estavam à sua volta5. Lygia Clark assim narra a emergência da proposição, realizada pela primeira vez junto a alunos do curso de Artes Plásticas da Université de Paris I – Sorbonne, onde trabalhou de 1972 a 1976:

Tudo começou a partir de um sonho que passou a me perseguir o tempo inteiro. Eu sonhava que abria a boca e tirava sem cessar de dentro dela uma substância, e na medida em que isso ia acontecendo eu sentia que ia perdendo a minha própria substância interna, e isso me angustiava muito, principalmente porque não parava de perdê-la. Um dia, depois de ter feito as máscaras sensoriais, me lembrei de construir uma máscara que possuísse uma carretilha que fizesse a baba ser engolida. Foi realizada em seguida o que se chamou de ‘baba antropofágica’, onde as pessoas passavam a ter carretéis dentro da boca para expulsar e introjetar a baba. Depois disso só tive um sonho: ia mais uma vez tirando da boca a tal baba, até que tudo o que havia saído se transformou em um tubo de borracha que eu imediatamente introjetei em minha boca. Então eu nunca mais sonhei sobre isso (Clark, 1980, p. 39).

A linha sai plena de saliva e as pessoas que tiram a linha começam por sentir simplesmente que estão tirando um fio, mas em seguida vem a percepção de que estão tirando o próprio ventre para fora (Figueiredo, 1998, p. 223).

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Ana Terra, artista e docente. Entrevista realizada em 03 de Abril de 2014, em São Paulo (Brasil). Informação verbal.

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Mídia 12. Trecho da obra Baba antropofágica (1973) em vídeo. Disponível em http://bit.ly/lygiaantropofagia

Figura 37 – Baba antropofágica (1973). Imagem do livro Lygia Clark (Clark, 1980, p. 39).

Canibalismo, 1973, Paris. Um ventre em devoração. Deitada, uma pessoa veste um

macacão de plástico revestido de tecido que cobre todo o seu corpo. Ao seu redor, outras pessoas, de olhos vendados, abrem um zíper na altura de seu ventre e retiram frutas que ora comem, ora alimentam quem está deitado. As frutas passam por todas as bocas. Corpos devorando corpos, canibalismo do outro e de si – autofagia – mesclam-se. O músico Paulinho Moska participou da reedição da proposição, em 2012, e assim descreve a experiência:

A obra faz com que a gente esteja vivo. É um pouco de memória molecular que a gente passa para os filhos, nessa nossa vida, e o artista consegue passar para a obra. A partir do momento que a Lygia faz essa obra que torna o espectador o próprio artista, ela se faz viva dentro de cada um de nós. Tem tudo: tem incômodo, na mesma posição, tem que ter paciência, curiosidade e os sabores. Comi uma salada de frutas porque cada hora era uma fruta diferente. Delicioso viajar com aquilo no seu próprio corpo. Tem milhões de viagens mesmo. E antes de mais nada a gente comeu a Lygia mesmo. Comeu a obra dela, comeu a vida dela, se alimentou da inquietude dela, se alimentou da curiosidade, da busca de novos caminhos, da compreensão singular da vida, da ideia de que cada um é uma potência. Todas essas coisas assim que a gente pode ter acesso agora nesse espaço. E realmente poder experimentar as proposições dela para sentir essa potência dentro de cada um. Só uma obra de arte pode fazer o mesmo com a gente. E essa obra viva é realmente a vanguarda da vanguarda. (...) Isso que é ter uma experiência6.

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Canibalismo, com Paulinho Moska, em 2012. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=-KHcrx9fjKY. Consultado a 04 de Abril de 2017.

Mídia 13. Trecho da obra Canibalismo (1973) em vídeo. Disponível em http://bit.ly/lygiacanibalismo

Figura 38 – Canibalismo (1973). Imagem do livro Lygia Clark: The Abandonment of Art, 1948-1988 (Butler e Pérez-Oramas, 2014, p. 306).

“Acho que virei até antropófaga. Tenho vontade de comer todo mundo que amo”, anunciava Lygia Clark, em carta enviada de Paris ao artista plástico Hélio Oiticica, em 6 de fevereiro de 1964 (Figueiredo, 1998, p. 25). Pouco antes, ainda, em 1960, ela declarou a morte do plano, num ato que me parece ser da mesma ordem ontológica e epistemológica de Nietzsche quando, em fins do século XIX, ele sentenciou a morte de Deus. “Para mim, arte, igreja, museu são coisas que estão dentro da vida e que não existem mais, mas ninguém sabe”7, afirma Lygia Clark. Segundo ela, o plano é um conceito criado pelo homem com fins de satisfazer uma necessidade de equilíbrio e para projetar a si no mundo. Percepção que se aproxima de O’Doherty (2002) e Velloso (2011), quando tratam da cisão sensorial feita entre o humano e o mundo. Um corte que diz respeito a uma cultura ocidental eurocêntrica. Argumento que pode ser reforçado pela pintura de crianças indígenas, em certas tribos tradicionais no Brasil, nas quais não há qualquer alusão ao retângulo, enquanto plano de representação, com referentes como alto e baixo, direita e esquerda, avesso e direito. Os desenhos feitos por elas, mesmo numa folha de A4, são circulares e sem hierarquias entre o espaço da tribo e das matas e

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lagoas. Um tipo de pintura bem diferente das crianças educadas em escolas formais, como destaca o investigador junguiano Roberto Gambini8.

O que fazer então com o plano, com essa cisão? “Este retângulo em pedaços, nós o engolimos, o absorvemos em nós mesmos”, propõe a antropófaga Lygia Clark, para introjetar a poética em si (Clark, 1980, p. 13), extravazando a problemática de Piet Mondrian (1872-1944) ao plano, para quem a obra pede integração. Demolir o plano como suporte da expressão é, então, para a artista, mergulhar na totalidade do cosmo. Coincidência ou não, a artista se aproxima do aforisma de Oswald de Andrade no Manifesto Antropófago: Da equação eu parte do Cosmos ao axioma Cosmos parte do eu. Em 1960 ela dizia que o homem contemporâneo “aprende a flutuar na realidade cósmica como em sua própria realidade interior. Ele se sente tomado de vertigem. As muletas que o sustentam caem longe de seus braços. Ele se sente como uma criança que deve aprender a se equilibrar para sobreviver” (Clark, 1980, p. 13). É “como se precisássemos reaprender a andar, falar, sentir”, disse Juliana Moraes, em 2013, sobre a experiência com os materiais inspirados nos objetos relacionais na investigação das sensorimemórias (Moraes, 2013a, p. 20).

Cortar, mutilar, adicionar, dobrar, cobrir, revelar, torcer, colar, costurar, acumular, envelopar são procedimentos que fazem parte das proposições sensoriais de Lygia Clark e culminam nos objetos relacionais. As obras desincorporam-se dos suportes estruturais das artes visuais, como o quadro e a escultura – elementos exteriores a si –, para incorporarem-se nos corpos de quem vive a experiência com os objetos – estes cada vez mais ordinários, não ilustrativos –, os quais criam relações através de texturas, pesos, tamanhos, temperaturas, sonoridades e movimentos (Herkenhoff, 1998; Ferreira e Cotrim, 2006). Ao invés do suporte, Lygia Clark prefere objetos para serem tocados, vestidos, atravessados, vivenciados e sentidos. Uma experimentação que começou com a série Bichos, peças dobráveis cujas formas eram articuladas pelo espectador, e Obra

mole, peça de borracha manipulável a qual, curiosamente, segundo o crítico de arte

Mário Pedrosa, era a única obra vista por ele que poderia ser chutada, numa alusão aos aspectos lúdico, ordinário e desafiador dessa criação.

Vieram, então, os objetos sensoriais, como Pedra e ar (1966), saco de ar suspenso entre as mãos com uma pedra pousada em sua superfície; Luvas sensoriais (1967), com diferentes texturas, eram vestidas com a tarefa de agarrar uma bola; Máscara sensorial (1967), uma série com capuzes sobre o rosto, cada qual com um tipo de erva ou textura costurada próximo aos olhos e às orelhas; Máscara abismo (1968), sacos em rede de

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Anotações da palestra O amor ao inconsciente das crianças, proferida por Roberto Gambini, no Seminário Internacional Eros e a Educação, realizado pela Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), em 11 de Maio de 2013.

nylon com pedras e sacos plásticos com ar; Óculos (1968), série de óculos de mergulho com superfícies espelhadas e articuladas, unidos por peças metálicas9.

Obras que criam relações, portanto não são simples manipulação de objetos. Caracterizam-se como um “ritual biológico”, segundo a artista. “Os elementos usados em todas essas experiências baseadas num processo, um processo-vital, são eles mesmos partes dele e não objetos isolados: são ordens num todo” (Figueiredo, 1998, p. 122). A artista desfetichiza e, assim, desreifica a obra de arte e a própria arte. São experiências que desviam da perspectiva sujeito-objeto e mergulham no diálogo entre corpos. Nesse sentido, me parece haver uma proximidade do pensamento de Lygia Clark com o entendimento de Spinoza sobre corpos. Para ele, corpos não são apenas os anatômicos, orgânicos, com órgãos. São também ideias, pensamentos, reverberações que produzem afetos. Corpos afetando corpos (Deleuze, 2002). Segundo a artista,

Na fase sensorial do meu trabalho, que denominei nostalgia do corpo, o objeto ainda era um meio indispensável entre a sensação e o participante. O homem encontra seu próprio corpo através de sensações táteis realizadas em objetos exteriores a si. Depois incorporei o objeto, mas fazendo-o desaparecer. Entretanto, é o homem que assegura o seu próprio erotismo. Ele torna-se o objeto de sua própria sensação (Clark, 1980, p. 35).

Tal como fez com o plano, Lygia Clark incorpora e antropofagiza os objetos, os quais passam a ser usados para “massagear, friccionar, esfregar, acariciar, roçar, apertar, pressionar, tocar de leve, soprar, arfar, aquecer, cobrir, embrulhar, emitir sonoridades, ou simplesmente deixá-los ali, em silêncio, a sós com o cliente e pousados sobre ele” (Rolnik, 2006, p. 13). Os buracos, fissuras e partes ausentes do corpo são preenchidos e fechados, as articulações desconectadas são soldadas. Os procedimentos variam conforme “o que pedisse o corpo de seu cliente, a cada instante do processo” (Rolnik, 2006, p. 13). Os objetos relacionais não são aplicados sobre o corpo para serem identificados, mas para confundirem-se com a pele e com as sensações, para acionar uma linguagem pré-verbal e tocar no que a artista nomina como fantasmática do corpo, que podem se revelar como “agonias primitivas”. Essas agonias são sintomas de uma sensorialidade separada do próprio corpo, analisa o artista plástico e psiquiatra Lula Wanderley10.

Com os objetos relacionais – feitos, em geral, de água, terra, areia, isopores, pedras, conchas, sementes, embalados em tecidos, redes de embalar frutas e plásticos, com pesos, texturas e barulhos diferentes – a artista tensiona colocar as pessoas em contato com as fantasmáticas do corpo, que são as camadas de si aprisionadas a um script de

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Esses e outros objetos sensoriais estavam na exposição retrospectiva de Lygia Clark, Caminhando em busca do próprio caminho, realizada em 2013, em 11 cidades de Portugal.

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Lula Wanderley, artista plástico e psiquiatra. Entrevista realizada em 12 de Agosto de 2015, no Rio de Janeiro (Brasil). Informação verbal. O especialista participou de sessões com objetos relacionais e fez uma formação com Lygia Clark. Ele aplica o método da artista em contexto hospitalar, no Espaço Aberto ao Tempo, no Rio de Janeiro, uma experiência

comportamentos aprendidos socialmente, o qual desenha um mapa de sentidos feitos para impedir os estranhamentos e qualquer sensação de vazio diante do mundo. Porém, com as crises das crenças na contemporaneidade, o vazio segue rondando. No ritual de iniciação à Estruturação do self, o desejo de Lygia Clark é que essas fantasmáticas do

corpo sejam vomitadas e exorcizadas, portanto trata-se de liberar-se de julgamentos e

conceitos previamente determinados, hábitos encarnados e que intoxicam e paralisam a subjetividade em sua relação de criação com o mundo. Afinal, as fantasias inconscientes, segundo Suely Rolnik (2002), operam como uma vida ativa de fantasmas que assombram a subjetividade. Ao esvaziar do mapa de sentidos vigente, a artista acredita ser possível experimentar o que ela chama de vazio pleno, através do qual sensações novas pedem passagem e colocam a subjetividade em obra, em criação, em plenitude – condição na qual a artista entende que todos deveriam viver no mundo.

Sendo assim, suas obras não se configuram como tarefas, nem como ready-mades. Não há, em suas proposições, separação entre obra de arte e espectador e nem transferência do sujeito no objeto, a separação de um e de outro. “Com o ready-made, o homem ainda tem necessidade de um suporte para revelar sua expressividade interior. Mas isso hoje não é mais necessário, pois a poesia se exprime diretamente no ato de fazer”, diz a artista (Clark, 1980, p. 27). Trata-se de uma terapêutica para tempos desprovidos de

poesia11, cujo processo diz respeito à digestão do ego, metabolizado e transformado

através de uma acting-out, ou seja, de uma encenação que aciona concretamente o corpo pelas sensações, pela indiferenciação entre corpos, os quais são como vasos comunicantes, semelhantes à criança que não distingue o que a constitui em separado dos objetos à sua volta.

Os desbloqueios do corpo vibrátil se dão nessa encenação livre de referentes previamente imagéticos, simbólicos, narrativos, pelo ativar dos corpos na fricção com os objetos relacionais. Lygia Clark quer acessar o diagrama de forças do corpo, as potências do sensível, onde seja possível uma comunicação sem barreiras. Para isso é preciso que, na mobilização feita pelos objetos relacionais, as pessoas estejam dispostas a conectar-se com a dimensão pré-verbal, primitiva, animal, intuitiva, diluída no mundo. “Trata-se de compreender as necessidades fundamentais do sujeito e responder a elas através do contato com o corpo e não da interpretação analítica clássica”, pontua a artista (Clark, 1980, p. 52). Dessa relação, uma intensa circulação de fluxos se dá entre os corpos humanos e os corpos-coisas. De acordo com Suely Rolnik,

O que encontramos, aqui, é um corpo que se abre às forças da vida que agitam a matéria do mundo e as absorve como sensações, a fim de que estas por sua vez nutram e redesenhem sua tessitura própria. Saber do mundo, nesse caso, é colocar-se à escuta

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Uma terapêutica para tempos desprovidos de poesia é o título de Suely Rolnik para um dos textos que compõe o catálogo Lygia Clark, da obra ao acontecimento. Somos o molde. A você cabe o sopro (Rolnik, 2006).

desta sua reverberação corporal, impregnar-se de suas silenciosas forças, misturar-se com elas e, nesta fusão, reinventar o mundo e a si mesmo, tornar-se outro. Plano de imanência onde corpo e paisagem se formam ao sabor do movimento de uma conversa sem fim (Rolnik, 2006, p. 13).

Um corpo que se abre é “particularmente sensível às vibrações e aos ritmos dos outros corpos”, pontua José Gil (Gil, 2006, p. 66). Esse corpo sensível sente acordar partes adormecidas, se percebe diluído no coletivo, observa as células de seu corpo vibrarem – impressões dos pacientes da artista, destacados por ela no documentário Lygia Clark,

Memória do corpo (1984). Ao exorcizar as fantasmáticas e fazer o corpo ter contato com

o vazio pleno, os objetos relacionais fazem algo vibrar, vagar e variar entre o universo onírico, inconsciente e, ao mesmo tempo, físico e vivencial. Não é preciso explicações, interpretações, entendimentos, conexões lógicas. É antes um fluir nas sensações e delas deixar emergir outras tantas relações sensoriais consigo e com o mundo, em sua materialidade, em seus cheiros, líquidos, instintos e animalidades. Ao ir para o sensório, Lula Wanderley acredita que a artista liberta o gesto do objeto, produz uma arte da escuta e faz correr uma mesma matéria entre os corpos. Segundo o artista plástico e psiquiatra,

por ser a sensorialidade o que corre dentro, você não é capaz de identificar, você não é capaz de criar uma imagem visual. Você tem uma imagem sensorial. Nessa impossibilidade de voltar à visão, ele termina alimentando o teu corpo, abrindo o teu corpo e se alojando em uma parte imaginária interior. Essa é a grande característica dos objetos relacionais, essa fusão com o corpo, porque Lygia desenvolveu uma arte que era verdadeiramente um interdito à visão, à imagem. Os objetos relacionais não permitem que você construa interpretações. Aí está a força dele e o mistério12.

Uma poética selvagem, rude e bruta, descreve o terapeuta Pierre Fedida (Rolnik, 2006)13. Uma poética da experiência, define o crítico de arte brasileiro Paulo Herkenhoff, ao perceber em sua arte um esforço para integrar-se ao outro. Segundo ele, percepção, sensorialidade e fantasmáticas foram gradativamente articuladas, produzindo uma estética dos sentidos a qual, por sua vez, implica numa política dos sentidos, cuja composição se dá por uma política de alteridades. “Viver a percepção, ser a percepção”, diz Lygia Clark sobre o ato. Seu processo artístico é descrito por ela como um mergulho nas profundezas, sem ponto de referência com o próprio trabalho. Ao mesmo tempo em que se volta para o corpo, sente que o corpo a deixou.

Morta? Viva? Estou extinta pelos odores, sensações táteis, calor do Sol, sonhos. (...) Eu sou o antes e o depois, sou o futuro no presente. Sou o dentro e o fora, o direito e o avesso. (...) Plenitude. Trasbordamento de sentidos. Cada vez que respiro, o ritmo é natural, fluido. Ele se cola à ação. Tomo consciência de meu “pulmão cósmico”. Penetro no ritmo total do mundo. O mundo é meu pulmão. (...) Tudo isso talvez não seja claro. Mas a evidência da percepção que tive é a única coisa que tenho (Clark, 1980, pp. 23-24).

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Lula Wanderley, arista plástico e psiquiatra. Entrevista realizada em 12 de Agosto de 2015, no Rio de Janeiro (Brasil). Informação verbal.

O paradoxo de Lygia Clark, na percepção do poeta e parceiro da artista no Movimento Neoconcreto, Ferreira Gullar, é que a arte por ela produzida não é criação de imagem ou metáfora, e sim uma experiência meramente sensorial, corporal, porque reduz o que há de intelectual na própria arte. Linguagem muda, pensamento mudo, sons irreconhecíveis que tomam corpo, se materializam nos nervos, “numa vibração magnética que sobe à flor da pele” (Clark, 2008, p.122). É na sabedoria do corpo, em seus tremores, espasmos, vibrações, que a artista descobre uma nova realidade, tão atual que a Companhia Perdida encontrou, na relação com objetos inspirados na obra de Lygia Clark, na metodologia Clark/Terra, um outro modo de variar e compor com os corpos, num mergulho vertiginoso nas sensações, nos corpos vibráteis, liberando potências de criação em vazios plenos.

Um trabalho físico que, para Érica Tessarolo, fez perder a fisicalidade, perturbando os sentidos a ponto de ter a impressão de que seus ossos enrolavam por debaixo da pele. Um corpo sensível pulsante cujas sensações e estados não se desvinculavam das movimentações, segundo Flávia Scheye. Uma noite de insônia com um campo de imagens e sensações, num movimento cíclico e incessante entre consciência e inconsciência, tremores incontroláveis, cavernas e monstros, descreve Isabel Monteiro. Sensação de estar diante de um bicho ancestral, diz a bailarina sobre uma das texturas das sensorimemórias de Juliana Moraes, a qual percebeu que a riqueza e o desafio dessa investigação era justamente compor uma dança que mantivesse as vibrações dos corpos sensíveis.