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Presença

Retomo o comentário, já aqui anteriormente registrado, de Rosa Macedo, a Doda, que acompanhava nossas aulas como estagiária, de que lhe chamara a atenção o envolvimento das crianças desde o princípio do trabalho naquele dia, por meio de uma proposta simples como o trabalho com os banquinhos. O que fez com que essa proposta aparentemente simples se tornasse interessante e desencadeasse um processo de trabalho tão instigante para todos os participantes?

Realmente esse envolvimento podia ser percebido na atitude de cada criança, tanto quando faziam suas interferências, como também quando observavam os colegas em ação. Podia-se perceber também que uma atmosfera diferenciada logo se instaurara em sala de aula: uma atmosfera de tempo e espaço distendidos, em que os nossos alunos puderam imergir em um estado de experimentação atenta, ao mesmo tempo em que relaxada. E na qual cada pequena interferência ou gesto foram vividos como descobertas. Como se pela primeira vez.

Inúmeras são as questões referentes ao envolvimento das crianças e à pertinência das atividades. E muitos caminhos e respostas podem elas suscitar. De qualquer modo, penso que não são todos determináveis e controláveis, por sua própria natureza, os componentes que fazem com que uma proposta se potencialize em experiência. E não se pode ter a ilusão de extrair de um episódio bem sucedido elementos e coordenadas suficientes para reproduzi-lo, já que lidamos com múltiplas variáveis não controláveis. Mas, embora não possamos controlar a disposição e o humor

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dos personagens, nem tampouco as incógnitas da questão, podemos cultivar as condições para que se dêem os encontros e os acontecimentos.24

É a iniciação artística um processo de trabalho e construção, sendo as conquistas desse percurso incorporadas tanto pelo grupo como por cada indivíduo. E há aspectos aos quais nós, professores, podemos e devemos muito especialmente atentar, no sentido de preparar, de facilitar as condições para a instauração de uma atmosfera dessa natureza.

Acredito que tudo comece pela qualidade da presença do professor. Estar o mais disponível possível me parece ser a primeira orientação. A partir daí, no desenrolar da aula, em uma espécie de estado de observação e escuta - estado esse que de certo modo se assemelha ao do artista no ato de criação - por olhos e ouvidos bem abertos pode ele perceber e qualificar os detalhes que podem dar lugar às diferenças e voo às singularidades. E, embora todos os integrantes do grupo exerçam forte e decisiva influência na demarcação e sustentação de um território propício à experiência, é o professor o mestre dos encontros. E é pela qualidade de sua presença que ele pode exercer com propriedade esse papel, configurando e colocando em ação esse personagem.

Parece-me que tal qualidade de presença não pode ser exercida por um professor que se coloque como um observador distanciado da experiência. Deve ele observá-la e vivê-la, pois a ele se destinam também o encontro e o acontecimento, através dos quais se renova e se reinventa, em transformação constante, em devir: devir-professor, professor-artista em devir, vive ele o acontecimento como artista ao mesmo tempo em que como professor, junto com os alunos – de maneira con-junta – mas investido em seu personagem, do qual não pode declinar; pois é a configuração desse personagem que permite ao aluno viver plenamente o seu - embora esses papéis não sejam imutáveis, e a dinâmica da nossa relação com os alunos possa nos fazer surpresas quanto à sua plasticidade.

Pensando em um professor a conduzir uma proposta em uma aula, esta não é uma postura a ser assumida a partir de uma decisão de caráter pedagógico ou artístico,

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embora provoque muitos desdobramentos em ambos os campos. Ela é decorrência do seu envolvimento com a proposta em curso: tocado pelos seus signos e sentidos, pelas possibilidades que nela vislumbra como experiência estética, artística, como experiência da sua área e linguagem. Também é decorrência do seu envolvimento com cada uma das crianças e com o grupo: pela alegria de viver uma experiência dessa natureza com eles, naquele tempo e lugar; e pela sua percepção do quanto essa vivência poderá agregar ao percurso, em como potencializará o processo dessas crianças e desse grupo.

Uma proposta não existe independentemente da maneira de se introduzi-la e conduzi-la. Focalizando a aula aqui narrada, quando o meu colega Cacá inicia o aquecimento, propondo que cada criança faça sua interferência com os banquinhos, ele o faz de maneira compenetrada e muito séria: como se aquilo fosse a coisa mais importante do mundo naquele momento. Ele não age dessa maneira levado pela intenção de convencer as crianças, ou de revestir uma proposta simples de uma falsa importância. Ele o faz de verdade, por conhecer e sentir na pele a potência do jogo, tocado pelas suas virtualidades. Delimita um espaço, o material, e com a mesma seriedade declara que cada um fará sua interferência do jeito que quiser.

Essa garantia de liberdade é um convite a que todos participem como protagonistas. É também a expressão do compromisso de que nós, a dupla de professores, acolheremos e qualificaremos tanto as pequenas como as grandes interferências. Acredito que é esse rigor aliado à liberdade, ao respeito pelo modo de ser de cada um, que permite que as crianças participem nesse estado de atenção relaxada, ao mesmo tempo em que percebem que nesse jogo não vale fazer qualquer coisa, de qualquer jeito, sem se comprometerem.

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