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Eruditamos tudo Esquecemos o gavião de penacho

CAPÍTULO 2. TUDO DIGERIDO 149 Secreções e vibrações: sensações como estados de criação em arte

2. TUDO DIGERIDO

2.2 Eruditamos tudo Esquecemos o gavião de penacho

– Vibração poética em Carlos Simioni, Luis Ferron/Renato Ferracini e Gustavo Sol

Um corpo parado que se deixa mover. Foi na praia de Paracuru (Ceará, Brasil), em 2009, Ano 453 da Deglutição do Bispo Sardinha, que o ator-pesquisador do Lume/UNICAMP, Carlos Simioni revelava uma investigação mobilizada por partes bastante sutis de seu corpo e que me deixou inquieta. Porém, o mais inusitado aconteceu quando a bailarina Érica Tessarolo se referiu com as mesmas palavras para falar da sensação de seu corpo com as sensorimemórias. A questão é que Carlos Simioni havia descoberto um estado. Um estado de nada, um estado que a ele parecia pleno, um estado de vibração. Seria possível fazer arte sem mover-se? Estaria mesmo o corpo sem movimento ao estar parado? Que experimentação se desdobraria desse corpo parado, já que Simioni é um ator e um ator, normalmente, desloca-se em cena, ainda que lentamente, como é mais comum acontecer no butô? No entanto, um abandonar-se em si parecia-lhe abrir uma atmosfera interessante para a pesquisa de ator. Sentiria ele ser movido pelo mundo, como a bailarina?

Pela primeira vez ele ousava desenvolver uma investigação que fosse singular, pessoal, própria. Até então, sentia-se responsável por manter vivo o trabalho do mestre Luís Otávio Burnier. Professor do curso de Artes Cênicas da UNICAMP, fundador do Lume, junto com Carlos Simioni, em 1985, Burnier faleceu dez anos depois, deixando um legado de treinamento energético inspirado no trabalho de Etienne Decroux, de quem foi discípulo, e em pesquisas com diversos mestres como Eugênio Barba, Philippe Gaulier, Jacques Lecoq, Ives Lebreton, Jerzy Grotowski e de estudos do teatro oriental (Noh, Kabuki e Kathakali)14. Houve, ainda, uma passagem de sete anos pelo Candomblé, religião popular e tradicional brasileira, dado o interesse de Burnier pelo estado de

vibração das pessoas que incorporam os orixás – divindades. Um trabalho desenvolvido

inicialmente sem qualquer compromisso com reprodução de técnicas ou estilos, mas com um desejo específico de investigar o corpo e suas energias.

Depois de passar por extensas horas e longos anos em trabalhos de exaustão e hipertensão, focados em alterações de energia do corpo, cujas composições cênicas eram elaboradas sem temas ou imagens dadas a priori, Carlos Simioni começava, por volta de sete anos depois da morte de seu mestre, a perceber que podia acessar, com a mesma intensidade, sutilezas de seu corpo sem a necessidade de dispender tanto esforço. Isso parecia libertador, porque, contraditoriamente ao seu cotidiano como ator do Lume, Simioni nunca gostou de trabalhar com o corpo. Foi ministrando oficinas que ele

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O Lume Teatro completou, em 2017, 32 anos e sua história e linhas de pesquisa estão detalhados em trabalhos bibliográficos diversos, dos quais destaco Ferracini, 2013; Colla, 2006, 2010. Outras informações no site do grupo,

intuiu a possibilidade de “trabalhar o corpo sem o corpo”15. Ele notava que, ao pedir para seus alunos se abandonarem e trabalharem somente com o fluxo que sentissem percorrer a musculatura, a atmosfera da sala de pesquisa alterava-se, mesmo que ninguém se movesse. Um abandono que me parece semelhante à noção de desistência proposta por Gustavo Sol, no sentido de ater-se ao presente, ao ato e não gerar expectativas sobre o que fazer, embora em diferentes circunstâncias.

Era o início da percepção de uma camada muscular dentro da qual o ator descreve sentir uma substância etérea, sutil, e por onde fluxos magnéticos emanam vibrações que percorrem a pele. É curioso notar o uso das mesmas palavras de Lygia Clark para tratar de um corpo sensível/sensibilizado, o qual me parece da mesma ordem do que Rolnik nomina como corpo vibrátil, campo de forças, intensidades. Nessa pesquisa, Carlos Simioni fabula com seu corpo assim como tateia as palavras que, de alguma maneira, podem descrever as sensações que ele evoca. Mesmo com receio de “parecer bobagem” e sem formular definições, pois esta é uma pesquisa em processo de sistematização, ele diz sentir como se partículas de luz (energia) mobilizassem essa substância presente na musculatura. Quando apenas essas partículas se movem, sem nenhum comando do ator, é como se elas brincassem no seu corpo e ativassem um desejo de seguí-las, independentemente do que elas proponham como movimentação.

Segundo Simioni, é preciso atenção para que vícios de treinamento de ator não se interponham à experimentação. Justamente tentando se livrar de todo seu arsenal técnico – como a dança dos ventos, a dança pessoal, o clown, o Samurai, a Gueixa, a Pantera, as posturas fora de equilíbrio, próprias do teatro físico e do Lume – que ele se percebeu usando a técnica para dela se libertar. Diante disso, em sala de ensaio, passou a debochar da técnica até descobrir que não há como tirá-la de seu corpo, pois tudo que aprendeu em 30anos é justamente o que lhe faz hábil para captar com sagacidade as camadas musculares e os fluxos energéticos que atravessam sua corporeidade. A chave para não ser atropelado pela técnica já codificada, então, seria focar sua atenção ao que as tais partículas solicitam, quando acionadas. “As partículas têm a percepção e eu só ajudo. Elas são mais conscientes, estão mais presentes”, pondera o ator sobre a inteligência do corpo e o seu jeito particular de encontrar sozinho saídas inusitadas diante das situações de treinamento em que é colocado16. Libertar o corpo de técnicas codificadas também era uma questão para Juliana Moraes em Sensorimemórias.

Depois de três anos esperando um mover sem comandos, Simioni começou a experimentar um corpo que passa lentamente por posturas, como abaixar até o chão, difíceis de serem feitas se não for mantida a conexão entre as partículas que percorrem

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Carlos Simioni, ator. Entrevista realizada em 14 de Maio de 2015, em Campinas (São Paulo, Brasil). Informação verbal.

essa musculatura sutil. O corpo inteiro fica mobilizado nesse estado de nada que se instaura. Com isso, Simioni descobre outras alavancas no corpo enquanto “degusta” em detalhes um mínimo deslocamento, se visto a olho nu, pois trata-se de um estado de

nada onde tudo pode acontecer. Até mesmo ficar com a musculatura mais requisitada e

dolorida do que nos treinamentos energéticos ligados à exaustão e à hipertensão. Um contrassenso no cerne da pesquisa: um corpo sem corpo e uma investigação física sem exaustão que também cansa a musculatura.

Nesse início, sentia árvores e passarinhos dentro de si e pensou “será que eu apaguei tudo? Minha consciência se expandiu. Mas isso não é teatro. Mas foi através do trabalho de ator. Então calma!”17. Diante dessa experiência, percebeu a musculatura do peito abrir e teve a certeza de que era preciso eliminar o ego – a parte de si que comanda, interpreta e julga – para que esse novo estado vibracional acontecesse, sem a necessidade do movimento e num outro tipo de equilíbrio. As partículas de luz “iluminavam” o estado do corpo, deixando-o “aceso”. Tal como atribui ao trabalho de Burnier, Simioni sentia-se colocando luz na matéria. Foram cinco anos nesse lugar, sem saber bem para onde ir, mas certo de ser este um foco potente para desenvolver uma pesquisa singular pelos próximos 30 anos.

A criação do solo Sopro, em 2005, veio do desejo de materializar cenicamente esse

estado de nada diante das possibilidades de movência descobertas. Carlos Simioni tinha

o estado vibratório, mas não sabia dar forma e nem colocar no espaço. Para isso contou com a direção de Tadashi Endo, artista japonês, com quem havia trabalhado no espetáculo do Lume, Shi-Zen – 7 cuias (2004). Ao assistir à demostração desse trabalho, o diretor associou a densidade corporal de Simioni a atores do Teatro Noh, uma forma teatral da cultura japonesa que combina canto, pantomina, música e poesia e cuja técnica somente é transmitida em família, não havendo maneira de aprendê-la. Para o ator, a relação deve ter se dado porque a tensão de energia do seu estado tendia a uma internalização.

A peça tem um tempo expandido, com deslocamentos lentos e intensos. Sopro remete a um momento de passagem de um estado para outro, é “uma experiência sensorial, onde tempo e ação são completamente distintos do cotidiano, que propõe ao espectador a oportunidade de mergulhar no vazio e no desconhecido”, diz o texto descritivo do espetáculo. Apesar de sentir que tinha encontrado algo potente, quando o trabalho foi apresentado vieram críticas que fizeram Carlos Simioni repensar algumas escolhas e ter a certeza de que havia perdido a força do “estado iluminado”, aceso pelas partículas de luz, que havia descoberto.

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Anotações da fala do ator Carlos Simioni durante a demonstração técnica Prisão para a Liberdade, apresentada no Ciclo Criador, Dramaturgias do presente e ações do teatro no mundo, no Oi Futuro Flamengo, Rio de Janeiro (Brasil), em 11 de

Mídia 14. Clipe do espetáculo Sopro. Disponível em http://bit.ly/simioni.

Em uma autocrítica, ele acredita que esse desvio aconteceu pelo fato de ter coreografado e fixado o estado vibratório em uma sequência no espaço. “Esse estado do não fazer nada, ou de estar iluminado é muito livre, é uma liberdade suprema e eu encarcerei um pouco, eu quis deixar uma coreografia, para criar um espetáculo”, analisa18. Impasse semelhante ao que passou Juliana Moraes, na direção de Peças curtas para

desesquecer. Para o ator, este seria um sinal de que ele ainda não havia desenvolvido o

estado suficientemente para torná-lo material para um espetáculo.

Figura 39 – Fotografias de Tina Coelho (duas primeiras) e Adalberto Lima (duas últimas),

do espetáculo Sopro, de Carlos Simioni, com direção de Tadashi Endo, 2005, Campinas, São Paulo, Brasil.

Após a estreia, Simioni focou atenção no aperfeiçoamento do

estado pleno, que se alimenta do presente e não do passado,

tempo no qual que acredita ter detido nas primeiras apresentações de Sopro, cujos movimentos foram repertoriados e, assim,

rememorados a cada apresentação, bloqueando o frescor do instante. Diante disso, ele criou uma metodologia de ensino19 e compartilha, mensalmente, descobertas com outros grupos de atores, mais especificamente com o Ateliê de Pesquisa de Ator (APA) do Centro Cultural Sesc Paraty (Rio de Janeiro, Brasil), numa parceria com o ator Stephane Brodt, vinculado ao Amok Teatro, no Rio de Janeiro.

Com esse trabalho, o estado pleno desdobrou-se dimensionalmente com a percepção de um portal que circunda o corpo, com um campo magnético, ativado por meio das partículas, as quais se conectam e “acendem” as camadas musculares sutis. Quando um estado se efetiva, o portal oferece presentes, fluxos de energia que retornam para o ator. Ao mesmo tempo, ele também oferece presentes ao universo. A troca energética acontece em quatro camadas, que se distribuem entre o espaço pessoal – como primeira camada aquela na qual o estado é acionado e o corpo deixa-se mover por ele mesmo – e o espaço além do corpo anatômico, no qual a energia e o corpo se expandem no mundo mantendo o estado da primeira camada. Para Simioni,

O Portal é justamente esse entrar no coração, no seu ser. E de você ampliar tuas percepções, tuas imagens, tudo isso. O Portal é isso, é tudo, todos os presentes que vêm. (...) No Portal, por exemplo, ele amplia de uma tal forma a tua consciência, não só a consciência daqui mas a consciência do todo, que você, quando recebe um presente, por exemplo, nada mais é do que você ampliado! Você com a percepção mais aguçada. (Teixeira e Sachs, 2017, pp. 137-138).

Com o tempo, Simioni aprendeu a dosar a intensidade dos estados, não se limitando a uma energia mais explosiva, que surgiu inicialmente, mas fazendo oscilações entre diferentes gradações. Ao longo da experimentação, o ator entendeu que é preciso escutar o momento e não ter receio de que, ao ser partiturizado, coreografado, o estado se perca, porque o instante e o tempo presente são condições para manter viva a primeira camada, estado pleno de onde tudo emerge – estratégia que se aproxima da que Gustavo Sol lançou para a Companhia Perdida como olhar investigativo. Ao sistematizar e transmitir sua descoberta, Simioni se percebeu conectado a saberes que o acompanham desde os primeiros tempos de experimentação no Lume, com o diretor Luís Otávio Burnier e por experiências com mestres mundo afora. Ainda que não sejam mais as mesmas técnicas, há princípios que atravessam uma dimensão temporal e dão ainda mais sabor à sua corporeidade. A impressão é de que o ator antropofagizou treinamentos, saberes e experimentações, ao seu modo, depois de um longo ritual de devoração, digestão e assimilação.

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A metodologia de Carlos Simioni está em processo de elaboração. Para tanto, o ator preferiu não conceituar os termos que utiliza para definir os estados do corpo e o modo de acesso a eles que pesquisa. Por isso não há termos de Carlos

Figura 40 – Fotografias de Maira Jeannyse (a primeira, no alto) e Marta Viana, das primeiras demonstrações públicas da pesquisa desenvolvida junto ao Ateliê de Pesquisa do Ator (APA),

nos dias 17 e 18 de Novembro de 2015, Paraty, Rio de Janeiro, Brasil.

“Quero ver luz saindo do teu corpo”, ouvia de Iben Nagel Rasmussen, atriz do Odin Teatret de Eugênio Barba. Ela queria que o ator formasse uma rede ou teia de luz entre o seu corpo e a plateia. Aliás, era luz que Simioni via dançar através do corpo de Kazuo Ohno, no butô. Na dança dos ventos, no treino de leveza, a atriz sugeria uma “oração do abdómen”. “Não quero que você se mexa. Deixe seu fantasma levar o seu corpo, sem a sua vontade”, provocava Natsu Nakajima, discípula direta de Tatsumi Hijikata, criador do butô20. Ser dançado pela força de um deus, de um orixá, experiência do ator nos terreiros de Candomblé que pesquisou em Campinas, com Burnier.

Seriam dessas manifestações que falaria Nietzsche ao dizer que somente seria capaz de acreditar num deus que dançasse? São essas forças que estão na dança do Tarahumaras que encantou Antonin Artaud? São dessas vibrações que trata Lygia Clark em sua obra e que desafiou vertiginosamente a corporeidade das bailarinas da Companhia Perdida? É nesse universo que reside o diálogo de corpos que Gustavo Sol experienciou numa tribo indígena brasileira? Há um estado de vibração cuja força me parece interligar, embora não iguale, por haver singularidades, diferentes manifestações artísticas e ritualísticas, uma vez que liberam um potencial de criação no qual camadas sutis do corpo são acessadas num nível intuitivo, pré-verbal, fora da linguagem e mais

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Anotações da fala do ator Carlos Simioni durante a demonstração técnica Prisão para a Liberdade, apresentada no Ciclo Criador, Dramaturgias do presente e ações do teatro no mundo, no Oi Futuro Flamengo, Rio de Janeiro (Brasil), em 11 de Agosto de 2015.

perto de um coração selvagem21, do animal de que somos feitos e que o projeto de civilização tenta enquadrar, segmentar, pacificar, ainda que sem um absoluto sucesso. O fato é que, convidada para assistir Kelbilim, o cão da divindade, peça de estreia do Lume Teatro, em 1988, apresentada num antigo convento de Campinas, a mãe de santo do terreiro pesquisado por Simioni e Burnier assustou-se ao ver o ator vivenciando o personagem, que recebia a plateia na porta. Ela se aproximou e disse “ô mamãe, o que a senhora está fazendo aí?”, dirigindo-se à orixá Iansã que, para ela, estaria incorporada no ator22. Energia dos ventos, das trovoadas e dos raios, Iansã é uma entre tantos deuses ligados às forças da natureza, que habitam o imaginário do Candomblé e que caracterizam diferentemente cada um dos orixás. Para Simioni, todos nós somos natureza e essa é uma das chaves que liga a experiência do Candomblé com a dança das luzes de Kazuo Ohno e que justifica a noção por ele lançada de partículas de luz que habitam as musculaturas sutis. “Se você respira o ar, a luz, a água, outras coisas se compõem, não só você. Você é tudo isso. Só que a gente não percebe”, diz o ator que acredita na possibilidade de um corpo sutil ser aguçado, sensibilizado, aflorado23. Uma espécie de Cosmos parte do eu, presente no Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade.

Essa dissolução no coletivo foi uma das primeiras sensações do ator na iniciação para chegar ao transe, portanto à incorporação, depois de quatro anos aprendendo a dança dos orixás. Num acordo com a mãe de santo, Simioni ficou consciente e recorda que chorou ao perceber a beleza de uma planta, como se a visse pela primeira vez. Começava a redimensionar a existência de si no mundo. E atingia uma dimensão que estava além do corpo, dos pensamentos e das emoções. Nessa preparação, teve sonhos reveladores, como o nome dos orixás24. Ao entrar no espaço da dança, no terreiro, percebeu que seu corpo agia num só bloco de energia, interligado, não respondendo comandos conscientes, sendo movido por essa frequência energética/magnética. A dança era ativada pelo toque do tambor, que indica a batida vinculada ao orixá de cada um.

E ali é divino porque você não pensa e vai dançando com essa flutuação. É uma camada extra que é uma flutuação que vai, que vai... Você está muito ligado ao tambor, muito ligado a esse teu estado. É fascinante. É um puro, puro, puro momento presente. É o agora nessa expansão maior. Este fato, deste peso ser diferente de carregar meu peso, isto me ajudou muito no meu trabalho. (...) Eu acho que acendeu algo no meu corpo. Já que o corpo é inteligente, acendeu e o corpo foi atrás. (...) Então isso é pura antropofagia25.

21 Perto do coração selvagem é o título do primeiro romance da escritora brasileira Clarice Lispector. Na altura, ela tinha 19

anos e a publicação data de dezembro de 1943.

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Carlos Simioni, ator. Entrevista realizada em 06 de Agosto de 2015, em Campinas (São Paulo, Brasil). Informação verbal.

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Carlos Simioni, ator. Entrevista realizada em 14 de Maio de 2015, em Campinas (São Paulo, Brasil). Informação verbal.

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Em certas tribos indígenas, a iniciação do pajé na arte da cura se dá pelo isolamento, através do qual recebe orientações sobre plantas e seus usos justamente através de sonhos.

É curioso que a pesquisa desse estado de vibração na sala de ensaio do Lume não surtiu o mesmo efeito, mesmo com a presença da mãe de santo. Simioni não conseguia incorporar a mesma energia que o tomava no ritual do terreiro de Candomblé, os xirês (rodas de evocação). Uma das razões pelas quais, ele e Burnier não seguiram mais a fundo com essa investigação. Porém, mais recentemente, Simioni pontua três camadas de percepção decorrentes desse momento de pesquisa, articuladas às vivências com as diferentes técnicas de treinamento de ator do teatro físico, que dão pistas para o desenvolvimento do estado de nada ou estado pleno que ele tem mobilizado em si. Uma dessas camadas diz respeito ao ato de incorporar. Para ele, os rituais têm a capacidade de acordar uma certa energia, presente em todas as pessoas, e que está adormecida. Assim, ele não sente que algo entra em seu corpo, mas vibra e aflora porque é parte constituinte do ser. Nesse sentido, o que passa é algo semelhante à ativação da energia Kundalini que, na cultura indiana, é aquela que circula pela coluna quando todos os chacras – centros de energia distribuídos pelo corpo – se alinham. Segundo Simioni, esta energia está na base da coluna e, quando despertada, vai até o topo da cabeça e, de lá, segue para o universo, o cosmos, interligando terra e céu. A sensação de incorporação é, assim, associada por ele a uma explosão de Kundalini, que se ativa de forma violenta.

Para explodir é só no ritual do Candomblé, eu acho. É uma força tão poderosa que o corpo existente não tem capacidade de assimilar isso, por isso que ele fica dormente, ele fica em transe. (...) É um despertar de uma força interior que nós temos, do nosso deus interior, que é o orixá, orixás são deuses, e que é muito poderosa e faz com que aquelas pessoas dancem daquela maneira belíssima. Você vê aquela energia dançando. O que eu senti foi exatamente isso. Nossa, mas o orixá não vem de fora, você entende? Não vem de fora. Então a primeira sensação: explodiu de dentro de mim. Isso é fantástico para o trabalho de ator. Para mim, isso foi um ponto muito nevrálgico. O ator tem isso, o ser