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Ríos 39 En varias ocasiones presidente de gobierno, se convirtió en el paradigma del católico defensor de la laicidad del Estado, simbolizada a través de su defensa

2. O Concílio

O Concílio Ecuménico Vaticano II representou, de facto, um empreendimento extremamente ousado e arriscado, pois foi a primeira vez que, num mundo «uni- versal», a Igreja se viu confrontada com a sua «universalidade» − no fundo, com a sua própria «catolicidade». A convergência da catolicidade e da contemporanei- dade teve um impacto que dificilmente poderá ser sobrevalorizado, até pelo que representou enquanto mudança de atitude da Igreja Católica perante o mundo. A Igreja questionava-se no seio de um planeta dominado por duas potências onde o catolicismo não era a confissão maioritária ou nem sequer era uma confissão tolerada. E, a par desse mundo, um outro mundo emergia, no conjunto dos países que entretanto haviam acedido à independência. Também aí, a presença da Igreja não se encontrava sedimentada. A «abertura ao mundo» que o Concílio proclama é, pois, a abertura a um mundo que, em larga medida, não poderia qualificar-se como «católico» e que até certo ponto era hostil ao catolicismo. O ecumenismo é altamente tributário deste novo fenómeno geopolítico, como também o será, aliás, a Ostpolitik vaticana.

1 Cf. Joseph A. Komonchak – Vatican II as an «Event». In John W. O’Malley, Joseph A. Komonchak, Stephen Schloesser e Neil J. Ormerod – Vatican II. Did Anything Happen? Dir. David Schultenover. Nova Iorque: The Continuum International Publishing Group, 2007, p. 24ss.

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Mesmo no mundo tradicionalmente católico se assistia àquilo a que, num recente e notável livro sobre a crise religiosa dos anos 60, Hugh MacLeod chama «o declínio da Cristandade».2 Normalmente, analisamos esse declínio através de estatísticas e grelhas sociológicas sobre a diminuição das vocações ou das práticas cultuais. Mas há algo de mais profundo. Há o emergir de uma nova auto-identi- dade católica do ponto de vista individual, a do católico «não-praticante». E isto remete-nos para uma dimensão ainda mais profunda: a crença deixou de ser um elemento adquirido e recebido inquestionadamente através das instâncias eclesiais de mediação para ter de passar pelo crivo de uma auto-validação individual. Crê-se no que se quer. E é isso que permite, ao cabo e ao resto, a emergência de fenómenos individualistas de um «crer sem pertencer» (believing without belonging) ou de um «crer pessoal» («a minha fé»). Esta abordagem da crença muitas vezes passava, e ainda passa, por aquilo que alguns chamam um bricolage religioso com outras mundividências filosóficas, ideológicas ou políticas e até com outras espirituali- dades, muitas das quais surgiram ou renasceram na década de sessenta.3 Curio- samente, ou até paradoxalmente, esta autoconstrução individualista da crença surgia em paralelo com o apelo − feito, por exemplo, pelos arautos da Teologia Política, como Metz, Moltmann ou Sölle − a uma «desprivatização» da fé. De facto, tornava-se extremamente difícil conciliar este apelo a uma maior «publicização da fé» e o individualismo subjacente à pretensão, atrás enunciada, de uma crença autoconstruída por intermédio de um processo de validação pessoal – e, logo, necessariamente «privado» ou «íntimo».

Por outro lado, a renovação litúrgica empreendida pelo Concílio procurou instaurar padrões de flexibilização e aggiornamento que correspondem a uma tentativa integradora deste novo perfil de crença, a um dispositivo de fidelização que tem de fazer concessões ao «festivo» − o festivo e o lúdico eram uma marca da época, que encontramos desde os escritos dos Situacionistas aos textos de Molt- mann4 − e, sobretudo, que tem de implicar uma participação mais intensa do laicado, a qual, no limite, reclama uma «autogestão» dos próprios conteúdos das celebrações. Pelo facto de a prática religiosa começar a circunscrever-se à presença na missa dominical, esta adquiriu um lugar central enquanto «momento espiritual» (mas também festivo) da semana, o que obrigou a uma nova encenação litúrgica e a uma pastoral mais apelativa e envolvente. O tempo religioso comprimiu-se. Daí emergiu, por um lado, uma redescoberta da noção de «micro-comunidade» paroquial e, por outro, a uma relação mais directa e aberta entre os paroquianos e o pároco, assumindo-se este como uma figura central, carismática, até do ponto

2 Cf. Hugh MacLeod − The Religious Crisis of the 1960s. Oxford: Oxford University Press, 2007, p. 6ss. 3 Cf., numa panorâmica geral, Robert S. Ellwood − The Sixties Spiritual Awakening. American religion

moving from modern to postmodern. Chapel Hill: Rutgers University Press, 1994.

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de vista da gestão de relações interpessoais na comunidade. O contacto de muitos crentes, sobretudo dos mais esclarecidos, passou a fazer-se quase em exclusivo com os padres igualmente «esclarecidos», os únicos que aqueles consideravam ser «merecedores» da sua interlocução. Mais do que uma relação paroquiano-paró- quia, aprofundaram-se os laços paroquiano-pároco. Era o pároco que, no fundo, «fazia» ou «criava» uma paróquia (como sucedeu, por ex., com Felicidade Alves, em Belém, ou com Alberto Neto, no Rato), porventura até mais do que a própria «comunidade dos crentes», o que não deixa de se afigurar como algo paradoxal, numa altura em que no plano político e teológico se valorizava o participativismo e, no plano eclesiológico, a colegialidade.

Devido à concorrência do agnosticismo, com a Igreja Católica passou-se, até certo ponto, o que já ocorria com todas as igrejas nos Estados Unidos, onde as confissões religiosas eram, e ainda são, «socialmente agressivas», para usar as palavras de Mark Oppenheimer, no sentido em que tentam impor aos crentes uma pertença visível e uma presença regular, escrutinadas a nível local.5 A exibição de sinais externos de fidelização de um numeroso grupo de crentes, sobretudo num «mercado religioso» competitivo, é algo de fundamental para a afirmação pública − e política − de uma dada confissão. Ora, esse dispositivo de fidelização tinha de se afirmar num contexto particularmente difícil, em que a «contracultura» também entrava no interior da Igreja − e das igrejas − e em que a Igreja-instituição começava a ser encarada como uma força opressora da libertação da fé «autên- tica». Muitos, de facto, pretenderam instaurar uma «contracultura intraeclesial», no sentido da transposição de valores e padrões da contracultura emergente para o interior da própria Igreja, exigindo que esta correspondesse a essa recepção (por ex., as novas vivências da conjugalidade e da sexualidade e o desencanto perante a Humanae Vitae). Aliás, o carácter aberto e polissémico de muitas noções conci- liares − aggiornamento, «sinais dos tempos», «Povo de Deus» − permitia as mais heterogéneas densificações ou concretizações, pelo que o novo universo lexical e conceptual legitimava aquela pretensão de que a Igreja acolhesse no seu interior padrões e valores da contracultura temporal então emergente.

3. «Abertura ao mundo»

A abertura ao mundo e o reencontro com a contemporaneidade, de que as simbólicas viagens de Paulo VI são um dos sinais mais evidentes6, reflectem-se de

5 Cf. Mark Oppenheimer − Knocking on Heaven’s Door. American Religion in the Age of Counterculture. Nova Haven-Londres: Yale University Press, 2003, passim.

6 Cf. AA.VV. − I viaggi apostolici di Paolo VI. Brescia-Roma: Istituto Paolo VI-Edizioni Studium, 1985, o qual reúne trabalhos de grande importância, como os de Andrea Riccardi − Significato e finalità dei viaggi apostolici di Paolo VI, a p. 15ss; e de Bernard Sesboüé − Les voyages apostoliques de Paul VI: profil

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forma decisiva nos textos conciliares. Não por acaso, vários documentos, desde o decreto Inter Mirifica à instrução pastoral Communio et Progressio, versam sobre um tema que ganhara uma dimensão completamente nova, os meios de comu- nicação social. O mundo era recebido com «alegria» e com «esperança», como dizia a Gaudium et Spes, invertendo-se por completo a lógica condenatória da modernidade imposta um século antes por Pio IX e pelo Syllabus. Trata-se de uma mudança de paradigma que alguns não hesitam em classificar de «revolucionária».7 A Igreja, afirma Karl Rahner numa retrospectiva do Concílio8, ganhara ânimo para correr o «risco do futuro» e, como tal, não hesitava em abraçar os novos tempos, pois fora em nome desses novos tempos, e da mutação histórica neles inscrita, que o Concílio havia sido convocado.9

A Igreja mudava a sua auto-representação enquanto actor na cena internacional e a representação que possuía dos outros intervenientes nessa cena (ex.: as Nações Unidas), mudança a que não é alheia a marca do Concílio Ecuménico no que con- cerne à aceitação activa da «imanência do mundo» e à necessidade de inserção da Igreja nesse mundo imanente. Levada às últimas consequências – que o Concílio naturalmente não buscava -, esta ideia acaba por produzir uma «inversão coper- niciana na consciência religiosa», para usar as palavras de Marcel Gauchet, para quem tal movimento se situa nos alvores da década de setenta e conduz as igrejas a procurarem um objectivo, «a vida boa neste mundo», já destituído de um imediato referencial divino, em favor de uma «dimensão suplementar da autonomia: a da excelência e da suficiência dos fins terrestres do Homem».10 Estabelece-se, então, uma convergência entre «éticas profanas» e «doutrinas sagradas», retomando as palavras de Gauchet, que estará na base de uma reinterpretação do papel dos crentes na esfera pública, diluindo-se as fronteiras entre os domínios temporal e o espiritual ou, se quisermos, instaurando-se uma dinâmica de agir que atravessa as fronteiras entre o religioso, o social e o político. Poder-se-á falar, na verdade, do «religioso após a religião», em que aquele se mantém, desde logo, através de uma experiência íntima ou pessoal que dispensa qualquer mediação institucional, o que se afigura problemático no quadro de uma confissão que possui regras precisas e objectivas de adesão, de pertença ou de credo e que, do ponto de vista organi-

historique, a p. 63ss. Cf. ainda Jean Chélini – Les voyages de Paul VI. In Paul VI et la Vie Internationale. Brescia-Roma: Istituto Paolo VI-Edizione Studium, 1992.

7 Cf. Edna McDonagh – The Church in the Modern World (Gaudium et Spes). In Modern Catholicism.

Vatican II and after. Dir. Adrian Hastings. Londres-Nova Iorque: SPCK-Oxford University Press, 1991, p. 96.

8 Cf. Karl Rahner – Tolerancia, Libertad, Manipulación. Barcelona: Editorial Herder, 1978, p. 136ss. 9 Cf. Giuseppe Alberigo – Il Vaticano II nella Storia della Chiesa. Cristianesimo nella Storia. Ricerche storiche,

esegetiche, teologiche. VI (Outubro de 1985) 443. «A Igreja do Concílio quer dirigir-se ao mundo dos nossos

dias», na síntese lapidar de Bernard Häring – Vatican II et le Mystère de l’Unité. Bruxelas: Éditions De Lumen Vitae, 1963, p. 76.

10 Cf. Marcel Gauchet – La Religion Dans la Démocratie. Parcours de la laïcité. Paris: Éditions Gallimard, 1998, p. 109.

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zativo, se estrutura hierarquicamente, assentando numa essencial distinção entre crentes e não-crentes e entre clérigos e leigos. É um facto que aquele fenómeno resultava e culminava um lento processo de secularização e de laicização, que é antigo e onde intervêm múltiplos factores, mas não é menos certo que, no caso da Igreja Católica, a dinâmica instaurada pelo Concílio representou um ponto de viragem que indiscutivelmente contribuiu para aprofundar uma realidade nova, que tinha uma dimensão muito mais sociológica do que estritamente eclesiológica (facto de que os padres conciliares talvez não se tenham apercebido por completo). Porventura, será a consciência da transição para essa realidade nova que fracturou a Igreja, que fomentou expectativas utópicas quanto ao devir do pós-Concílio e que, enfim, marcou o torturado espírito de Paulo VI, líder de uma instituição bimilenar que, ao abraçar um mundo em convulsão e desordem, corria o risco de ser devorada por ele. A ideia de um «poder indirecto» da Igreja sobre a ordem temporal, sobretudo quando tal poder tinha pretensões de exercício a uma escala planetária – abrangendo, por isso, uma diversidade de culturas e Estados, muitos dos quais não professavam sequer a fé católica –, era uma tarefa extremamente árdua, praticamente inatingível. Para mais, tal projecto surgia num tempo de convulsão sociopolítica e, para agravar as coisas, num tempo em que as estruturas eclesiais ainda não tinham assimilado por inteiro o legado do Vaticano II, que ora alimentou expectativas de transformação radical do mundo que se revelariam utó- picas, ora motivou reacções inflamadamente condenatórias dos fiéis do integrismo pré-conciliar. Não por acaso, já se afirmou que, após o Vaticano II, a distinção Igreja/mundo deixou de se poder fazer à luz da dicotomia espiritual/temporal11, que sempre serviu de critério e princípio orientador da delimitação de duas esferas que, na sua essência, jamais poderiam confundir-se. A «interpenetração da Igreja com o mundo»12 pelo menos naquela altura, em que se desconhecia com precisão o que tal projecto significava ou significaria, era, sem dúvida, um empreendimento arriscado. Tão arriscado que muitos afirmam que, se a religião adquiriu muito maior capacidade de expansão à escala global, tal implicou que a mesma perdesse o peso que até aí detinha na ordenação de cada uma das sociedades em que se inseria; e, mais, que, na nova ordem global, a religião só pode desempenhar duas funções: uma, terapêutica, ajudando os indivíduos a agirem melhor na ordem social existente; outra, crítica, articulando as vozes de descontentamento e de protesto perante aquela ordem social.13 Numa simplificação assaz grosseira, poder-se-ia

11 Cf. Giuseppe Angelini e Gianni Ambrosio – Laico e Cristiano. La fede e le condizioni comuni del vivere. [S.l.]: Casa Editrice Marietti, 1987, p. 157.

12 A expressão é de Boaventura Kloppenburg – O Cristão Secularizado. O humanismo do Vaticano II. Petró- polis: Editôra Vozes, 1970, p. 207ss.

13 Trata-se de uma tese avançada por Slavoj Žižek, para quem a modernidade pode ser definida como «a ordem social em que a religião já não se encontra plenamente integrada e identificada com uma forma cultural em particular, tendo adquirido um grau de autonomia que lhe permite sobreviver em diversos

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dizer que é no Ocidente que a religião exerce predominantemente a sua função «terapêutica» e no Terceiro Mundo o seu papel «crítico». Mas, em todo o caso, o ponto que importa sublinhar é outro: a «abertura» da Igreja a um mundo que já se encontrava irreversível e irremediavelmente secularizado comportava grandes riscos, de que Paulo VI se terá por certo apercebido, pois com eles foi directa e dramaticamente confrontado em várias ocasiões.