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A Grande Brincadeira

Há muito tempo o professor Carlos Sgreccia e eu ensaiávamos a possibilidade de configurar em sala de aula uma parceria que já tantas vezes se dera no palco, em variadas formas de exercício artístico. Imaginávamos uma oficina de teatro e música para alunos mais velhos ou pais, um projeto que talvez tivesse como conclusão uma apresentação. Modos de atuação que se apresentavam como mais próximos da vivência e das interlocuções artísticas que vimos compartilhando em nosso longo percurso como colegas.

Por muito tempo a EMIA dispôs de um espaço destinado às apresentações de seus professores-artistas. Referenciar esta experiência nesse trabalho me parece ter relevância por ela ter sido de grande influência no meu percurso como professora e como artista; por ter me proporcionado muitas descobertas, incrementando principalmente a minha vivência artística entre linguagens; e por ter potencializado as minhas relações com os colegas para além do âmbito da sala de aula e das reuniões de professores.

Carlos Sgreccia - o Cacá - e eu, tivemos muitas e variadas oportunidades de compartilhar o palco. Participamos, com outros colegas, da criação de vários espetáculos mesclando música, poesia e teatro, alguns muito sérios, outros apontando para a alegria e aventura da infância.

Sem dúvida me parece que muito do que viríamos a desenvolver como parceiros em sala de aula já havíamos vivenciado em nossas parcerias artísticas: a experiência da criação entre linguagens, entre o rigor e a liberdade, entre a brincadeira e a seriedade. A necessidade concretizou a oportunidade para a parceria em sala de aula, se apresentando de uma maneira diferente da que idealizáramos: uma classe da faixa etária de sete anos, para a qual eu necessitava uma dupla para o ano letivo de 2008. Essa parceria prosseguiu no ano de 2009, com uma classe de oito anos - o que permitiu

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que muitas crianças continuassem conosco: esse é o grupo que vai ser especialmente focalizado no presente trabalho. E prosseguiu no ano de 2010, com um novo grupo.

Para que o leitor possa melhor transitar pela descrição e análise das experiências, me parece necessário localizá-lo brevemente em relação a como se constitui a estrutura da EMIA15. Essa estrutura é organizada em torno do que é denominado pela escola como curso regular16: trata-se do curso de iniciação artística, que é obrigatório a todas as crianças matriculadas e abrange a faixa etária dos cinco aos doze anos; este curso acontece em aulas semanais, sendo que a duração das aulas varia conforme a faixa etária dos alunos. Para as classes de sete e oito anos, como a aqui focalizada, ela é de três horas17, sendo os alunos orientados por uma dupla de professores com formação em linguagens diferentes18; as combinações de linguagem que constituem a dupla podem ser quaisquer, e não são informadas aos pais no ato da matrícula.

Sempre vivenciei o advento de uma nova parceria, assim como o de um novo grupo de alunos, como um acontecimento impregnado de expectativas. Assim também percebia esse que se aproximava, trazendo tais sensações potencializadas pelo momento em que me encontrava: iniciando minha participação oficial no programa de pós – graduação da Unicamp e minha investidura em pesquisadora, embora ainda não houvesse estabelecido o foco final da pesquisa, já considerava esse trabalho um dos objetos de estudo importantes para a minha investigação. Senti então algum receio de que tais expectativas se transformassem em preocupações diante de tão séria e importante empreitada.

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Para mais informações, ver o site da EMIA: www.emia.com.br.

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Além do curso regular a escola oferece a seus alunos como cursos optativos: instrumento musical, dança, teatro e artes plásticas. Atividades abertas também à comunidade são as oficinas, a orquestra e os corais.

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Para crianças de cinco e seis anos a duração da aula é de duas horas; quatro horas para nove e dez anos e três horas para onze e doze anos. Atualmente, na faixa etária de cinco a dez anos as classes são específicas para cada uma das idades; somente os alunos de onze e doze anos mesclam-se nos mesmos grupos.

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As duplas de professores das classes de cinco e seis anos se constituem do mesmo modo; aos nove e dez anos, as classes são orientadas por quatro professores, o chamado quarteto, cada um respondendo por uma linguagem específica; aos onze e doze anos, há apenas um professor, especialista na linguagem de opção do aluno.

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Ao reler um trecho do nosso planejamento, revisito a sensação de como os primeiros movimentos das nossas ideias e desejos puderam esvaziar as ansiedades daquele momento. Para que o frescor e a possibilidade de ressignificações que um novo ciclo propicia, pudessem ser fortalecidos e ampliados e não constrangidos pelo meu comprometimento com a pesquisa.

E para que eu pudesse perceber no parceiro um interlocutor; um par que se propusesse a desenhar comigo e com as crianças uma coreografia de abertura, cumplicidade e confiança:

   

Planejamento 1ºsem. 2008 Turma 7 anos – 2ªf tarde

Profs. Ana Cristina Rossetto e Carlos Sgreccia

A Grande Brincadeira

A nossa intenção é proporcionar às crianças a vivência do processo de Iniciação Artística através da Grande Brincadeira. Que permite que cada criança possa embrenhar-se em explorações, testar hipóteses e desenvolver possibilidades, individualmente e estabelecendo parcerias. Que abre caminho e cria a vontade pelo conhecimento e pela técnica.

(...) para que aconteça o que nós dois, professores artistas da EMIA há tanto tempo, e pela primeira vez trabalhando juntos em sala de aula, acreditamos seja o motor de todo o possível aprendizado em arte: que o aluno seja tocado pela aventura da experiência artística.

Músicateatromovimentolinhascores,

nosso desejo é puxar esse cordão...

A Grande Brincadeira não era uma proposta temática, mas a expressão de uma visão, inspiração, como o título de um espetáculo; e que nos fornecia uma plataforma de partida comum: o desejo de viver o lúdico em grande estilo, em uma brincadeira livre e prazerosa, ao mesmo tempo em que rigorosa, comprometida e por isso posta em letras maiúsculas. A nossa meta mais ampla: possibilitar construções de conhecimento

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no campo dos saberes sensíveis e das nossas linguagens, orientados pela leitura contínua e cuidadosa do grupo e de seu envolvimento.

Para mim, a necessidade de colocar todas as fichas em um modo de jogo no qual o pensamento artístico-pedagógico se coloca a serviço das características e potencialidades dos alunos e do grupo. E para a dupla, entre nós e em nosso campo - constituído também por um repertório e vocabulário próprios que vão se construindo - essa ideia foi tomando corpo, se tornando mais complexa, como que criando uma espécie de vocação conceitual, por não se esgotar em uma explicação ou se tratar de uma definição.

Uma composição de ideias que nos impulsiona, como que colocando forças em movimento. Uma maneira de passear entre bordas, contornos; entre a brincadeira e a Grande Brincadeira, entre as linguagens artísticas abordadas, entre o individual e o coletivo, o planejado e o que emerge, o dirigido e o não dirigido...

Tem ela atravessado outros campos e modos de atuação de cada um de nós e influído em outros desafios e encontros, na própria escola e fora dela. Na EMIA, os professores de grupo têm várias turmas sob sua responsabilidade. No meu caso, por ser também professora de instrumento – flauta doce – e ter a minha carga horária dividida entre essas aulas, que são individuais ou em duplas ou trios de alunos, e as de musicalização, costumo ter apenas duas turmas; mas que me permitem observar como o modo de atuação de uma dupla pode influenciar a outra, e como se pode contrabandear procedimentos, informações e descobertas de uma para outra - os quais, em seu novo contexto, provocarão inevitavelmente diferentes encontros e experiências. Também as ideias e reflexões trocadas entre um par de professores afetarão as outras parcerias. Durante o ano de 2010, enquanto preparava e escrevia esse trabalho, estava envolvida em dois novos processos: uma nova turma com o professor Cacá, e, da mesma faixa etária, uma outra com o professor de artes plásticas Marcos Venceslau. Embora esses outros percursos não sejam analisados nesse trabalho, os acontecimentos que os atravessaram provocaram e influenciaram as minhas reflexões.

Conviver na dupla com professores de outras áreas artísticas, vivendo um processo de mútua afetação e contágio, pode proporcionar ao professor ampliar e

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refinar a sua percepção das outras linguagens, torná-lo mais atento a seus signos; pode também propiciar que a sua própria atuação transite entre as áreas. Não pretendo afirmar que será este um super professor de arte que atuará de forma equivalente em todas as linguagens. Atuará ele em seu próprio campo, mas sensível e disponível às fissuras entre suas fronteiras, às oportunidades de encontro, sem temer que se afrouxem os limites de seus domínios.

Também podem provocar esse contágio e convivência, que no decorrer do tempo o professor incorpore repertórios, estratégias e procedimentos próprios de outras áreas, sem que tenha a pretensão de conduzi-los com a mesma profundidade que um professor especialista o faria; mas que podem ser muito benvindos às circunstâncias e necessidades vividas por um grupo.

A atuação da dupla de professores voltará a ser focalizada nesta dissertação, mas me parece oportuno adiantar uma ideia que há tempos me acompanha: que ao se configurar em toda a sua propriedade, compõe-se ela própria, a dupla, em um personagem. Como procurarei mais tarde analisar, a configuração desse personagem pode vir a se dar ou não; não será dada de antemão, mas sim conquistada através de uma parceria que se constrói e reconstrói a todo momento e só se sustenta pela confiança e pela generosidade. Não se trata apenas de somar individualidades, ou de agregá-las: trata-se de compô-las. Criamos um outro e continuamos, cada um, a ser nós mesmos.

Enfim, lá vamos nós! Atrás dessas pistas! Pegadas, rastros, inscrições. Rever, revisitar, de novo e mais uma vez ainda. Registros do olhar, perceber, sentir. Captura.

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