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3 DESENHO TEÓRICO-METODOLÓGICO: CAMINHOS TRILHADOS PELA

3.1 O Conceito de Habitus

O conceito de habitus é um conceito-chave da teoria sociológica de Pierre Bourdieu,

na medida em que ele funda sua concepção de ação e de percepção do mundo. Através da formulação do conceito de habitus, Bourdieu procurou resolver a questão da mediação entre o ator social e a estrutura social (Ortiz, 1983, p. 9). De acordo com o sociólogo, um dos grandes problemas presente nas ciências humanas e, em particular, na Sociologia, diz respeito às distorções e os reducionismos associados às perspectivas subjetivista e objetivista de conhecimento do mundo. Enquanto a perspectiva subjetivista parte da experiência primeira do indivíduo, das percepções, intenções e ações dos membros da sociedade, a segunda perspectiva acaba, praticamente, a se ater ao plano das estruturas objetivas, reduzindo a ação a uma execução mecânica de determinismos estruturais reificados (NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2016, p. 21).

O problema da primeira abordagem, chamada de subjetivista, estaria no fato de ela conferir aos indivíduos uma excessiva autonomia e consciência na condução de suas ações e interações (NOGUEIRA, 2004). Tudo se passa como se os indivíduos organizassem suas práticas de maneira autônoma, livre, consciente e de forma deliberada.

Em oposição à experiência subjetiva imediata, o conhecimento objetivista percebe essa experiência como estruturada por relações objetivas que ultrapassam o plano da consciência e intencionalidade individuais. Essa perspectiva, por outro lado, acaba por reduzir as ações sociais à execução das normas e estruturas. O ator social se apresenta, assim, como mero executor da estrutura, como quem obedece a algo programado e exterior a si (NOGUEIRA, 2004).

Se, por um lado, Bourdieu reconhece a importância do conhecimento objetivista, uma vez que tal abordagem permite conceber as ações sociais de forma não aleatória e articulada às estruturas sociais, por outro, percebe-se que o objetivismo impõe dificuldade para se construir uma teoria da prática, tal qual pretende formular Bourdieu. Essa dificuldade estaria associada ao fato de que o objetivismo tenderia a perceber “a prática apenas como execução de regras estruturais dadas, sem investigar o processo concreto por meio do qual essas regras são produzidas e reproduzidas historicamente”. (NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2004, p. 23)

Dito diferentemente, o conhecimento objetivista não forneceria instrumentos conceituais adequados para se compreender a mediação entre estrutura e prática e, buscando compreender a dimensão estruturada das práticas sem cair na concepção subjetivista, espécie de filosofia do sujeito, nem tampouco no objetivismo, filosofia da ação que toma o sujeito apenas como suporte da estrutura, Bourdieu formula a noção de habitus como a ponte, a mediação entre as dimensões subjetivas e objetivas do mundo social. (NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2004, p. 24 e 25)

O argumento do sociólogo é a de que as práticas sociais não são estruturadas de fora para dentro de maneira mecânica, de acordo com as condições objetivas presentes em um determinado espaço ou situação social (NOGUEIRA, 2013), nem tampouco é um processo conduzido de maneira autônoma pelos indivíduos. Ao contrário, as práticas sociais são estruturadas, quer dizer, elas apresentam propriedades típicas da posição social de quem as

produzem, porque a subjetividade dos indivíduos e/ou grupos de indivíduos é previamente estruturada em relação ao momento da ação, e essas ações dos indivíduos são concebidas como resultado de um acúmulo histórico, sedimentado a partir das diferentes experiências sociais passadas. Ou seja, produto de socializações específicas, essa subjetividade socializada Bourdieu (1989) funciona como um guia prático que dá sentindo e forma às percepções, às apreciações, aos esquemas de pensamento e às ações dos indivíduos.

Bourdieu afirma também que a noção de habitus possui três dimensões que operam em conjunto - ethos, eidos e hexis, sendo o ethos a dimensão ética do habitus (BOURDIEU, 1983). É o que faz os agentes respeitarem princípios, normas, valores, possibilitando, assim, uma convivência harmoniosa entre os pares. Funciona como um conjunto sistemático de princípios práticos que o grupo compartilha, ética prática, não, necessariamente, consciente, e difere da ética da qual comumente se fala com seus princípios explicativos. Esse ethos é a dimensão responsável pelas atitudes frente à escola, por exemplo, pela maior ou menor valorização dos estudos, “por estas e não por aquelas atitudes e escolhas” (BOURDIEU, 2001, p. 47 e 48). Dimensão responsável por impulsionar o sujeito a agir conforme o esperado dele, mas não necessariamente declarado.

O eidos é o sistema lógico e cognitivo de classificação dos objetos do mundo social. Essa dimensão traduz-se em distinções de gosto, estilos de vida, diferentes maneiras de ser e de estar no mundo, principalmente de pensar o mundo. Traduz-se em sinais distintivos, classificadores e classificáveis. Já o habitus, tomado como hexis, indica uma postura, uma disposição incorporada, uma maneira de ser, de agir, de estar e de se posicionar no mundo, que se confunde tanto com o sujeito a ponto de ser naturalizada. O fato dos agentes estarem tão ajustados às disposições parece-lhes naturais, como uma espécie de herança genética (BOURDIEU, 1983). A hexis é exatamente essa disposição corporal do habitus; é a incorporação do social, o corpo socializado (BOURDIEU, 1989).

Embora fruto da incorporação da estrutura e da posição social de origem do indivíduo, o habitus não corresponderia, conforme enfatiza o próprio Bourdieu, a um conjunto imutável de regras de comportamento a serem seguidas indefinidamente. Pelo contrário, constituiria um “princípio gerador duravelmente armado de improvisações regradas” (ORTIZ, 1983, p.65). Logo, ao mesmo tempo em que o indivíduo incorpora os condicionamentos históricos e sociais de uma época ou sociedade e tende, assim, a responder a essa demanda social,

reproduzindo tais condicionamentos, ele também é capaz, a partir desse conjunto limitado de princípios, de estruturar um conjunto ilimitado de práticas e representações.

Conforme explicita Nogueira (2004), as estruturas externas incorporadas (disposições) pelo indivíduo ajudam a forjar seu modo de ver e de se locomover no mundo, ao mesmo tempo em que esse modo de ver e de se locomover no mundo também o ajuda a modificar a estrutura social na qual ele está inserido. Assim, apesar de duradouras, as disposições sociais incorporadas não são estáticas. De fato, elas atuam numa relação dialética de interiorização da exterioridade e de exteriorização da interioridade:

“(...) sistema de disposições duráveis e transponíveis que, integrando toda experiência passada, funciona a cada momento como uma matriz de

percepções, de apreciações e ações - e torna possível a realização de tarefas

infinitamente diferenciadas, graças às transferências analógicas de esquemas, que permitem resolver os problemas da mesma forma, e às vezes correções incessantes dos resultados obtidos, dialeticamente produzidas nesse resultado.” (BOURDIEU, 1983, p. 57-58)

Ao apontar a dimensão flexível do habitus, o autor busca romper com uma perspectiva determinista e unidimensional fortemente atribuída à sua obra, em particular, à noção de habitus. Recorrendo, muitas vezes, à noção de inconsciente, Bourdieu afirma que as ações humanas detêm um espaço de autonomia relativa que as orientam, sem que, portanto, os indivíduos se deem conta disso. De acordo com o sociólogo, essas ações possuem uma “independência relativa em relação às determinações exteriores do presente imediato”. (BOURDIEU, 1982, p. 94).

Ao conferir à noção de habitus uma dimensão ativa, esse autor afirma a necessidade que os indivíduos têm em utilizar diferentes estratégias para adaptar ou inventar meios diante às novas exigências sociais e/ou novas situações. Produtos do senso prático como sentido do jogo, as estratégias mobilizadas pelos indivíduos não são nem o resultado de uma atividade consciente, apesar de serem orientadas por um fim, nem resultado de determinismo mecânico. Inscritos no imediato e na urgência da ação, os indivíduos agem dentro de um contexto fluido e multiforme, seguindo, assim, uma lógica prática, de fácil uso e eficaz em função da leitura também rápida que são forçados a fazer de uma determinada situação (SETTON, 2002). Ao contrário do que parece, isso supõe uma invenção permanente por parte dos indivíduos,

indispensável para se adaptar às situações as mais variadas possíveis e nunca perfeitamente idênticas (BOURDIEU, 2004, p.81).

Aplicado ao estudo dos egressos, a noção de habitus sugere pensarmos as apostas profissionais e ocupacionais como resultado do conjunto de propriedades sociais e culturais incorporadas pelos estudantes, as quais, transformadas em percepções subjetivas, acabam por orientar suas ações ao longo de suas trajetórias escolares, passando pelos investimentos e apostas acadêmicas durante o curso de Pedagogia, até a entrada no mercado de trabalho.

A análise de Bourdieu ressalta, portanto, a importância de se debruçar sobre os processos de estruturação do habitus por meio do estudo das instituições de socialização dos agentes. Esse processo de estruturação das ações e percepções dos indivíduos ocorre de maneira progressiva desde nosso nascimento até a idade adulta. Se as diferentes instâncias de socialização (família, igreja, escola, grupos de pares, movimentos culturais, políticos) se tornam fundamentais no caminho de sedimentação dessa matriz socializadora, o autor enfatiza a importância da socialização primária como momento em que as estruturas sociais são retraduzidas na família e inscritas, pela vida cotidiana, nas cabeças e nos corpos das crianças.

Podemos pensar, dessa forma, a socialização como uma espécie de “somatização”, por meio da qual o corpo é tratado como uma espécie de “lembrete/fila” no qual estão inscritas as maneiras de se portar diante de diferentes situações de existência. As condições materiais de existência de cada família, as representações de mundo que as famílias possuem - elas mesmas incorporadas - assim como as primeiras experiências se inscrevem, de alguma maneira, sobre e no corpo da criança, sem passar necessariamente pelo “consciente” (SETTON, 2011).

Por exemplo, todo o aprendizado sobre a masculinidade e feminilidade é estabelecido precocemente através dos corpos: maneira de se vestir, de se portar, de andar, de falar, de olhar, de se sentar, etc. Esse aprendizado molda cada corpo (e, portanto, cada indivíduo) segundo as estruturas do meio social no qual ele cresce. É através de todo esse trabalho pedagógico, exercido desde a mais tenra idade, que os indivíduos elaboram toda uma relação com o mundo social. A expressão “fica direito!” não é apenas corporal. Ela traz o “germe” de uma relação precisa com o mundo, como, por exemplo, a importância e o cuidado com a apresentação de si. A expressão remete ao mesmo tempo a uma oposição moral, carregada de

conotações sociais, entre deixar o corpo ereto/reto e o corpo relaxado. Assim, por meio dos processos de socialização, os indivíduos não fabricam apenas o corporal, mas também as categorias de entendimento, as estruturas cognitivas, os esquemas de percepção, os princípios de divisão, isto é, tudo que constitui as lentes por meio das quais nós enxergamos o mundo social (SETTON, 2010).

É nesse sentido que Bourdieu afirma que podemos falar da incorporação de um capital imaterial, o capital cultural, isto é, a transmissão de uma herança cultural dos pais para os filhos. Conforme sublinham diferentes autores (NOGUEIRA, 2008; ALMEIDA, 2014; SETTON, 2012), a incitação cultural familiar não precisa necessariamente ser deliberada e metódica para ser eficaz. Ela age, normalmente, sem precisar ser sentida, na medida em que ela provém de uma frequentação precoce e inserida no ritmo familiar.

É sabido, conforme demonstrou inúmeras vezes Bourdieu em sua obra, que a leitura de história em voz alta para crianças as ajuda a desenvolver uma prática de leitura mais eficaz, bem como a ida frequente desde cedo a museus possibilita o acúmulo cultural que faz toda a diferença no desempenho escolar de determinados grupos sociais. Por outro lado, é importante lembrar que se a transmissão de herança cultural consciente e voluntária é primordial para compreendermos os investimentos e destinos sociais dos indivíduos, e parte dessa transmissão se faz de maneira “mais discreta e mais indireta e mesmo com a ausência de todo esforço metódico e de toda ação manifesta” ( BOURDIEU, 2001, p. 48) .

Compreender que a influência socializadora não se limita aos momentos de educação explícita é de fundamental importância para pensarmos o caso dos egressos do curso de Pedagogia, uma vez que permite conceber suas escolhas e apostas profissionais como produto dos conteúdos acumulados durante o curso, em sala de aula, mas também adquiridos em espaços outros que a sala. Nessa perspectiva, a pesquisa procurou investigar informações não apenas a respeito da formação dos egressos durante os cinco anos no curso de Pedagogia, mas também sobre suas trajetórias escolares e culturais antes de ingressar na UFPE, durante a realização do curso, bem como após o seu término.

Embora o sociólogo francês tenha se constituído na referência que nos forneceu as bases conceitual-metodológicas para compreendermos as condutas educacionais e profissionais dos egressos do curso de Pedagogia, fundamentamo-nos também num conjunto de autores que se

debruçaram mais especificamente sobre a questão da longevidade escolar nas camadas populares no Brasil, explicitada na sequência.

3.2 Os estudos sobre os estudantes das camadas populares e o conceito de habitus