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Penso que as cenas das crianças nessa “Uma aula” não teriam a mesma qualidade de expressão e de interação entre os parceiros, se nós, professores, interferíssemos na organização dos grupos. São também parcerias e que também não se tecem em um só dia.

Haverá situações em que o professor considere necessário agir de outra maneira, e assim deverá fazê-lo. Mas em geral me parece que as crianças distinguem e transitam bem entre as situações em que podem eleger suas afinidades, os momentos em que devem interagir com qualquer um dos colegas – quando numa atividade em que isso faz parte do jogo - e os tempos coletivos. Proporcionar a eles a vivência dessas diferentes instâncias de interação e colaboração pode ser uma direção interessante para o professor; dinâmicas que proporcionem que o grupo todo acabe por se conectar, sem que seja preciso forçar parcerias.

Voltando à cena de “Uma aula”, tomo Raíssa e Gabryela como exemplo. Muitas vezes se escolheram e trabalharam juntas; e se alguma vez me preocupei em que Gabryela, tão exuberante, pudesse se impor à Raíssa, ter observado tanto a armação da cena quanto a criação das duas me assegurou de que se tratava mesmo de uma boa e profícua parceria para ambas. Na preparação, se dá uma verdadeira negociação, em que Raíssa banca sua decisão de tocar a cítara, e somente a cítara. Na apresentação, brilha a bailarina – mesmo porque será sempre uma tarefa quase inalcançável para um músico competir em brilhantismo com tal personagem...

Mas a música não está a serviço, se atendo a apenas descrever ou acompanhar os movimentos dessa bailarina; ela acontece, ao mesmo tempo em que conectada com a dança, como um acontecimento em si. Uma sustenta e influencia a outra: música e dança, Raíssa e Gabryela; mas cada uma em seu movimento próprio. Por não ser uma linguagem um carro chefe a liderar as outras, por não haver preponderância nem

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submissão de uma sobre outra, pôde nessa pequena criação resplandecer a sua integração.

E nossa musicista consegue, pelo modo como toca a cítara, ou harpinha – e que mais me lembra é mesmo um saltério26 - transmutar esse arremedo de instrumento e sua desafinação em instrumento e afinação exóticos, provocando uma aura de estranheza e mistério. Também se trata da parceria de Raíssa com esse instrumento – que em outras aulas voltariam a se procurar, até o final do ano. Aqui também não há motivo para nenhuma preocupação: não é um caso de obsessão ou teimosia; pois em outubro, quando pesquisamos o interesse e intenção dos alunos no estudo de um instrumento específico, Raíssa muito decidida e animada escolheu a flauta doce.

A uma outra parceria gostaria de me referir: a de Sara e Ana Luiza, que atuam na cena “As irmãs”. Essas duas meninas, que foram colegas por dois anos, também muitas vezes se procuraram, quase sempre para fazer um teatro. Por personagens dramáticos e histórias mirabolantes, viviam intensamente o jogo dramático, em que muitas coisas aconteciam; um jogo sem início nem fim, sempre a se fazer e a se transformar. Quando os colegas posteriormente comentavam que não tinham entendido nada, elas prontamente se punham a explicar e a contar histórias extremamente minuciosas, narrativas pela quais os companheiros logo se desinteressavam - o que também parecia não as incomodar em absoluto.

Nesse texto, me dispus a dar visibilidade à história da cena “As irmãs”. Vi e revi a filmagem, consultei minhas anotações, e até mesmo indaguei das autoras. Talvez não fosse necessário; talvez o jogo se cumpra pela própria vivência, que é a sua vocação, e não caiba tentar decifrá-lo. Mas o fato é que, movida pela curiosidade, tentada a penetrar nesse pequeno universo, acabei por me surpreender e a me interessar realmente pela história e tive prazer em desvendá-la. Não poderia imaginar em quantos

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Saltério, psaltério, citar ou dulcimer - instrumento de cordas dedilhadas muito antigo e frequentemente utilizado na música tradicional da Ásia e Europa. Na Europa foi também empregado no contexto da música erudita e de salão durante o século XVIII. Trazido pelos portugueses, seu uso foi muito difundido no Brasil durante o período colonial. (Fonte: Uma tablatura para saltério do séc. XIX; BUDASZ, Rogério. Revista Eletrônica de Musicologia, Departamento de Artes da UFPr. Vol. 1.1/Setembro de 1996).

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afetos e em que poderosos jogos de forças estavam envolvidas as minhas alunas! Certamente esse exercício enriqueceu a minha compreensão desse jogo dramático e do quanto estava distante de um corre-corre descompromissado, de uma confusão sem nenhum sentido.

E me apontou também como em um mesmo grupo as crianças se diferenciam e buscam viver o que lhes é necessário. Sara e Ana Luiza estavam interessadas em uma experiência de natureza autorreferente, que não tende a se lançar e se projetar para fora; e que produz um jogo que para ser compreendido pelo outro necessita ser decifrado. Entretanto, elas participavam com grande interesse e disponibilidade de todas as demais atividades - de caráter e natureza bem diversos - contribuindo muito com o grupo e interagindo com todos os colegas de maneira muito criativa, estabelecendo outras parcerias, afeitas a outros encaminhamentos. Mas, havendo uma oportunidade, escapava essa dupla para o fluxo do jogo.

E fiquei então a me perguntar: o que seria da necessidade de tal vivência, se não lhes fosse permitida? Não pretendo dramatizar essa questão, ou colocar a nossa sala de aula como espaço único de experimentação; provavelmente encontrariam outros modos de experimentá-la, como uma criança que não frequente uma escola de arte.

Mas, do que será feita a vida de uma sala de aula em uma escola de arte, senão das forças que atravessam a vida e o imaginário de seus alunos? Processos não lineares, não controláveis, em permanente transformação – devires: deles se faz a iniciação artística.

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