• Nenhum resultado encontrado

Estar o professor dentro da experiência não compromete a abrangência de sua percepção - pelo contrário, a experiência o deixa mais acordado. Embora em um estado de suspensão em relação à realidade cotidiana, com nitidez percebe o grupo e a cada criança. Nesse sentido, estar envolvido, viver o deslocamento do plano que o senso comum designa como real, proporcionado pela experiência estética, não acarreta para o professor alienar-se de seu papel. Mas, pelo contrário, vivê-lo em sua potencialidade, disponível a viver a experiência, a “Colocar-se fora de si e fora do mundo (...)” (LEVY, 2003: 32), junto das crianças. Procurando incrementar e sustentar uma atmosfera propícia a que elas possam “(...) inaugurar uma experiência em que as coisas não são ainda” (Ibid., 32), em que por gestos e proposições sonoras, corporais ou plásticas, descolados da reprodução mecânica de modelos e representações, experimentem o movimento da criação.

E o olhar do professor adquire ainda uma outra qualidade, que é apenas aparentemente paradoxal: a neutralidade – no sentido de que ao perceber a cada criança, tocado por esse frescor do ineditismo, esse olhar se dá liberto de preconceitos e expectativas preconcebidas: um olhar que se dispõe e convida ao encontro. E é por essa neutralidade prenhe de cumplicidade que o professor pode proporcionar à criança uma real oportunidade de se reinventar.

Isso não significa uma carga ou um esforço extra; mas sim, abandonar a carga e fazer menos esforço. O que valerá tanto para o professor como para o aluno, já que todos ficam desincumbidos desse peso: por exemplo, fica livre aquele aluno especialmente criativo de sempre ter de arrasar; tomando um outro exemplo, fica livre o professor de ter de lidar, de modo mais ou menos resignado, ou abnegado, com as dificuldades daquele aluno tão difícil, ou com tantos problemas, e que sempre contribui tão pouco.

162

Evidentemente, não é que o professor atento se esqueça do percurso do aluno, ou que se aliene das dificuldades e conquistas de cada um. Apenas se trata de observá- lo à luz do presente, e não à sombra do passado...27

Desse modo, ao se envolver e se comprometer com uma pedagogia do encontro, que se alimenta dessa qualidade de experiência, o professor-artista potencializa simultaneamente seus dois campos de atuação: o pedagógico e o artístico. Como na imagem à qual já recorremos nessa dissertação, em Espaço de Escher , em movimento e fluxo, um campo se põe a desenhar o outro.

É encarnando esse personagem, o do professor-artista, que poderá o artista estender a experiência da criação à sala de aula – não a da sua criação própria, a ser viabilizada através das crianças, mas a da criação das crianças; a qual vive e na qual participa, provocada por aquele encontro, entre aqueles personagens e naquelas circunstâncias. Envolvido e permeado por sua área de conhecimento e linguagem, é ele que atentará aos seus sinais e possibilidades de desenvolvimento. É a sua investidura como artista que pode provocar com que esse desenvolvimento possa se dar deslocado do senso comum. Mas é o professor que como mestre dos encontros, poderá mediar as relações, introduzir e conduzir as propostas e os conteúdos e estimular as conexões - pontuando as suas interferências de acordo com o percurso de cada criança e do grupo.

Porém, mais uma vez ressalto que não se trata de se desenvolver uma dupla personalidade, em que uma hora se é artista, para logo depois deixá-lo de lado e assumir o professor. Permeado por ambos, transita o professor-artista no cruzamento dos planos da arte e da educação; e não só pode como deve se movimentar entre dimensões.

São muitas e variadas as demandas de um professor: algumas são concretas e pontuais, como uma queixa, um pedido... Outras nos acompanham durante todo o período letivo, como a observação das particularidades de cada criança e a avaliação contínua de como está se dando o seu desenvolvimento. Há também a construção do

27

Passagem inspirada pela leitura de Krishnamurti: “O experenciador jamais consegue entender o todo. O experenciador é o acumulado, e não há entendimento à sombra do passado” (KRISHNAMURTI, 2007: 56).

163

grupo como tal, o cultivo dos vínculos, a intermediação dos conflitos, a mediação das relações dos alunos com a escola (os eventos, a orientação em relação a outras atividades), as nossas relações com os pais... Além de todas as questões próprias das linguagens abordadas. Não considero, porém, que sejam essas demandas independentes umas das outras: tudo importa, tudo são cuidados a se entrelaçar, a tecer uma rede de sustentação da experiência e da aprendizagem; o que não impede que possam acontecer situações de conflito, como quando uma atmosfera cuidadosamente cultivada pelos professores e pelo grupo se rompe, por alguém se machucar, ou por acontecer uma briga quando menos se espera.

Evidentemente não é minha intenção desenhar um modelo de professor-artista. Lidando e convivendo com essa questão há muito tempo, por trabalhar na EMIA, onde esta é uma questão de fundo, frequentemente abordada, e também por ter tido a oportunidade de observar como ela é encarada em outros ambientes de trabalho, já escutei muitas opiniões e tentativas de definição sobre o que ele é ou deveria ser.

Uma ideia que sempre me pareceu interessante e abrangente é a de que se trata de um professor que mantém uma relação de envolvimento e criação com a própria linguagem que ensina.

Mas as perguntas continuam, em torno do que definiria essa qualidade de relação: seria o fato desse professor se apresentar em público? Ou, no caso dos artistas plásticos, participar de exposições? Seria aquele que tem uma carreira? Ou, será que vale ter se apresentado, ou ter tido uma carreira?

Embora sejam essas questões pertinentes, já que estimulam discussões instigantes, elas tendem a se esgotar. Pois podem haver opiniões e opiniões, que podem ser as mais diversas – mas será infrutífero tentar elaborar alguma prescrição segundo a qual se possa avaliar se um professor pode ser qualificado nessa categoria ou não.

O mesmo raciocínio se poderia aplicar em relação às questões pedagógicas, o que é em geral menos discutido: o quão versado pedagogicamente necessitaria ele ser? Pois embora a ideia que aponta a importância do envolvimento e da relação criativa

164

com as linguagens artísticas seja realmente interessante, ela dá conta de apenas uma face do problema.

Não há receita, nem alguma proporção pré-estabelecida - do quanto de artista e do quanto de educador há que se utilizar nessa composição... Mas com certeza ambos tem de estar presentes. E me parece se tratar mesmo de uma composição: da composição de um personagem. Na qual toda a história de vida e formação, todas as afinidades e mesmo paixões estéticas, toda a vivência artística e pedagógica serão influentes, estarão presentes, compondo uma espécie de estilo do professor. Assim como a sua própria concepção de arte; e as suas concepções sobre educação e infância. Muito importante é atentar que não é, nem deve ser de modo algum, uma questão de imprimir esse estilo à produção dos alunos. Mas de perceber, por outro lado, que o trabalho do grupo não acontece apartado dele, pois é impossível para o professor dele se ausentar completamente: o estilo o acompanha, embora de maneira desapegada, flexível; como se esse estilo fosse colocado em suspensão, disponível à transformação. De outro modo, além da tendência à rigidez e ao engessamento, ficaria muito difícil acolher e se relacionar com o repertório dos alunos e com as suas invenções, como também com o professor parceiro. No caso da dupla, poderá se produzir uma espécie de composição entre os estilos de cada um – composição que terá a marca, o gesto de cada professor, desdobrado em um outro.

Desse modo, as composições dos personagens professores-artistas serão as mais variadas. O que é imprescindível, ou o que lhes confere tal qualidade é que atuem no entrecruzamento dos campos da arte e da educação, sensíveis a ambos os campos, tocados por ambos, pelos seus gestos, seus signos, sua prática, e pelas possibilidades de conexão e reflexão suscitadas por esse entrecruzamento.

Um exercício contribuiu para a intensificação dessa ideia: uma analogia que ensaiei, entre o professor-artista e o filósofo da educação - este último tomado no sentido apresentado por Gallo (GALLO, 2008: 54-59). Sobre esse personagem ele diz: “O filósofo da educação deve ter intimidade com os problemas educacionais, sentir-se tocado por eles, senti-los na pele; isso não significa que ele deva necessariamente ser

165

íntimo da doxografia educacional – o conjunto de opiniões sobre educação – (...)” (Ibid., 57).

Essa analogia certamente não pretende comparar a natureza da iniciação artística, ou a arte-educação com a filosofia da educação, nem os seus personagens; o que me interessou foi o entrecruzamento de planos diferentes com a educação. Gallo também nos aponta que “Uma filosofia da educação, nesta perspectiva, seria resultado de uma dupla instauração, de um duplo corte: o rasgo no caos operado pela filosofia e o rasgo no caos operado pela educação. Ela seria resultante de um cruzamento de planos: (...)” (Ibid., 57).

Ao experimentar um deslocamento da filosofia para a arte, encontro uma ideia potente e inspiradora em relação ao campo de seu ensino.

Se nos reportarmos ao contexto geral do ensino da arte, encontraremos termos diversos a denominar o profissional que a ele se dedica: há o professor de arte (de música, de teatro...), o arte-educador, o professor-artista (ou artista-professor), o artista-orientador, e ainda o oficineiro. Mais variados ainda são os territórios de atuação destes profissionais: pois há as escolas regulares , os projetos de cunho social, as escolas de arte... Não é o objetivo deste trabalho empreender uma discussão tão abrangente. Mas embora essa pesquisa se reporte a um ambiente bastante peculiar e de certo modo privilegiado – uma escola de arte, em que se trabalha sempre em parceria com um professor de outra linguagem, com grande liberdade em relação à condução das propostas e conteúdos – me parece que o professor-artista, de acordo com a abordagem aqui discutida, pode influir e atuar em todos esses diferentes personagens e territórios.

Muitos e diferentes serão os desafios e as dificuldades e haverá ambientes em que parecerão quase instransponíveis. Muitas serão também as variações na composição desse personagem. Mas ao encarná-lo, mesmo por lampejos, por breves momentos, poderá o professor possibilitar aos alunos e a si mesmo a referência dessa qualidade de experiência que se faz como artística e pedagógica por sua própria natureza; e saberão os alunos, saberá o professor, que outros encontros e

166

acontecimentos poderão vir a ocorrer. E que há de se estar atento a qualquer oportunidade.

Cada professor cria, compõe e recompõe o seu modo de ser e atuar como professor-artista. Exercê-lo não significa necessariamente se apresentar como artista - ou apresentar a sua obra - para os alunos, embora isso possa ser muito rico e estimulante para as crianças, como também para o professor. Não é um valor em si, nada garante; mas será um ingrediente saboroso, que pode abrir o apetite dos alunos, como parte de todo um processo.

Do mesmo modo, a vivência e produção artística própria por si e em si nada atestam. Mas certamente se farão influentes, colorindo, refinando e potencializando a observação e atuação do professor-artista encarnado como tal. De que tipo, grau e frequência? Impossível recomendar ou determinar. E poderá ainda ser mais ou menos próxima da sua prática como professor, estar ou não diretamente mesclada ao seu fazer e pensar pedagógico.

Mas que tal personagem necessita defrontar-se com desafios, me parece uma certeza: para que neles se possa lançar, perder-se e reencontrar-se muitas vezes. Renovando e recriando sua relação e sua paixão pela área - ou, pelas áreas artísticas - que elegeu como seu campo-casa-território. A serem por ele ocupados e reocupados. Cultivados.

167

Entre acontecimento e pensamento