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A finalização da canção não soa a mim como conclusão. E sim como uma grande fermata, após a qual uma respiração conduz ao próximo movimento. Materializar um espaço de liberdade e criação me parece ser uma direção a seguir. Como se necessidade fosse, e antes que a ressonância se desfaça, sugiro a Cacá e Doda continuarmos, deixando o recreio para mais tarde – com o que eles concordam prontamente.

Então proponho às crianças “inventar e construir um lugar, qualquer lugar – como uma casa, uma floresta, uma loja - onde vocês estão, onde acontece alguma coisa e que tem um som”. Digo que vamos usar outras coisas além dos banquinhos e trabalhar em grupos.

Cacá organiza as crianças, enquanto eu e Doda saímos a coletar os materiais. Voltamos com panos, cavaletes, fantasias, adereços e instrumentos variados, e encontramos os agrupamentos já formados e seus integrantes em conversações internas. Cacá comenta que os alunos haviam se organizado muito rapidamente, formando duplas e um quarteto, sem que ele achasse necessário interferir. Fato que reforça a percepção que tenho tido de que é realmente interessante que as crianças se organizem de maneira flexível, tanto no número quanto em relação à escolha dos participantes - quando a dinâmica do grupo e da própria atividade assim o permitem - sendo importante acolher inclusive o desejo de alguém que prefira eventualmente trabalhar sozinho...

Nossa interferência também se mostra desnecessária na distribuição dos materiais, momento de possível sofreguidão e eventuais disputas: pela posse do maior instrumento, ou da fantasia mais brilhante e colorida... Nada disso acontece. Deixamos todas as coisas no centro da sala, à disposição de todos, e o que transparece é que eles pegam o que precisam, de acordo com as ideias de cada grupo.

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A atmosfera é de grande diligência (não, não é uma confusão, muito menos uma bagunça!): há grande movimentação, mas parece que todos sabem o que estão fazendo. Cada grupo ou dupla escolhe um lugar na sala, a partir do qual territórios vão sendo rapidamente formados e ocupados por objetos e habitantes. Estão todos envolvidos em combinações e armações, experimentando as roupas e os instrumentos, e os panos tanto são vestidos ou usados na cabeça, como compõem volumes ou são estendidos com cuidado e capricho. Sem dúvida, está totalmente conflagrada A Grande Brincadeira.

Sigo o impulso de sair em busca de uma testemunha. Convido a professora Berenice de Almeida, coordenadora da área de música na época, dizendo a ela que algo interessante está em curso em nossa classe. Mesmo me sentindo muito bem acompanhada e vivendo o encontro com todos os parceiros em campo, vem este impulso de estender e compartilhar a experiência com alguém de fora... mas não tão de fora: alguém que, como a professora Berenice, pudesse ser um interlocutor.

Talvez um interlocutor possa nos referenciar: será o acontecimento em iminente instauração potente a ponto de afetar testemunhas? Seja como for, o que me parece certo é que esse impulso me aponta como nós professores necessitamos de interlocutores.

Ao voltarmos para a sala, observo que agora o quarteto e as duplas de crianças estão às voltas com os detalhes, ajustes e negociações. Gabryela faz sugestões a Raíssa, tentando convencê-la a tocar um determinado instrumento, e depois trocar para um outro... Mas Raíssa, abraçando e tamborilando a cítara com os dedos, delicada mas firmemente se coloca: -“Eu gostei mais desse”. Gabryela aceita, e comenta em seguida comigo que está em dúvida de que panos usar em sua performance. Sugiro que ela varie, que pode usar um, deixá-lo e escolher um outro, e que isso pode fazer parte da cena... Ela continua então em sua minuciosa pesquisa-arrumação de panos e véus nos cavaletes e ensaia para a câmera seu personagem em uma janela. Cacá vem e a coroa com um tule cor de rosa.

Thor, descobrindo o melhor jeito de tocar a queixada, se surpreende: – “Um jacaré! Jacaré! Jacaré...”, exclama ele por três vezes; mas nem Cacá, nem Guilherme,

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aos quais ele se dirige, o escutam. Cacá está envolvido com outros alunos e Guilherme ocupado em dispor as clavas sobre o pano azul; a terceira exclamação, Thor já a faz em decrescendo, mais conformado do que decepcionado, guardando-a para si mesmo. (Sendo que eu mesma só escutei Thor ao assistir à filmagem...).

Nem parece que Thor é um convidado, primo de Guilherme. Quando chegaram à sala para a aula, já não havia nenhum adulto com eles, o que tornava infrutífero, naquele momento, qualquer questionamento sobre sua permanência conosco. No aquecimento Thor foi um espectador, mas a partir das janelas abertas pela Canção de Januária foi fazendo aproximações, interações... E aí está ele, explorador curioso, acompanhando o movimento do grupo e fazendo suas próprias descobertas.

Isso tudo parece ser para ele muito natural, pois comenta comigo que já conhecia quase todo mundo, incluindo eu e Cacá: no final do ano anterior, ele assistira a uma apresentação da nossa classe da qual vários alunos do grupo atual já participavam; participara do lanche coletivo e depois brincara bastante.

Sara e Ana Luiza exploram o metalofone e armam os panos, combinando um teatro. Na cabana já construída e nela abrigados, Andreza, Gabriel, Daniel e Igor, em plena pesquisa, trocam impressões sobre os instrumentos: – “Isso fica bom”, diz Gabriel a Andreza, em tom de aprovação.

Igor, com um par de clavas nas mãos cumprimenta a câmera que o observa: - “Olaá!” E dirigindo-se a aos amigos, anuncia uma descoberta:

- A nossa janela!

Andreza e Gabriel olham pela janela por alguns instantes; Gabriel ri, Andreza sorri, e voltam a atenção para o tocar dos instrumentos.

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