• Nenhum resultado encontrado

Ou, ainda da propriedade da indagação Ou, entre o palco e a sala de aula

- O que é a música? Eu ainda não sei o que é a música. Ainda me pergunto; mas não é sempre que ela soa. Pergunta apaixonadamente Lydia Hortélio6 em sua fala no Fladem Brasil e USP 2009. 7

Sobrevoando a Hungria e Serrinha, na Bahia, traz a música modal e tonal, relacionando-as ao meio rural e ao urbano; conta das arquiteturas melódicas indígena, africana e ibérica, tão importantes na constituição da cultura musical brasileira. Dá os exemplos cantando. O conhecimento da linguagem e a pesquisa de seus modos e possibilidades fazem com que a pergunta que ficou no ar ressoe cheia de harmônicos. Fala da música na língua e da língua na música, e conta e canta, canta... músicas da música: a música soa, e momentaneamente acaba por engolir a pergunta.

Entre muitas histórias escolhi contar esse episódio por se conectar e colorir pontos do pensamento que ensaio desenhar; e por se referir ao campo da educação musical – campo do entrecruzamento da música com a educação. Ou, do encontro entre elas.

Como em um jogo de espelhos, deu-se um encadeamento de encontros. Entre Lydia e a plateia, entre ela e a pergunta que pronunciou - O que é a música ? - entre a plateia e a pergunta, e, pelo canto de Lydia e pelo nosso próprio cantar na ciranda à qual mais tarde fomos convidados, entre todos nós e a música.

Enquanto envolvidos na experiência, não necessitamos nos perguntar o que é a música. Nós a vivenciamos em seu acontecimento. Porém em outro momento, podemos nos sentir tentados a revisitar a experiência e procurar entender o que nos envolveu e

6

Lydia Hortélio, etnóloga e musicóloga, uma das principais referências da pesquisa da música e da cultura da infância no Brasil.

7

Encontro do dia 26/09/2009, Fladem Brasil e USP 2009, realizado pelo Fladem Brasil – Experimental. Fladem – Foro Latino Americano de Educacion Musical.

46

impressionou; e entre nossas observações talvez arrisquemos algumas hipóteses sobre a natureza ou mesmo a essência da música. Entre experiências, observações e hipóteses a se entrelaçar, construímos referências, ideias, histórias dos nossos encontros com ela.

Música que em tão variáveis faces pode se apresentar - tantas, inumeráveis músicas têm a música.

Quantas vezes, estando na plateia, vivendo a música em seu acontecimento, ao vivo e a cores, correu em minha mente o pensamento: isso sim, é que é música! Quando presenciei o flautista Barthold Kuijken tocando La Notte, concerto de Vivaldi; ou o Grupo Kodo de tambores japoneses; ou a orquestra Spock Frevo do Recife... entre inúmeras experiências.

Também nunca me esqueci de um pequeno episódio: em 1975, em uma das edições de que participei do Curso Internacional de Música de Curitiba, entrei por curiosidade em uma sala onde acontecia um master class com o oboísta alemão Ingo Goritzki. Ele falava sobre aspectos técnicos do instrumento, e deu então um exemplo: tocou uma nota muito longa, que começando pianíssimo foi crescendo, crescendo... até um fortíssimo; e muito paulatinamente decresceu até enfim terminar. Disse ele então: “Para mim, isto é a música”. Fiquei muito impressionada, ao perceber que pela maestria e pela intensidade e energia com que fora tocada, conteve por instantes uma nota toda a música.

Nós, músicos, podemos não saber o que é a música, mas estamos sempre à espreita de que ela aconteça; e nos alegramos em nosso encontro com ela. Que ela soe, talvez seja mais importante do que saber o que ela é. Ou talvez uma coisa leve à outra.

Parece-me que se procurarmos pela música como Ideia, como essência, jamais a encontraremos. Ela se configura no ato de se fazer e de se escutar música; acontece no tempo histórico e em um contexto sócio-cultural; e certamente tanto a criação quanto a nossa apreciação e envolvimento são fortemente influenciados pelo repertório que cada um vivenciou e por modelos e paradigmas que incorporamos.

47

Entretanto, a plasticidade da nossa escuta pode ser exercitada; e a ambiguidade que habita por natureza o campo da experiência artística, permite que nos desloquemos do conhecido e possamos desfrutar também do estranho e do desconhecido.

Mas, embora possa ser preparado e desejado, o encontro com a música não pode ser marcado. Quantas vezes, como musicista, vivi a expectativa – sempre e sempre - dos minutos que antecedem a entrada no palco para uma apresentação: o coração mais acelerado, alguma solidão e desamparo... Poderia usar as mesmas palavras com que descrevi, na apresentação deste trabalho, as minhas inquietações como professora: todas as vezes sem saber - verdadeiramente - o que vai acontecer, de várias maneiras a experiência me localiza, embora entre suas camadas haja não só movimento como também instabilidade... Afinal, como poderíamos nos manter inabaláveis perante o desconhecido?

Ao entrar em cena sempre algum estranhamento. Adentramos em um espaço de possibilidades, de virtuais encontros – trata-se, mais uma vez, do espaço entre. Em campo: os músicos, seus instrumentos ou vozes, o público, o ambiente (a acústica ou a amplificação, a iluminação, até a temperatura), e a música em si, o texto musical.

Todos envolvidos em um jogo de forças de mútua afetação, pelo qual vai se constituindo uma atmosfera; que a todos contagia, embora as percepções e sensações se processem diferentemente para cada pessoa, já que interpretadas subjetivamente.

Dependendo da qualidade dos encontros produzidos neste jogo de relações, o fluxo da experiência, pelo qual a música soa e ressoa, pode vir como um presente, (bendito seja!) logo de início; ou ganhar corpo pouco a pouco... Ou, de repente, de supetão se apresentar! Porém, em dias árduos, inóspitos, pode não conceder a honra e o prazer insubstituível e inenarrável de sua visita.

Tendo percebido e vivido tantas situações no palco como na plateia, percebo que esse caráter voluntarioso da experiência ultrapassa tanto as especificidades de estilo como a questão da precisão do texto musical - a ultrapassa, e não a menospreza. Ela, a experiência, não escolhe necessariamente uma apresentação de música de tradição oral, ou de uma sinfonia de Beethoven, ou um show de rock and roll ; e não poupa nem mesmo artistas com bastante experiência de palco, que podem eventualmente realizar

48

uma performance menos inspirada, apesar de todas as notas estarem absolutamente certas. E, que em outra ocasião, podem nos arrepiar, nos transportar, nos tirar do chão... Parece então que instrumentistas fundem-se a seus instrumentos, formando um só corpo; ou cantores tornam-se voz. Pois experenciamos os encontros em nossos corpos - fusão e vazamento de corpos e entre corpos, de músicos e de ouvintes.

Será tão diferente na sala de aula? Será que esses territórios – o palco e a sala de aula - não se assemelham, não se tocam pelas bordas, quando atravessados pela música como experiência?

Em ambos não podemos planejar os encontros, controlar a experiência ou agendar os acontecimentos musicais. Mas como músicos, e principalmente se formos professores, podemos nos disponibilizar a sermos seus potenciais agenciadores. E podemos nos desenvolver nesse sentido.

Pois o professor é o mestre dos encontros – mais do que aquele que ensina. 8 Talvez, no campo da arte na educação, especialmente em se tratando das artes cênicas e da música, possamos dizer uma espécie de mestre de cerimônias. Que apresenta os personagens e introduz ou levanta os temas, incita a conversa - mais do que enuncia seu próprio discurso - intermedia os conflitos e cuida para que a atmosfera seja segura, acolhedora e estimulante.

É necessário que proporcionemos aos nossos alunos a oportunidade dos encontros e que os acompanhemos no movimento da experiência que pode vir a acontecer. A criança pode se encantar, por exemplo, pela descoberta de uma sonoridade interessante na exploração de um material - acolher essa descoberta, colocá-la como se sob um foco, uma lente, ampliando-a, incentivar sua manipulação, variações e articulações é o trabalho de um professor. E de um professor-músico.

Assim, afirmo que somos artistas na sala de aula - se escutamos e atuamos como músicos. Impressionamos nossos alunos através dos nossos talentos e habilidades, que podem se constituir em referências sonoras importantes e estimulantes. Ouvem-se comentários sobre como o professor toca bem, ou tem uma voz bonita, ou toca tantos

8

Expressão usada pelo Prof. Hélio Rebello; Mesa-Redonda Inconsciente, Aprendizado, Educação:

49

instrumentos. Mas eles nos observam o tempo todo, e mesmo quando não estamos tocando ou cantando, a qualidade e a intensidade da nossa relação com a linguagem os impressiona mais fortemente ainda. A nossa influência é contínua; e assim, de maneira implícita, estamos sempre nos apresentando a eles.

Do mapa dos meus próprios encontros, um episódio como que insiste em se apresentar: quando muito jovem e sem nenhuma experiência, pedi conselhos a um professor e amigo, José Carlos de Azevedo Leme, o Zoca, pois me sentia um tanto perdida nas aulas que dava para a minha primeira aluna de flauta. Ele então me disse algo assim: “Não importa o que ela toque, pode ser a coisa mais simples do mundo, mas tem que ser musical, em algum momento a música tem que acontecer!”.

Desde então, ando às voltas com essa qualidade, esse adjetivo: musical – que entendo na acepção daquilo que é permeado por música, receptivo a ela. Procuro estar atenta e facilitar, promover as possibilidades de se darem seus acontecimentos, mesmo que pequenos e efêmeros possam parecer. Deflagrados pelo encontro. Embalados na experiência. Atravessados por certo sentido musical – ideia que experimento ao me aproximar da ideia de sentido, através de Bergson, e da filosofia:

O filósofo não pega em idéias preexistentes para as fundir numa síntese superior ou para as combinar com uma idéia nova. O mesmo seria acreditar que, para falar, vamos procurar palavras que de seguida cosemos umas às outras por meio de um pensamento. A verdade é que acima da palavra e acima da frase há algo de muito mais simples do que uma frase e mesmo do que uma palavra: o sentido, que é menos uma coisa pensada do que um movimento do pensamento, menos um movimento do que uma direção. (BERGSON apud FADIGAS, 2003: 73)

Nesta pesquisa busco indícios desse sentido musical nas pequenas proposições, experimentações e gestos que se deram na experiência a ser narrada, em um contexto de parceria e cumplicidade com outras linguagens artísticas.

Por ora, termino esse trecho com a brevíssima e contundente citação do compositor e teórico Juan Carlos Paz (PAZ, 1976:51):

51