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Compreendendo o Processo Civilizatório nas Artes Marciais/Judô

No documento Dojô: espaço de educação (páginas 93-98)

3 EDUCAÇÃO E JUDÔ: análise e Compreensões Acerca desta

3.6 Compreendendo o Processo Civilizatório nas Artes Marciais/Judô

Neste tópico de nossa pesquisa, discutiremos, brevemente, os produtos da relação entre o Judô de Jigoro Kano com a teoria Elisiana do processo civilizatório, proposta pelo sociólogo alemão Nobert Elias (1897 – 1990), constituindo-se uma relevante base teórica para a presente pesquisa. Elias (1994b, p. 193) afirma que o processo civilizatório é caracterizado por uma “mudança na conduta e sentimentos humanos rumo a uma direção muito específica”. Queremos compreender, de acordo

com o processo civilizatório, que diferenças existem no que diz respeito à cultura ocidental e oriental na formação e evolução dos indivíduos em uma sociedade?

Elias é visto como “um dos maiores sociólogos do século XX, se não o maior” (DUNNING, 2014, p. 23), e há um reconhecimento geral de que a teoria dos processos civilizatórios é a principal contribuição do teórico à sociologia. Considera- se, inclusive, esta teoria como uma teoria central de todas as suas obras (DUNNING, 2014).

Existem críticas ligadas à teoria do processo civilizatório oriundas do entendimento de que a mesma é muito eurocêntrica, ou seja, que esteja muito ligada a uma análise voltada ao ocidente, mais precisamente ao desenvolvimento da sociedade europeia. Como estamos buscando compreender a importância desta teoriana evolução das artes marciais e dos esportes de combate, e ainda, especificadamente, ao judô, faz-se necessário que tenhamos criticidade em compreender as possibilidades e limitações referentes à análise da mesma no contexto específico oriental (asiático).

Contudo, contrapondo-se a crítica sobre as limitações quanto à utilização da teoria do processo civilizatório, em relação à sua aplicabilidade para analogias referentes aos esportes ou práticas marciais oriundas da cultura oriental, nos fortalecemos, embasando-se através de dois importantes estudos internacionais, que visaram investigar/analisar justamente o processo civilizatório do judô no âmbito do continente europeu e de sua respectiva cultura. De acordo com os pesquisadores Goodger, B.; Goodger, J. (1977) e Régner, (2010) o Judô é compreendido na Europa enquanto uma arte marcial que através de um processo de “reculturação” sofreu forte institucionalização cultural ocasionando em mudanças que permearam novas ressignificações que transitaram da marcialidade (gênese do judô) para a esportivização, ou seja, tradição e modernidade duelaram frente aos novos horizontes desbravados pela internacionalização do judô de Jigoro Kano. Contudo, ainda de acordo com os autores acima, o próprio Kano visava civilizar sua prática visto que, da transformação do antigo jujútsu dos samurais, Jigoro codificou a sua nova prática, visando excluir técnicas mortais e/ou demasiadamente violentas, e assim, entendemos que o mesmo já visava facilitar sua prática enquanto popularização já que agora, o novo sistema podia ser praticado da criança ao idoso,

pois não havia mais chances de muitas lesões ou até mortes. Régnier (2010, p. 93)60 analisa, que ao tomar a biografia de Jigoro Kano do ponto de vista do processo civilizatório, “seria mais apropriado colocar o judô como uma prática puramente heterodoxa para o Japão da época, mas perfeitamente ortodoxa quanto ao modo de prática ocidental”, isso denota quanto a contextualização cultural é fator determinante para a assimilação do judô de acordo com a sociedade em que o mesmo se insere ou desenvolve-se.

Contextualizando, conceitualmente, o processo civilizatório, identificamos que, segundo Souza (2014, p. 104) pode ser definido como a “manipulação consciente de fontes culturais por atores sociais, derivando, igualmente, do aperfeiçoamento da consciência que os indivíduos possuem em relação ao meio que o cerca”. Assim, o que pretende-se enfatizar é a necessidade de entendimento evolutivo e consciente por parte da sociedade, na qual se espera boa convivência e respeito recíproco mediante normas condizentes de civilidade. Sabe-se que o processo civilizatório transpassa gerações e, por isso, depende de uma análise processual que leve em consideração um longo prazo, por onde os valores e costumes sociais sofrem mutações evolutivas em seu percurso.

Tratando-se do judô e, por consequente, de uma prática oriental japonesa, Cavalcante (2014) afirma que o judô segue este processo civilizatório, tendo em vista que, desde a sua concepção, existe a preocupação em eliminar todas as ações lesivas aos seus praticantes, garantindo a sua integridade física e possibilitando a sua prática desde a idade escolar até a condição do alto rendimento. Contudo, pretendemos ampliar esta análise, dada a importância da mesma para a compreensão exitosa de como podemos inferir sobre esta influência teórica no desenvolvimento do judô enquanto esporte de combate.

Tem-se pleno entendimento na literatura do esporte enquanto substituto aceito para as emoções reprimidas, e por onde a civilização das condutas e das emoções podem ser vistas em práticas esportivas (QUITANEIRO, 2010). Elias (1982 apud QUINTANEIRO, 2010, p. 93), afirma que o “esporte é sempre uma luta entre os seres humanos”, concepção que fortalece o nosso discurso sobre a relação pertinente às lutas civilizadas (em geral pertinentes a contemporaneidade), por onde

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Tradução do trecho em francês: “[...] il serait plus juste de placer le judo comme une pratique purement hétérodoxe au Japon de l’époque, mais parfaitement orthodoxe quant au mode de pratique occidental” (RÈGNIER, 2010, p. 93). 

compreendemos que lutar é interagir com o outro, sabendo respeitar o próximo, independente do resultado, e privilegiando sempre a integridade física do oponente acima de qualquer coisa. Entretanto, sabemos que as artes marciais, dentre elas o judô, originam-se da cultura oriental, bastante distinta da ocidental, dito isso, nos perguntamos qual será a relevância desta abordagem teórica, especificadamente no tocante a estas práticas orientais?

Sobre as artes marciais orientais, Marta (2010, p. 29) ressalta que, ao longo do século XX, “delas foram gradualmente retirados ou sublimados os gestos considerados violentos em demasia”, o que o autor batiza como “controle da violência potencial”. Entretanto, o mesmo autor ressalta que estas práticas sofreram estes ajustes em tempos diferentes e que, ainda, algumas delas se utilizam atualmente de crítica a este controle da violência buscando construir uma ferramenta de marketing para que se justifique a sua difusão. A exemplo disso cita que alguns tipos de jiu-jitsu são voltados à concepção de retorno da violência a partir de práticas como o vale-tudo, razão pela qual entendemos que, de certa forma, tal postura caracteriza-se como um retrocesso civilizador de “des-esportivização”.

Ainda de acordo com o autor supracitado:

Existem artes marciais criadas no ocidente que foram sendo lentamente convertidas em jogos que, em alguns casos, posteriormente, foram convertidos em esportes como resultado de um processo de amenização ou suspensão daqueles elementos considerados violentos ou bárbaros para as novas sensibilidades ‘civilizadas’ que foram se desenvolvendo na Europa [...] (MARTA, 2010, p. 47).

Alguns exemplos de modalidades de lutas que podem ser relacionadas de acordo com a citação acima seria o boxe e a luta greco-romana.

Sobre o judô, propriamente dito, sabe-se que foi propósito de seu criador, Jigoro Kano, a busca pela esportivização da prática visando a massificação da mesma e o reconhecimento olímpico, conforme pudemos ver na seção três de nosso estudo. Entretanto, a teoria do processo civilizatório compreende que o caminho desta pratica para a esportivização é conquistada mediante ajustes, como em suas regras, por exemplo, visando torná-las práticas em níveis mais aceitáveis socialmente. No entanto, os esportes de combate e artes marciais possuem a particularidade do confronto direto e do “tocar no outro”. Pensando em um dos pilares da teoria, referente ao controle das emoções, é sabido que práticas deste

cunho possuem maiores necessidades para que não se extrapolem suas emoções e não incorram em desvios para a violência.

Por outro lado, a “regratização” de práticas das lutas através de sua esportivização projeta-as para culturas civilizadas e bem aceitas como, por exemplo, o entendimento do fair play (jogo limpo), ou respeito recíproco para além das regras em si, e que é tão bem aceito na concepção de esporte moderno. Em contrapartida aos pontos positivos entendidos na utilização da teoria civilizatória no universo marcial, é pertinente considerar que a esportivização excessiva de algumas práticas de artes marciais orientais levam a perdas e pontos negativos.

Sobre este quesito, de acordo com Marta (2010), a transformação em uma arte marcial esportivizada poderá ressignificá-la a tal ponto, que as mesmas percam suas importantes essências filosóficas orientais, pois na cultura ocidental as mesmas poderão, inclusive, serem rotuladas e comercializadas como, por exemplo, transvestidas em ambientes de academias de ginásticas61, porém, não mais com os propósitos originais que a caracterizavam enquanto arte marcial oriental, tornando- se apenas gestos soltos (chutes e socos) e desvirtuados de contexto.

No que corresponde ao Judô, recorremos a uma citação de Marta (2010, p. 54) que afirma ter sido a “primeira arte marcial oriental a expressar um sentido pedagógico que, ao mesmo tempo em que buscava a difusão e manutenção de valores morais tradicionais japoneses, buscava também fundir esses valores a aspectos pedagógicos ocidentais”. Entendemos que esta base filosófica por parte do judô permite-o que, mesmo sofrendo influencias pela ocidentalização, se for bem guiada de acordo com os princípios que o constituem, a prática estará segura e impermeável a possíveis desvios de condutas por parte de seus praticantes. Por ser uma prática de forte cunho educacional, o judô visa formar cidadãos, inclusive no que tange a civilidade e boa convivência social. Este autocontrole é essencial para a preservação e desenvolvimento do processo civilizatório. De acordo com Souza (2014, p. 116), o autocontrole “é visto por Elias como uma espécie de etapa final do processo civilizador, e etapa que o legitima perante os indivíduos que dele fazem parte.

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Modalidades como o BodyCombat®, tipo de ginástica que utiliza-se de gestos estereotipados das artes marciais orientais e que são propostas nestes ambiente com o intuito de perder peso e melhorar a estética corporal.

Como visto no tópico 3.4 desta seção, um dos pilares filosóficos do Judô é o Jita Kyoei, que, em sua essência, significa prosperidade e benefícios mútuos, ou seja, podemos compreender, por analogia, que o indivíduo só cresce e desenvolve- se a partir do crescimento coletivo. O judô cultua esta máxima em todos os dojôs pelo mundo afora. É possível percebermos aproximações conceituais entre o pensamento de Kano com o de Elias. De acordo com Quintaneiro (2010, p. 55), Elias entende a sociedade através de uma perspectiva sociológica figuracional, por onde, segundo a autora, Elias assinala que, “[...] em nossa era, a tendência é de que ‘mais e mais grupos e, com eles, mais e mais indivíduos’ dependam ‘uns dos outros para sua segurança e a satisfação de suas necessidades [...]” e que esta interdependência social acaba favorecendo com que as pessoas apenas consigam “sustentar sua vida e sua existência social em conjunto com muitas outras” (QUINTANEIRO, 2010, p. 55). Destarte, fica claro que Kano, assim como Elias, compreendiam e preconizavam que a convivência social era ditada pelo respeito ao próximo, guiado por normas de civilidade e controle de emoções.

No documento Dojô: espaço de educação (páginas 93-98)