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Entre o aquoso e as labaredas: Estudos de Carolina Callegaro

CAPÍTULO 2. TUDO DIGERIDO 149 Secreções e vibrações: sensações como estados de criação em arte

1. A MAGIA E A VIDA:

1.1 O espírito recusa-se a conceber o espírito sem o corpo – Sensorimemórias, um modo de criar em dança

1.1.2 Uma nova perspectiva

1.1.2.1 Entre o aquoso e as labaredas: Estudos de Carolina Callegaro

Bolsa de água quente, combinada com um tecido aveludado. Corpo deitado, entregue, pesado, começa a mover-se com pequenos balanços e desabamentos. A cabeça quer ficar no chão, as outras partes articulam-se em função desse peso. As mãos têm pouco tônus, são moles e movimentam-se de maneira pesada e são proximais, deslizando sua parte externa pelo corpo, alternadamente, para produzir calor – a mesma quentura sentida com a bolsa de água quente sobre a pele. Carolina Callegaro aproxima-se de si mesma, recolhendo-se continuamente. Abraça-se com os joelhos encolhidos. Alterna, durante todo o tempo, pequenos balanços, por vezes na coluna toda, em outras somente na cabeça. Pequenos suspiros de aflição que começam no baixo ventre, com a retirada da bolsa de água quente de uma parte do corpo, ao sentir a pele tomada pelo vento frio da sala. Sensação de ser a água a mexer dentro da bolsa de água quente. Ao deixar-se cair, reverbera ainda os pequenos balanços. Com a cabeça no chão, os braços escorrem e arrastam-se ao redor, como a esconder sua face. Os movimentos são lentos. Há pausas que, no entanto, são sempre preenchidas por uma parte do corpo a se mover,

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Explicitação é um método de investigação desenvolvida por Pierre Vermersch, através de uma pedagogia fenomenológica, que tem como objetivo acessar a experiência subjetiva (Cazemajou, 2014). Para tanto, no curso Explicitation Interview Course, realizado entre os dias 14 e 18 de junho de 2016, na Faculdade de Motricidade Humana da Universidade de Lisboa (FMH/UL), Anne Cazemajou apresentou técnicas de entrevista, de recolha e análise de dados que abrem possibilidades para uma apreensão de informações que se volta aos aspectos sensoriais, físicos, fisiológicos, corporais, portanto vivenciais narrados pelos entrevistados.

como pequenos balanços da cabeça, uma das mãos em seus deslizes a aquecer a pele ou um cafuné (carinho na cabeça com a ponta dos dedos) ritmado em staccatos. Um corpo que se faz aquoso.

Figura 2 – Imagens still de gravações do projeto Sensorimemórias (2011). A criadora-intérprete Carolina Callegaro em experimentação com bolsa de água quente e tecido aveludado.

Cachecol felpudo a percorrer a pele de Carolina Callegaro, deitada com a parte posterior da coluna no chão. Pés, mãos, pernas, cabeça. O cachecol é enrolado e colocado entre a pele e a roupa na altura da escápula e do músculo do trapézio esquerdo. Boca entreaberta, é por onde passa a respiração. Pulsação do diafragma como fonte de vibração da coluna. Pernas se pressionam internamente uma em direção à outra e soltam-se. Mãos deslizam pelo corpo e, em determinadas partes, como o esterno e a tíbia, uma delas faz movimentos curtos e rápidos, ora com a palma aberta ora com o punho fechado, até a pele aquecer. De cócoras e então sentada, por vezes a cabeça desliza lenta e densa em uma direção. O peito abre, as mãos fazem apoio para que o tronco e a cabeça sejam suspensos e se voltem para trás, segue a respiração que vibra diafragma e coluna. Érica Tessarolo, que aplica o objeto, tem a impressão de ser a imagem de um orgasmo. O corpo começa a subir pressionando a si mesmo, testando partes que permitam sua elevação até o nível alto. De pé, uma leve trepidação na coluna, respiração em pequenos soluços, braços suspensos, dedos das mãos separados, peso que escorre para o chão, a dificultar a caminhada. A ponta do polegar e do indicador da mão direita tocam-se e deslizam, enquanto os outros dedos estão alongados.

Figura 3 – Imagens still de gravações do projeto Sensorimemórias (2011). A criadora-intérprete Carolina Callegaro em experimentação com cachecol felpudo.

Caixa de fósforos. Palitos acesos passeando perto do corpo. Lidar diretamente com um trauma de infância, quando seu casaco pegou fogo em uma festa junina. Aflição instalada. Cabeça girando repentinamente de um lado a outro, como se levadas pelas orelhas, com pausas e novos movimentos conforme os sustos provocados pela proximidade da chama. Respiração ofegante, expulsa em um só impulso o ar dos pulmões, como num chicotear durante a expiração e que se repete no sentido da inspiração, alternadamente. Corpo tenso o tempo inteiro, reage e se fecha em relação ao espaço. Nunca há enfrentamento. Os deslocamentos são no sentido de escapar do fogo. Os movimentos são súbitos, como o levantar a uma só vez. Em outros momentos o corpo fecha-se totalmente em si. A bailarina se emociona, porque percebe que esta é uma posição na qual costuma ficar, dobrada em si. De cócoras, no nível médio, caminha também para escapar. A mão esquerda predominantemente está a se recolher, enquanto a direita a espanar com o mesmo desenho dos dedos da textura do cachecol: com o polegar apoiado no indicador e os outros dedos abertos, porém aqui não há deslizamentos, apenas um toque firme. Há uma tensão no abdômen que é contínua. Cabeça, mãos, tronco e pernas fragmentam-se e alternam-se, na velocidade da

respiração. Algumas vezes há a inserção de pausas. No nível alto, em pé, as pernas esfregam-se umas nas outras, assim como as mãos, seguindo a tendência de movimentos concêntricos, como a evidenciar as labaredas que sobem pela pele. Uma das mãos passa a vibrar sozinha das pernas à cabeça, rápida e alternadamente. É como se o corpo fosse o próprio fogo.

Figura 4 – Imagens still de gravações do projeto Sensorimemórias (2011). A criadora-intérprete Carolina Callegaro em experimentação com caixas de fósforo.

Chave de fenda sobre a pele. A parte de plástico usada como um batuque, com pequenas batidas a estimular diferentes segmentos do corpo. A parte de metal é passada entre os dedos dos pés, depois a ponta cutuca e alterna-se com deslizamentos, num quase arranhar. O corpo começa a tremelicar. Rosto, pernas, pés e mãos. Uma agitação reativa ao objeto. De pé, a coluna se contorce, assim como a cabeça. Por vezes, há uma aflição no pescoço, que se alonga enquanto a cabeça estica para a lateral direita e levemente para trás, em oposição ao ombro esquerdo. A imagem é de um corpo tomado por formigas. As pernas são inquietas, se mexem o tempo inteiro. O quadril faz uma báscula para frente, os pés sobem na meia ponta, os dedos começam a se mexer e o corpo desloca-se pelo espaço, com o queixo para frente e o esterno para trás. Os dedos das mãos também se movem alternada e continuamente. A respiração segue o pulso dos

tremeliques e é, por vezes, interrompida por alguns impulsos. Os braços, mais pesados e articulados, gesticulam como se a bailarina estivesse a falar. Vez por outra as pernas repetem a dinâmica dos braços. Com o tempo a velocidade ralenta, o corpo fica mais pesado, embora permaneça na mesma qualidade. Surge um passar das mãos pelo rosto que parecem empurrar algo para o chão, acompanhado de uma respiração com ênfase na expiração, assim como nos movimentos excêntricos. A sensação da bailarina é de estar rabugenta ao fazer esse gestual. Há qualquer coisa de figurativo, segundo ela.

Figura 5 – Imagens still de gravações do projeto Sensorimemórias (2011). A criadora-intérprete Carolina Callegaro em experimentação com chave de fenda.

Essas são as quatro experimentações que configuraram as texturas de Carolina Callegaro, posteriormente detalhadas e elaboradas no processo de composição coreográfica. Delas, as duas primeiras – com a bolsa de água quente e o cachecol – com dinâmicas mais lentas e fluidas e as outras duas com frequências mais aceleradas e quebradas – fogo e chave de fenda. As duas primeiras texturas, depois da experimentação com os objetos, remeteram a bailarina a outras memórias de infância, anotadas no início da pesquisa, em torno de sensações ligadas à repreensão que resultaram na sua timidez. A percepção dessa relação a fez dançar parte de seu estudo dentro de uma caixa de papelão, para dar mais densidade às sensorimemórias, cuja associação com os fatos disparadores da criação são assim evidenciados:

Sinto meu trabalho apoiado nas memórias corporais que surgiram desse procedimento, bem como nas imagens, sensações e experiências que minha percepção captou e guardou do encontro com cada objeto e do modo como as memórias vieram, e ainda vêm à tona no meu corpo. São memórias de afetos, da sensação da pele se aquecendo pelo sol e por um abraço. E também a memória de se queimar com faíscas de fogos de artifício numa festa junina quando criança, pegar fogo, correr descontrolada e desesperadamente, depois surgir um grande medo do fogo. A memória de correr atrás

do garoto que eu gostava na pré-escola para conseguir um beijo e ser repreendida pela professora. Memórias associadas à sensação de ser reprimida e julgada. A sensação de

existir movimento, desejo, ação, expressão e, em seguida, prevalecer a introspecção, a expressão contida dos desejos e movimentos. A lembrança dessas

interferências externas que me podaram, me fizeram recuar e reduzir meu espaço até

ficar tão pequena a ponto de poder caber dentro de uma caixinha, e, assim, aprender

que meu espaço era pequeno, quieto e calmo, que seus limites eram bem menores do que na realidade são, e que eu não podia sair para além desses limites. Simultaneamente, a sensação de que dentro desse espaço havia densidade, melancolia, e muitos impulsos

internos que eu não deixava sair, e que quando escapavam ao meu controle, eram

estabanados e grosseiros, porque eu não os reconhecia nem tinha domínio sobre eles (Callegaro, 2012, pp. 124-125 – grifos meus).