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Há uma idade em que se ensina o que se sabe; mas vem em seguida outra, em que se ensina o que não se sabe: isso se chama pesquisar. Roland Barthes

Intensificar a minha reflexão sobre as relações entre a educação musical e a educação estética era um desejo antigo. O interesse por essas relações tem acompanhado o meu percurso como professora e também como musicista; alimentado por vários aspectos do meu percurso de formação e de atuação profissional, mas sem dúvida muito fortemente pelas parcerias com profissionais de outras linguagens das quais tenho usufruído por tantos anos na EMIA. No meu próprio trabalho sempre procurei colocar em jogo estas relações; orientada por muitas ordens de saberes e experiências, que se organizavam e se colocavam em ação movidos por um conjunto de forças e intuições. De maneira nem sempre previsível, operando numa zona de certo mistério.

Fui ampliando essa percepção, apreendendo a ideia desse mistério como zona de indeterminação, ou indiscernibilidade – características do plano da arte e da experiência estética - e que deve, portanto, permear o campo da sua iniciação. Não se tratava, assim, de normatizar, colocar a intuição e os caminhos pelos quais operava sob ordens estritas. Tampouco se tratava de mistificá-la - mas de compreender melhor esses caminhos, e iluminá-los; o que não desfaria o mistério, mas, pelo contrário, talvez o potencializasse.

Mas não seria necessário somente que a resposta acolhesse a questão, seria necessário também que determinasse uma hora, uma ocasião, circunstâncias, paisagens e personagens, condições e incógnitas da questão. Seria preciso formulá-la "entre amigos", como uma confidência ou uma confiança, ou então face ao inimigo como um desafio, e ao mesmo tempo atingir esta hora, entre o cão e o lobo, em que se desconfia mesmo do amigo. É a hora em que se diz: "era isso, mas eu não sei se eu disse bem, nem se fui assaz convincente". E se percebe que importa pouco ter dito bem ou ter sido convincente, já que de qualquer maneira é nossa questão agora. (DELEUZE e GUATTARI, 1997: 10)

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Seria necessário um movimento radical. De compromisso concreto. Parecia-me que a academia e a pós-graduação poderiam proporcionar um desafio fundamental.

Ensaiei essa possibilidade frequentando como ouvinte a disciplina Psicologia, Arte e Educação9 do programa de pós-graduação da Unicamp. Muito envolvida pelas aulas, através das leituras e discussões fui percebendo que poderia construir uma possibilidade de pensamento referente ao meu campo de atuação, ao particularizar, corporificar as questões, dando um fundo às figuras, corpo e voz aos personagens.

Encarnou-se então a necessidade de registrar, materializar a experiência – e comecei a fotografar as minhas aulas. Posso dizer que aí, de certa forma, a pesquisa começou. Quando fui experimentando o mergulho no registro e na experiência do meu próprio trabalho. Um mergulhado no outro.

Já oficialmente como aluna do programa acima citado, continuei a fotografar regularmente e a observar os registros de várias facetas do meu trabalho: os grupos de musicalização, as aulas de instrumento, as apresentações com os alunos, as aulas de conjunto. Revisitei registros (fotográficos, de áudio e de vídeo) de outros trabalhos, de outros tempos e lugares. Procurava o foco! O recorte pelo qual investigaria as relações entre a educação musical e a estética.

Enquanto procurava, foi uma revelação perceber que quando compartilhava essas imagens-experiência, escolhendo sequências que propunham gestos de pensamento, estabelecia-se um fluxo de comunicação que se dava além das opiniões. Que as ultrapassava, pela multiplicidade de conexões e atualizações que permitiam aos interlocutores, como me haviam permitido em sua elaboração.

A instauração dessa qualidade de interlocução mais viva e interessante, pude observar em várias instâncias, desde seminários na pós-graduação, até reuniões com os pais na escola.

Revisitando essa descoberta, me parece que o registro das imagens e sua articulação permitiram que a comunicação pudesse ser potencializada, e que experimentasse uma outra dimensão – a narrativa.

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Disciplina Psicologia, Arte e Educação – Faculdade de Educação da Unicamp, Programa de pós- graduação. Docente Profa. Dra. Ana Angélica Albano - ano de 2007.

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Captar as imagens e sobre elas debruçar-me, vê-las e revê-las inúmeras vezes, percebendo a cada visita diferentes nuances, fez com que em mim se multiplicasse em possibilidades de leitura e se estendesse no tempo a experiência vivida. E efetuar escolhas, elaborar sequências e articulações e observar que ao compartilhá-las outras leituras, sentidos e sensações eram provocados, despertou-me o sentido de narrar; o que me abriu o apetite todo – pelas imagens e suas possíveis composições, mas também pelas palavras dessas histórias a serem contadas.

Uma experiência quase cotidiana nos impõe a exigência dessa distância e desse ângulo de observação. É a experiência de que a arte de narrar está em vias de extinção. São cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar devidamente. Quando se pede num grupo que alguém narre alguma coisa, o embaraço se generaliza. É como se estivéssemos privados de uma faculdade que nos parecia segura e inalienável: a faculdade de intercambiar experiências. (BENJAMIN, 1994:197)

Também o trabalho com as crianças foi afetado. As perguntas provocaram a pesquisa. E quanto mais provocada ela era, mais afrontadamente provocava o trabalho, que tomou outra pulsação, outra intensidade. Com a observação se afiando. E por essa via, do registro e da observação turbinada, gradativamente foi se fazendo, quase se impondo um recorte em torno do trabalho citado anteriormente, em dupla com o professor Carlos Sgreccia. Este trabalho capturava o meu olhar e pensamento e em torno dele eu fazia relações e transposições para outras situações e modos de atuação.

Finalmente! O foco! O recorte! Sendo estes estabelecidos, muitos dados e especificidades entraram em jogo; chegará o momento de apresentar seu cenário e seus personagens. Por ora me demoro ainda um pouco mais no mapa das minhas indagações e do meu pensamento.

Foi através da disciplina Teoria das Artes, 10 que se deu o meu encontro com a filosofia de Gilles Deleuze, a qual já me despertava interesse há algum tempo - encontro, e não necessariamente a compreensão, pois... foi um susto! Deparar-me com pensamentos-clarões, pensamentos-cometas, quase música! Que provocaram um

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Disciplina Teoria das Artes – Instituto de Artes da Unicamp. Docente Prof. Dr. Renato Ferracini - primeiro semestre de 2008.

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turbilhonamento em meu pensamento, até mesmo no meu modo de me relacionar com ele e também de acessá-lo: o pensamento como algo que se constrói e se conquista, mas que também pode nos fazer voar. Pois... “O pensamento parece uma coisa à toa, mas como é que a gente voa, quando começa a pensar...”, já dizia Lupicinio Rodrigues nos versos da canção Felicidade, que tantas vezes toquei; e cujos versos venho cantarolando como um mote.11

Esse interesse me conduziu à disciplina Filosofia da Educação12, através da qual pude me ambientar e me situar melhor em relação à filosofia deleuziana - e me senti convidada a nela procurar uma interlocutora.

Deleuze afirma que a filosofia não se destina apenas aos filósofos; ao escrever sobre sua experiência no Centro Experimental de Vincennes13, ele nos diz:

Em Vincennes, a situação é diferente. Um professor, digamos, de filosofia, fala de um público que inclui, com diferentes níveis de conhecimento, matemáticos, músicos (de formação clássica ou da pop music), psicólogos, historiadores , etc. Ora, em vez de “colocar entre parênteses” essas outras disciplinas para chegar mais facilmente àquela que pretendemos lhes ensinar, os ouvintes, ao contrário, esperam da Filosofia , por exemplo, alguma coisa que lhes servirá pessoalmente ou que tenha alguma intersecção com suas atividades. (...) É, pois, por conta própria que os ouvintes vêm buscar alguma coisa num curso. O ensino da filosofia orienta-se, assim, diretamente, pela questão de saber em quê a filosofia pode servir a matemáticos, ou a músicos, etc. – mesmo, e sobretudo, quando ela não fala de música ou de matemática(...) (DELEUZE apud GALLO, 2008: 15).

E como nos aponta Gallo, sua importância para cada um de nós se dá na medida em que nos instiga ou não:

Se não cabe ao conceito ser verdadeiro, ele também não está para ser compreendido. Não nos importa se compreendemos ou não um determinado conceito; importa que ele seja ou não operativo para nosso pensamento; importa que nos faça pensar, em lugar de paralisar o pensamento. Importa que tenhamos

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Versos que me foram relembrados pela fala do Prof. Dr. Luis Orlandi na Conferência “Deleuze; caos e pensamento.”, I Seminário Conexões: Deleuze e Imagem e Pensamento e... Faculdade de Educação da Unicamp, 14/ 05/2009.

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Disciplina Filosofia da Educação - Faculdade de Educação da Unicamp. Docente Prof. Dr. Sílvio Gallo – primeiro semestre de 2009.

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afinidade com um certo conceito, afinidade que se produz pelo fato de ele agenciar em nós mesmos certas possibilidades. (GALLO, 2008: 48)

O filósofo português José Gil se refere aos “espaços paradoxais de Escher ou Penrose”, possibilidades de espaço criados pelo corpo do bailarino ao tornar-se um corpo interior-exterior; diversas vezes na disciplina Teoria das Artes o professor Renato Ferracini recorreu à imagem das mãos que se desenham, como dizia, em Espaço de Escher, ao relacionar ideias e conceitos do pensamento deleuziano.

Essa litografia de autoria de Maurits Cornelis Escher (1898-1972), intitulada Drawing Hands (1948), apesar de bastante difundida e multiplicada, é um trabalho gráfico que conserva em si a força e a vitalidade próprios de uma obra de arte e que conseguimos acessar mesmo numa reprodução; e por ela, por essa imagem, iluminou- se a minha questão: como uma mão que desenha a outra, como campos que se desenham e se comunicam em fluxo permanente, assim devem se relacionar a educação musical e a educação estética!

Mas o que provocaria esse fluxo? E ao mesmo tempo o sustentaria como um fundo, um plano?

Entre as observações e comentários cotidianos que como professora costumo ouvir e trocar com colegas, apontando os momentos em que a aula pegou, engatou, deu liga; em que os alunos entraram, envolveram-se; em que certo aluno surpreendeu; e que são também aqueles em que vislumbramos olhos brilhantes, surpresos, curiosos... e as leituras, reflexões e interlocuções que têm ampliado meus saberes, foi se compondo uma resposta pela caracterização, ampliação, da ideia de experiência.

Vamos agora ao que nos ensina a própria palavra experiência. A palavra experiência vem do latim experiri, provar (experimentar). A experiência é em primeiro lugar um encontro ou uma relação com algo que se experimenta, que se prova. (LARROSA, 2002: 25)

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A partir do sentido apontado por Larrosa, vou configurando a experiência como o fundo que permite e sustenta o fluxo que coloca a educação musical e a educação estética em Espaço de Escher.

Experiência provocada pelo encontro e que nele se produz. Entre as pessoas (os professores e os alunos), entre as pessoas e os materiais (um som, uma canção, como também o papel, a tinta, o corpo, o gesto, a palavra...), entre as pessoas, os materiais e o ambiente (a sala, a escola, a atmosfera e o clima daquele dia específico)... Quando há encontro, se produzem faíscas que podem deflagrar a experiência.

O professor, como mestre dos encontros, deve facilitá-los e colocar-se em estado de atenção. Ao fazer e conduzir suas proposições de conteúdo e de atividades, dispor-se a observar -­‐  onde  se  dá  a  faísca?  -­‐  à espreita das possibilidades pelas quais pode se dar a experiência; a qual muitas vezes acontece no inesperado, no desvio.

Nós, professores, podemos desejá-la, cortejá-la, preparar o ambiente para recebê-la; mas, não importa há quanto tempo lidemos com ela, nunca deixará de nos surpreender. Indomável e imprevisível exige que nos submetamos a ela, pois como diz Larrosa: “A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca” (LARROSA, 2002: 21).

Aqui trato de uma possibilidade de educação musical. Que me passa, que me toca; que se propõe a conversar, a se contrapor ou a se compor com outras. E que se refere ao campo da iniciação artística, no qual a experiência e o encontro são o sopro de ânimo e vida. Pois como aponta Kohan através das palavras de Foucault, “Uma experiência é algo do qual a própria pessoa sai transformada” (KOHAN, 2003: 13).

E a iniciação artística, como a concebo, é território da educação pela transformação; e da apreensão do sentido e da possibilidade de transformação. Como sempre possível.

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Pequena digressão, ou, do jogo de palavras: pistas da