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Sensações/estados a imbricar processo e criação: Estudos de Flávia Scheye

CAPÍTULO 2. TUDO DIGERIDO 149 Secreções e vibrações: sensações como estados de criação em arte

1. A MAGIA E A VIDA:

1.1 O espírito recusa-se a conceber o espírito sem o corpo – Sensorimemórias, um modo de criar em dança

1.1.2 Uma nova perspectiva

1.1.2.3 Sensações/estados a imbricar processo e criação: Estudos de Flávia Scheye

Uma espuma em formato de estofado de poltrona pressionada em Flávia Scheye com as mãos e também com o peso do corpo de seu par, a bailarina Paula Pi, sobre pés, pernas, braços, peito, costas. Uma sensação desprovida da vontade de movimento. Uma sensação de peso, acomodação, não querer se mexer. Entregue ao chão, a bailarina tem uma respiração suspirada, misturada a um mau humor assemelhado ao que ocorre quando fica sonolenta. Aos poucos, um arrastar, algumas mudanças de posição a favorecer que o objeto seja pressionado em outras partes de seu corpo e, por vezes, ser deixado como apoio para as pernas, a coluna e a cabeça. Pausas e poucas variações. Pequenos deslizamentos até sentar. Um peso na cabeça, em favor da gravidade, e um corpo que retorna ao chão. Não chega a ser uma queda, é antes um derramar-se. Deitada de lado como um bebê, com as mãos unidas e os pés também, com a cabeça bem pesada, inicia um impulso contínuo com a púbis a arrastar quadril e pernas. Esse mover marca o pulso que é mantido, a partir daqui, em toda a experimentação. A bailarina descobre diversas variações possíveis nesse arrastar-se: deslocar-se em torno do próprio eixo, caso apenas as pernas responderem aos impulsos; ir para frente, se deixar o ombro que está no chão integrar-se ao pulso do movimento; a parte superior da coluna pode responder arqueando-se para trás; ir para cima e para baixo em relação ao próprio eixo de seu corpo pousado no chão. Superada a imobilidade inicial, a sensação do pulso que gera a movimentação passou a ser a tônica dos deslocamentos. Outra variação acontece quando ela pressiona o corpo no chão e eleva o quadril que, dentro do pulso, cai com o peso liberado para a gravidade, configurando um corpo aos pulos a fazer as mesmas trajetórias já descritas. Sentada sobre os ísquios, com as pernas dobradas para o mesmo lado, o impulso mantém-se e as variações no nível baixo são experimentadas no nível médio, oras com os braços pousados sobre as pernas ora respondendo ao pulso. Um rastejar desconhece barreiras (pessoas, bancos, paredes), pois mesmo diante delas o corpo mantém sua qualidade de deslocamento, razão pela qual a bailarina refere-se ao corpo como “bicho burro” que segue intermitente. O que muda são as velocidades e intensidades e as maneiras de sentar a partir de um corpo lânguido e pesado que, por vezes, se põe a bufar. A imagem de uma lesma33 emerge dessa experimentação.

33 Sobre a sensação de lesma, Flávia Scheye cita o poema Mundo pequeno do poeta brasileiro Manoel de Barros, em seu

depoimento no livro digital Sensorimemórias: um processo de criação da Companhia Perdida (Moraes, 2012c): “Toda vez que encontro uma parede / ela me entrega às suas lesmas. / Não sei se isso é uma repetição das / paredes ou de mim. / Estarei incluído nas lesmas ou nas / paredes? / Parece que lesma só é uma divulgação / de mim. / Penso que dentro da minha casca / não tem um bicho: / Tem um silêncio feroz. / Estico a timidez da minha lesma até / gozar na pedra” (Barros apud Scheye, 2012, p. 117).

Figura 12 – Imagens still de gravações do projeto Sensorimemórias (2011). A criadora-intérprete Flávia Scheye em experimentação com espuma de estofado.

Duas esponjas macias de banho, passadas pela pele em movimentos alternados, com toque leve e a sugerir o ritmo da respiração, com tempo forte na expiração, como num alívio. Uma ondulação na coluna a reverberar para todo o corpo. Nesse balanço, o corpo se recolhe lateralmente, mãos se aproximam do peito e começa um deslizar. Sentada sobre as pernas dobradas, segue o ondular da coluna. Os movimentos são densos e leves. Os gestos são acumulados. As mãos percorrem o corpo. No nível alto, os pés quase não saem do chão. Quando um dos pés se desgruda, desliza pelas pernas. Um mover-se inquieto. À frente do corpo, as mãos iniciam uma variação dinâmica a partir dos dedos que parecem querer tocar o espaço e por vezes tateia o rosto. Expirações ainda mais acentuadas, marcando um ritmo. Um balanço lateral com o quadril, pequenos saltos em deslocamento intercalados a suspensões do peso. É uma dança ritmada. Variação de velocidades e gradações de intensidades, por vezes com as mãos nas laterais do corpo, em outras com apenas um braço acima da cabeça; ora a cabeça pesando para frente, em pequenos e grandes tremelicares do tórax, com ondulações semelhantes a pequenos orgasmos, e ora um deslizar saltitante a compor com o ritmo da respiração, com se os pés estivessem a moldar o chão.

Figura 13 – Imagens still de gravações do projeto Sensorimemórias (2011). A criadora-intérprete Flávia Scheye em experimentação com espojas de banho.

Um pedaço de tule/véu grosso. Ao invés do toque na pele, a atenção volta-se para o seu barulho quando manipulado. Os dedos das mãos mexem-se suaves e guiam o corpo em direção ao ruído produzido pelo tule, pontuando o ar delicadamente. Olhos fechados,

uma aflição que faz os músculos do rosto se repuxarem. Sobrancelhas, nariz e boca em movimentos simultâneos ou sequenciados, também à procura do material pelo espaço, como a farejar. A sensação é de que a expressão não está exatamente no corpo, mas à frente de si. A coluna tem um movimento sinuoso e lânguido. A movimentação é pequena e as extremidades estão acordadas. Essa frequência qualitativa se repete cada vez que o tule muda de lugar. Aos poucos a tensão e o relaxamento produzidos pela musculatura da face reverberam para a coluna, num chacoalhar, produzindo uma tensão em todo o corpo, até mesmo nas pernas, quando estas não se mexem.

Figura 14 – Imagens still de gravações do projeto Sensorimemórias (2011). A criadora-intérprete Flávia Scheye em experimentação com tule/véu.

As texturas de Flávia Scheye constituíram-se por memórias diretas relativas às sensações experimentadas com os objetos, mesmo nos momentos em que surgiu a impressão de mau humor, semelhante a quando fica sonolenta, ou a de ser um bebê, a partir da posição deitada e recolhida. Segundo ela, a investigação em torno das

sensorimemórias permitiram uma intricada construção sensorial do corpo na qual

processo e produto estão diretamente implicados. Um trabalho que acessou um lugar desconhecido para si mesma. Catarse, choro, dançar e não lembrar o que fez, assistir aos vídeos das experimentações e não se identificar com a maneira de se mover. Situações nunca antes vivenciadas pela bailarina no âmbito de um trabalho de criação. Ela pontua que o interesse não estava especialmente na catarse, mas sobretudo o que ela podia gerar, o tipo de movimentação suscitada pelos estados do corpo, em grande parte bastante diferentes de uma gestualidade cotidiana. O foco estava na manutenção de um corpo sensível, pulsante, que se percebe em maior profundidade.

Muitas vezes, a impressão que tenho é que as sensações que esta dança desperta em mim já estavam há tempos impressas no meu corpo, se mostrando, de vez em quando, quando encontravam alguma experiência que lhes cabia. (...) Ao tentar retomar tecnicamente o que havia surgido nessas experimentações, percebi que não conseguia

desvincular a sensação/estado que havia ficado das movimentações. Era o jeito de

fazer aquilo que me interessava; para conhecer melhor o que eu estava fazendo, era necessário “atravessar” o material criado, permitindo que essa dança me modificasse inteiramente. (...) Devo perceber o rastro que vou deixando enquanto danço. Devo construir, deixar-me contaminar, envolver e me modificar em um pulso que não muda nunca, se arrasta sem fim. E eu, insistindo em me arrastar pelo chão, delicada e intensamente, vasculho minhas sensações/ emoções/ ações e me transformo “em lesma” nessa dança que se faz em mim (Scheye, 2012, pp. 114-116 – grifos meus).

1.1.2.4 Desabituar, provocar, perder o fôlego: Estudos de Isabel Monteiro

Uma coberta de pelúcia. Num emaranhado, o tecido é colocado em uma parte da pele e girado. Depois, é aberto e deslizado para outras partes do corpo, por dentro da roupa, passando na pele do ventre, plexo solar e pescoço. Sensação de um movimento contínuo, suave e no universo da torção que ganha vida. A pelúcia segue a deslizar pelas costas e pernas, algumas vezes é abraçada por Isabel Monteiro. De bruços, apoiada nos antebraços e mãos, ela empurra-se para trás, deslizando o corpo pelo chão. Seguindo a fluidez do movimento, por vezes a cabeça entra e sai por entre os braços, os quais são sempre amplos. Caminhadas sobre os joelhos, no nível médio. Coluna sempre em movimento, pernas passando por dentro umas das outras, as vezes uma mão puxando uma perna. Combinações cinéticas que se acumulam no mover do corpo. Um olhar sempre no sentido do nível alto, deixando em evidência o branco do globo ocular. Queixo voltado para baixo. Deitada na lateral do quadril, apoio num dos antebraços, pernas alternam-se riscando o chão, um braço é lançado para trás, passando por cima da cabeça. Ao mover-se, uma melodia cíclica emerge como estratégia para desprogramar um padrão sensório-motor fluido e tão habitual, previsível e característico da bailarina. Perder e retomar o ar junto à melodia. O corpo encontra os locais de passagem dessa canção pela musculatura. As vezes é com uma onda a passar, em outras duas em simultâneo, em movimentos sem paragem. Descoberta de suspensões e quedas com a respiração. A melodia é cantada até que se perca o fôlego, levando cada expiração ao seu limite. Em seguida, uma queda. E o corpo volta a deslizar de maneira macia, para frente, para trás, girando em torno de si, subindo e descendo de nível até que estabiliza no nível alto. Para continuar com a sensação da pelúcia a deslizar pelo corpo, um dos pés arrasta-se no chão. O fluxo e as acumulações de movimento seguem sem cessar.

Figura 15 – Imagens still de gravações do projeto Sensorimemórias (2011). A criadora-intérprete Isabel Monteiro em experimentação com coberta de pelúcia.