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Como artistas no palco, nós professores não podemos parar para pensar. Necessitamos fazer escolhas e tomar decisões de modo muito rápido, conjugando nossos saberes à percepção que temos da situação e das forças em movimento.

Mas revisitando as percepções e sensações vividas podemos refletir, recolhendo e ampliando as observações. E nos reportando tanto aos dias em que tudo deu certo, e a aula se deu no fluxo da experiência, como também a aqueles em que nada pareceu se encaixar, nos perguntamos: por que ou como isso aconteceu?

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Não são essas respostas simples. A essa aula aqui narrada voltei inúmeras vezes, por meio da troca de ideias com os parceiros de experiência, da minha memória e dos registros realizados. Talvez fosse suficiente ter vivido a experiência. Talvez eu logo pudesse ter levantado com relativa facilidade algumas hipóteses satisfatórias – porém, não só comprometida como mesmo contaminada pela personagem pesquisadora, não restou à professora-artista outra alternativa, além de debruçar-se sobre os registros e envolver-se nos esforços de composição das ideias. Estimulada por toda a vivência proporcionada pelo processo da pós-graduação, principalmente pelas interlocuções - com os autores, professores e colegas.

Os registros fotográficos e de vídeo, entrelaçados com as anotações do caderno de campo, possibilitaram-me compor sequências e mesmo proposições de narrativas visuais e audiovisuais. Ao compartilhá-las, recria-se no presente essa aula e amplia-se o âmbito da interlocução.

Surpreendo-me sempre com os sentidos que são produzidos pelo interlocutor - pois mesmo quando até bastante afinados com as minhas expectativas, já os percebo transformados pelo olhar do outro: “Parto da ideia que tanto imagens como palavras não encerram verdades únicas. É nossa mirada, circunstancialmente constituída de contextualidade, intenções e experiências diversas, que lhes atribui sentidos e as atualiza. E então, parece já não haver mais passado nas imagens fotográficas.” (GIANELLA, 2009: 21).

Esse processo tem me alimentado e proporcionado novas descobertas. O que não significa, porém, que tenha um caráter necessariamente apaziguador. Pelo contrário: por meio dele essa aula, que já me afetara em seu próprio acontecimento, a cada vez revisitada tanto pelo material editado como em novas prospecções do material bruto se reatualiza e volta a me afetar - como que, de certa forma, acontecendo de novo.

“Como é possível que eu ainda não tivesse percebido isso?”, é o que muitas vezes me pergunto – ao capturar um olhar, um gesto ou uma frase que venham a me provocar a perspectiva de uma nova análise. Sofrem assim as reflexões que tenho

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empreendido um deslocamento e novos ângulos e perspectivas de pensamento são vislumbrados, impedindo que se resolvam tais reflexões em conclusões definitivas.

Tudo isso me anima, pelas riquezas anunciadas, ao mesmo tempo em que me desassossega. Entre as miríades de detalhes percebidos e de esboços de ideias em movimento, como tecer um pensamento?

Entre o acontecimento e o pensamento não há continuidade – mas suspensão, pois vivencia-se um espaço entre: entre tempos, lugares, dimensões... Chamou-me a atenção o fato de que logo ao término dessa aula, nós, os participantes, não fizéssemos comentários muito articulados, como se resistíssemos à concatenação de ideias de maneira lógica. Mais uma vez, me reporto à minha experiência como artista e aproximo esse acontecimento em sala de aula daquele vivido no palco: quando após uma apresentação significativa, não sabe bem o artista o que fazer... Pois não é hora de analisar a performance ou de planejar caminhos futuros. Há o ritual dos cumprimentos; a ressonância do episódio; a celebração entre os companheiros; os flashes dos momentos vividos que a própria memória internamente dispara. Isso tudo talvez baste para que ele possa atravessar esse intervalo e retomar o ritmo e densidade do tempo cotidiano. Até que ideias envolvendo novos projetos venham a assaltá-lo.

Quando o acontecimento atravessa a minha prática como professora, as coisas se dão do mesmo modo, e também são as sensações que primeiro me ocupam. Deleite e estranhamento se misturam, expressados por gestos e palavras pronunciadas com ênfase, entre os colegas e também com os pais, no caso das apresentações das crianças. Também reparo como os participantes ou espectadores adultos gostam ou necessitam compartilhar e também assegurar suas percepções: “Você viu isto?”, “Você percebeu aquilo?...”

Mas pouco a pouco, a curiosidade e a nostalgia criam o desejo de revisitar o vivido através dos registros. Ansiedades satisfeitas, o olhar que se acalma e se alarga pode perceber detalhes de detalhes, cenas que se desdobram em cenas, sentidos insuspeitados: “Compreendi e aceitei que podiam fazer a diferença para encontrar o que talvez eu nem pensasse buscar, pois como observou Arbus, fotógrafa americana:

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‘... uma foto é um segredo sobre um segredo. Quanto mais diz, menos você sabe’’’ (SONTAG apud GIANNELLA, 2009: 23).28

Esse estado de observação, proporcionado pelo mergulho nas fotografias e filmagens, não conduz o observador de volta à mesma experiência. Pois o acontecimento se diferencia, outras faces apresenta, em camadas se desfolha: desdobrado a cada vez, provoca suspensão como se primordial fosse. Em deslocamento, vivencia o observador um espaço de indeterminação, onde germinam as virtualidades de pensamento. Espaço que passa a habitar e que o habita. Atravessado por uma força que ao mesmo tempo em que o suga para dentro do que observa o lança em direção ao desconhecido, vive a experiência do Fora.

Embora aqui envolvida com a escrita de uma dissertação, e não com uma criação artística, como por exemplo, uma obra literária, talvez não seja um gesto indevido aproximar essas experiências: pois apesar da natureza distinta, me parece que tanto alguns prazeres como algumas dores as atravessam.

O Fora constitui, assim, uma espécie de experiência original, um começo de tudo. Colocar-se fora de si e fora do mundo é antes de mais inaugurar uma experiência em que as coisas não são ainda. Tudo se passa na literatura como se nada tivesse acontecido, como se tudo estivesse por acontecer. “O livro por vir”, diz o título de um dos mais célebres livros de Blanchot. A palavra literária carrega em si um porvir, um “ainda não”, marca de sua impossibilidade.

A tarefa do escritor é a de buscar o momento que precede as palavras, a origem da obra, o vazio inicial de onde tudo começa. (...). (LEVY, 2003: 32)

“Nessa região de origem, reina não o silêncio, mas o rumor: o rumor anterior às palavras, à obra, ao livro” (Ibid., 33). E, se bem se escuta, em tal rumor pouco a pouco se percebem murmúrios, prenúncios de ideias, que em ensejos de vingarem, tentam criar corpo e voz. Na escrita deste trabalho tenho experimentado tempos assim, em que esses prenúncios de ideias procuram chamar minha atenção; e ao se fortalecerem, ora me animam e anunciam consonâncias, ora se embaralham, perdendo seus contornos - momentos em que, evocando uma passagem de Deleuze e Guattari, me sinto tentada a

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pedir, ou mesmo a humildemente implorar, um mínimo de ordem ao meu próprio pensar...

Pedimos somente um pouco de ordem para nos proteger do caos. Nada é mais doloroso, mais angustiante do que um pensamento que escapa a si mesmo, idéias que fogem, que desaparecem apenas esboçadas, já corroídas pelo esquecimento ou precipitadas em outras, que também não dominamos.(...) Recebemos chicotadas que latem como artérias. Perdemos sem cessar nossas idéias. É por isso que queremos tanto agarrarmo-nos a opiniões prontas. (DELEUZE e GUATTARI, 1997: 259).

Entre o refúgio e a acomodação das opiniões prontas, e o risco das ideias não adquirirem suficiente consistência e serem tragadas pelo caos, empreende quem se apossa da escrita o esforço de composição de um pensamento.

Talvez eu não devesse me deter a narrar as aventuras do meu pensar. Entretanto, o processo que envolve uma composição desta natureza não é estranho à matéria desta dissertação; e mais uma vez ensaio uma aproximação, relacionando-o ao processo de criação artística. Ambos se constituem em experiência, no sentido apontado por Larrosa, abordado no capítulo “Entre a academia e a sala de aula” desta dissertação, e como tal obedecem a seu caráter voluntarioso e avesso ao controle. Ambos são permeados pela experiência do Fora, “uma espécie de experiência original, um começo de tudo” (LEVY, 2003: 32).

E de novo incendiada por Hélio Oiticica, percebo que tanto quanto não existe ideia separada do objeto, não existe pensamento apartado da experiência. Sendo ele próprio - o pensamento - experiência, processo ao qual de certa forma me submeto; e não um modo de operação que pode ser aplicado a qualquer objeto de análise.

Experiência pela qual esta aula se desdobra em outros encontros, experiências, pequenos-grandes acontecimentos além-fronteiras.

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Procurei enfatizar nesse trabalho a concepção do campo da iniciação artística como de um território especialmente fértil e propício à educação tocada pelo sentido da transformação; não me furto a ressaltar nesse final, o quanto isso vale não só para o aluno, como também para o professor: o quanto viver e pensar uma pedagogia do encontro em seu contexto podem propiciar a nós, professores, estarmos sempre em transformação, cotidianamente à beira de uma descoberta, havendo-nos com o desconhecido.

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Quando envolvidos na escrita, nos encontramos entre a solidão e o encontro com as palavras.

Volto a Borges, em honra ao tempo que passamos entre elas. E as partituras, os instrumentos, os pensamentos, os livros...

Quando eu tinha trinta anos, pensava que não havia vivido. Nessa época eu não supunha ainda que era impossível não viver. Aos trinta anos cometi o erro de pensar que a leitura e a meditação pertenciam menos à vida que outras ocupações do homem. Agora, creio que a meditação, o estudo, o ensino, os sonhos são tão reais e tão irreais como a vida desses homens que têm uma vida ativa. Tudo é real.

Tudo está vivo.

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