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Os estudos sobre os estudantes das camadas populares e o conceito de habitus

3 DESENHO TEÓRICO-METODOLÓGICO: CAMINHOS TRILHADOS PELA

3.2 Os estudos sobre os estudantes das camadas populares e o conceito de habitus

preocupada em compreender o acesso e a permanência dos estudantes de camadas populares no ensino superior ganhou terreno no campo da sociologia internacional e nacional (BROCCO e ZAGO, 2014).

Fazendo uso recorrente do arcabouço teórico de Pierre Bourdieu, mas também dos apontamentos elaborados por Bernard Lahire (1997), que prefere utilizar a expressão patrimônio de disposições incorporado para se referir ao resultado das múltiplas experiências de socialização vividas pelos indivíduos, ao invés de habitus, esses estudos se interessam, sobretudo, em compreender as modalidades de socialização que contribuem para a longevidade escolar entre estudantes cujo volume de capital, de capital social e de capital econômico é baixo.

No caso do Brasil, tais investigações foram realizadas com o intuito de conhecer os jovens oriundos das camadas populares que, aos poucos, vêm tendo acesso à universidade (sobretudo às públicas e, em alguns casos, a seus cursos mais seletivos) e os processos através dos quais eles o fazem (PIOTTO, 2011). Chama atenção, como as trajetórias dos estudantes abordadas nesses estudos podem ser interpretadas como resultado de uma construção coletiva baseada na participação das famílias e em uma rede de apoio que, variando em dimensão e intensidade, estiveram presentes nas biografias analisadas.

As pesquisas de Portes (1993, 2001 e 2003) e de Viana (1998), consideradas pioneiras sobre a temática, mostram de que maneira as famílias dos estudantes de baixo capital cultural e econômico realizam, em seu cotidiano, um “sobre-esforço para incutir, no filho, um valor – a escola – com tudo de bom que ela simboliza socialmente e pode possibilitar” (PORTES, 2003, p.65). Os pesquisadores enfatizam as estratégias mobilizadas pelas mães, como, por exemplo, a atenção direcionada para a vigilância da vida escolar, que vai desde contatos com a escola e mudanças de estabelecimento de ensino em busca de outro considerado mais favorável, até o auxílio na aprendizagem dos conteúdos escolares (PORTES, 2001). Além

disso, os estudos pontuam a importância da dimensão moral que também é colocada em jogo pelos grupos familiares na construção de uma visão positiva diante do mundo e da escola (VIANA, 1998).

Além da vigilância moral, atitudes diante do universo escolar presentes nas classes médias, como, “assiduidade, tenacidade e perseverança”, são também transmitidas e socializadas no cotidiano familiar (VIANA, 1998). Esses valores comuns às classes médias também estão presentes nas famílias das camadas populares, na medida em que mães, mas também outros familiares passam a frequentar espaços e indivíduos de outros meios sociais que se constituem em referências importantes no seu dia a dia (PORTES, 2003). Em suma, é a força do ethos, encarnado nas atitudes das mães, constituindo-se no investimento familiar com maior possibilidade de ultrapassar a condição social dos pais.

Diferentemente de Portes (1993, 2001 e 2003) e Viana (1998), que se dedicaram a compreender os estudantes que ingressaram em cursos de prestígio na UFMG, Lacerda (2006), ao se debruçar sobre as trajetórias escolares de engenheiros egressos do Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA), destaca os sentidos intergeracionais atribuídos à escolarização. Tais sentidos são retroalimentados pela escola, que julga como positiva toda adesão aos comportamentos valorizados por ela. Nesse sentido, mesmo que desprovidas de um forte volume de capital cultural, as famílias que centram suas práticas no aprendizado escolar tendem a obter melhores resultados para sua prole.

De maneira semelhante, a investigação de Almeida (2006) aponta a valorização da educação como ferramenta para a mobilidade social. O hábito de leitura em casa, passado escolar exitoso (fundamental) e pré-vestibular são elementos que contribuíram para que os estudantes investigados tivessem acesso a uma instituição pública de ensino superior e altamente seletiva como a USP.

Almeida (2006), apoiado em Viana (1998), mostra quanto tais fatores se fazem necessário na construção de um sentimento de autodeterminação, crucial na construção de percursos escolares longevos. Esses pequenos êxitos funcionam como estimuladores de novos investimentos e mobilizações para o prosseguimento dos estudos.

O trabalho de Almeida (2006) mostra ainda como a aproximação dos pares e dos professores na vida dos estudantes, bem como a existência e importância de um duradouro grupo de apoio constituído no interior do estabelecimento escolar, são fatores decisivos nas apostas educacionais dos jovens de camadas populares. Nesse processo de construção de novas estratégias escolares, as condições objetivas da socialização secundária (rede social escolar, igreja, grupos comunitários) assumem um papel significativo (SILVA e TEIXEIRA, 2007).

Assim, se por um lado a socialização primária até a vivência na universidade se faz crucial, pois ajuda a enfrentar os duros obstáculos, simbólicos e sociais, que a vida impõe a esses estudantes, por outro, as vivências na universidade, onde convivem com duras dificuldades para levar o curso adiante, se tonam tão importantes quanto para compreendermos seus percursos.

É nesse sentido que Viana (2001) aponta que as relações estabelecidas com pessoas fora do ambiente doméstico podem figurar como referência e se constituir em modelos impulsionadores das trajetórias escolares dos estudantes com baixo capital cultural e econômico. São disposições como “determinação, independência, responsabilidade e postura pró-ativa” que são apreendidas e mobilizadas por parte dos estudantes, em função dessa socialização secundária (Viana, 2001, p.50). Além de tais comportamentos, a rede de relações sociais estabelecidas durante o trajeto universitário contribuiu para a aquisição de um conjunto de informações sobre o funcionamento do sistema escolar, conforme aponta Almeida (2013) em seu estudo sobre “O Prouni e a “democratização” do ensino superior: explorações empíricas e conceituais”.

Baseada em uma análise sociológica de natureza predominantemente qualitativa, Zago (2008), sem desconsiderar os problemas estruturais que produzem as desigualdades escolares - estudantes com menor capital cultural e social optam por profissões de menor prestígio social -, chega a resultados muito semelhantes ao conjunto dos trabalhos acima. Ao objetivar o conjunto de elementos mediadores que perpassam a relação entre a posição social de origem e a performance escolar dos estudantes, a socióloga aponta as redes sociais formadas em função do local de residência, da participação/militância em movimentos religiosos, em associação de moradores, ou de um terceiro tipo, considerado o mais fluido, constituído a partir de relações estabelecidas na própria comunidade ou em outros espaços externos, como

fundamentais para pensarmos as disposições favoráveis a uma escolarização prolongada entre estudantes pobres.

Na mesma direção, podemos ainda apontar as pesquisas de Piotto (2007) e de Souza e Silva (1999) que reforçam a necessidade de se pensar as diferentes agências socializadoras na constituição do conjunto de disposições e orientações do indivíduo e/ou do grupo social. Nesse sentido, as relações construídas em diferentes redes de socialização podem ser fundamentais na construção de modos de viver e no surgimento de novas expectativas e projetos de vida (SOUZA E SILVA, 1999).

Por fim, sem tomar a origem social como fator determinante na construção do desempenho escolar, mas como condicionante limitador quanto às possiblidades de se construir uma dada condição escolar, é importante ainda salientar as contribuições de Setton (1999). Conforme aponta a autora, as pessoas não são estudantes de uma mesma forma e nem mesmo os estudos ocupam o mesmo lugar e relevância em suas vidas. Ao adotar uma perspectiva relacional, são analisadas não apenas as diferentes condições em que os estudantes acessaram a universidade (as lógicas adotadas para escolher o curso, como, por exemplo, a relação vaga/candidato), mas também as condições de permanência na universidade (transporte, alimentação, aquisição de material, etc.) e as estratégias na construção de seus percursos universitários (a escolha dos temas do Trabalho de Conclusão de Curso, as áreas de estágio, de monitoria e dos projetos de extensão).

Os resultados do estudo de Setton (1999) indicam os efeitos cumulativos das diferentes experiências sociais vivenciadas antes e durante a trajetória universitária, a saber: a escolarização anterior ao ingresso no sistema de ensino superior. De fato, a categoria social “estudante” está longe de se constituir em uma categoria homogênea, em razão mesmo da multiplicidade de situações queesses estudantes se formam.

Articulando com o objetivo específico da presente pesquisa, podemos afirmar que tais estudos remetem à necessidade de se pensar os egressos de Pedagogia e suas escolhas profissionais como produtos possíveis de determinadas configurações sociais. Considerar somente o resultado final, isto é, a profissão ou o tipo de ocupação que desenvolvem hoje os egressos, implicaria desconhecer os caminhos e percalços vivenciados por esses ex-alunos e,

nesse sentido, os constrangimentos sociais que atuaram antes, durante e depois de todo o período de escolarização, incluindo aí, a formação inicial (BOURDIEU, 2008).

Nosso estudo se interessa pela reconstituição dos processos de socialização anteriores e durante a realização do curso de Pedagogia, e também pelos recursos mobilizados pelos estudantes para ingressarem tanto no curso de Pedagogia da UFPE quanto no mercado de trabalho.