• Nenhum resultado encontrado

Tendo em vista a dinâmica estudada na presente pesquisa, que consiste em entender as interações existentes entre coletivos urbanos e PMSP postas em ação por meio do exercício do direito à cidade, até que ponto a literatura sobre participação social colocada acima dá conta de absorver e explicar esses novos fenômenos?

Isso posto, e na tentativa de aprofundar o entendimento sobre as possibilidades de interação entre poder público e sociedade civil para além da literatura sobre participação social - que se revelou como restrita-, utiliza-se então o conceito de “interface socioestatal”, entendido como um “espaço de intercâmbio e conflito em que os atores se relacionam intencionalmente, e onde se chocam projetos, forças e estratégias dos atores (estatais e sociais) envolvidos” (VERA; 2006, p. 263).

Há, na literatura, uma avaliação de que explorar a bibliografia existente sobre esse tipo de relação aumenta o escopo de análise, trazendo assim outras possibilidades de entendimento sobre a realidade, para além dos mecanismos participativos tradicionais. Em outras palavras:

Passamos a compreender cada vez melhor a ocorrência de conselhos, orçamentos participativos e, mais recentemente, de conferências, e nos distanciamos cada vez mais da observação de outras formas de interação Estado-sociedade igualmente relevantes e cotidianas na gestão de políticas públicas, como reuniões entre grupos de interesse e atores governamentais, audiências e consultas públicas e ouvidorias, sem mencionar as formas não presenciais e virtuais mediadas por ferramentas de tecnologia de informação (PIRES; VAZ, 2014, p. 65).

Em estudo conduzido por Pires e Vaz (2012), foram mapeadas as diferentes formas de interlocução entre Estado e sociedade nos programas desenvolvidos pelo governo federal entre 2004-2011, durante os dois mandatos de Lula, que seguem listadas no Quadro abaixo.

Quadro 2: Tipos e formas de Interlocução Estado e sociedade nos programas federais

Fonte: extraído de PIRES; VAZ, 2014, p. 69

Sob esta ótica, pode-se dizer que a participação seria uma das formas de interação socioestatal, que se dá basicamente por meio de canais institucionalizados e formalizados no objetivo de absorver demandas da população. Mas além dos instrumentos tradicionais de interlocução direta entre Estado e sociedade, há uma série de outros canais de interlocução em formatos e desenhos variados, como mencionado acima (PIRES; VAZ, 2014). Nesse estudo, os autores também explicam a escolha por utilizar o termo “interface socioestatal” ao invés de “participação” tendo em vista a sua maior amplitude analítica.

Para estes autores, é possível estabelecer dois blocos de interfaces: de um lado as interfaces cognitivas, que possuem uma atribuição consultiva; e de outro as interfaces políticas, com atribuição de cogestão. Conforme a Figura 2, as interfaces cognitivas se subdividem em: i) interface de contribuição, quando a sociedade informa ao Estado; ii) interface de transparência, quando o Estado informa à sociedade; e iii) interface comunicativa, quando Estado e sociedade se informam mutuamente. Por sua vez, as interfaces políticas se subdividem em: n) interface mandatória, quando sociedade tem vantagem sobre o Estado; nn) interface de transferência,

quando o Estado tem vantagem sobre a sociedade; e nnn) interface de cogestão, quando os processos são compartilhados.

Figura 2: Tipos de interfaces socioestatais

Fonte: adaptado de PIRES; VAZ, 2014, p. 16.

Há uma variedade de autores brasileiros que se utilizam do termo “interface socioestatal” ao dissertar sobre os diferentes mecanismos ou formas de interação entre Estado e sociedade civil. Mais recentemente, Abers et al exploram justamente as diferentes relações existentes entre esses atores, ao analisar o período Lula, sob seu aspecto participativo. No referido artigo, são identificadas quatro rotinas de interação Estado-sociedade: 1) protestos e ação direta; 2) participação institucionalizada; 3) política de proximidade; e 4) ocupação de cargos na burocracia (ABERS et al; 2014).

A análise das autoras se deu com foco em três órgãos do Governo Federal, no intuito de captar diferentes políticas e, portanto, diferentes históricos de relação com a sociedade civil. Foram eles: o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA); o Ministério das Cidades; e a

Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp). Assim, puderam observar as dinâmicas ocorridas caso a caso a fim de construir um repertório com as quatro rotinas acima citadas. As autoras concluem que houve, nesse período, maior proximidade entre movimentos sociais e atores estatais, que levou à experimentação de padrões de interação, rotinas de comunicação e negociação.

A primeira rotina de interação colocada intitula-se “protestos e ação direta”. Neste caso, ocorre mobilização e pressão contra o governo, por parte dos movimentos, a fim de dar visibilidade às suas demandas. Esta rotina possui duas subcategorias, são elas:

“protesto para abrir ou restabelecer negociação”, no caso de governos que são menos permeáveis às demandas dos movimentos; ou “protestos como parte do ciclo de negociação”, mais comuns em situações nas quais atores de governo e movimento são aliados em torno de projetos políticos comuns, tal como veremos no caso do MDA” (ABERS et al, 2014, p. 332).

Outros autores também fazem referência a protestos como forma de interagir com a máquina pública. Com efeito, tais relações “na maior parte das vezes - assimétricas com outros sujeitos estabelecem um espaço de conflito, de negociação e disputa” (VERA; LAVALLE, 2012, p. 109). No caso dos protestos, a relação se dá de maneira conflitiva para alcançar determinado objetivo. Ainda, segundo Carlos (2012, p. 9) “as relações entre movimentos e Estado foram predominantemente concebidas como conflitivas. Todavia, as interações socioestatais podem assumir diferentes conteúdos e significados e configurar padrões tanto conflitivos quanto cooperativos”. Inclusive, os tipos de interação socioestatal enumerados abaixo tratarão de padrões no sentido da cooperação.

Em um segundo momento, as autoras colocam a “participação institucionalizada”, como outra forma de interação socioestatal. Esta rotina caracteriza-se “pelo uso de canais de diálogo oficialmente sancionados que são guiados por regras previamente definidas, aceitas pelos envolvidos (e em alguns casos estabelecidas pela lei) ” (ABERS et al, 2013, p. 332). A título de ilustração, pode-se dizer que são espaços como conselhos de políticas públicas, orçamento participativo e conferências que predominam no país (ABERS et al, 2013). Tal gênero de interação englobaria então os mecanismos criados que abrem espaço formalizado para absorver a participação social.

A “política de proximidade”, instituída como um terceiro tipo de rotina de interação socioestatal, dá-se com base no contato pessoal entre atores estatais e sociais (ABERS et al,

2013). A priori, pode ser considerado um tipo de relação clientelista, mas deve também ser considerado como um instrumento facilitador de levar demandas de um determinado setor ao poder público. Segundo as autoras, “o recurso mobilizado pelos ativistas, neste caso, é sua posição como interlocutor reconhecido (...) que pode variar substancialmente, envolvendo laços pessoais até o status da organização à qual pertencem” (ABERS et al, 2013, p. 333).

Por fim, a “ocupação de cargos na burocracia” também se configura enquanto interação socioestatal. Este tipo de prática ocorre quando movimentos sociais percebem os governos como aliados (ABERS et al, 2013). Além disso, ocupar cargos na máquina pública reforça também a política de proximidade, tendo em vista que quando amigos ou colegas de militância se tornam parte do governo, necessariamente a relação entre atores estatais e sociedade civil se vê facilitada (ABERS et al, 2013). Com efeito, “vários estudos (...) têm sugerido que o engajamento com atores estatais e na burocracia é uma estratégia na tentativa de influenciar os processos de políticas públicas” (CAYRES, 2015, p. 60).

Neste sentido, a expressão “ativismo institucional” consiste em outro termo utilizado para definir esse tipo de relação. Para Abers e Tatagiba, ativismo institucional se define quando pessoas com experiência militante “assumem cargos nas burocracias governamentais com o propósito de fazer avançar as agendas políticas ou projetos propostos pelos movimentos sociais” (ABERS E TATAGIBA, 2014, p.1).

Figura 3: Rotinas de interação Estado-sociedade

Em suma, a partir da literatura colhida e das figuras acima, nota-se que a classificação de Pires e Vaz se restringe a analisar os espaços institucionalizados que recebem a relação socioestatal (ouvidoria, reuniões, etc.). Portanto, a tentativa será de aplicar a dinâmica socioestatal que ocorre na cidade de São Paulo à categorização de quatro tipos de interações socioestatais desenvolvida por Abers et al (2013). A interação analisada na presente pesquisa será uma mescla entre o conceito de interação e interface socioestatal, pois na medida em que a interação entre PMSP e coletivos urbanos se tornou recorrente, cogita-se criar uma interface específica para tal relação. Ainda, utilizando estudos sobre efetividade das IPs ao final do trabalho, será analisada a efetividade desta nova interface surgida no intuito de dar vazão à relação entre a municipalidade e coletivos.

4 SOBRE O DIREITO À CIDADE

Apesar do seu uso cada vez mais recorrente, a expressão “direito à cidade” parece ainda não ter se consolidado enquanto literatura na academia (KRIEGER; LEBLANC, 2016). Para Agier (2015), os atores sociais da última década se apropriaram da expressão direito à cidade a fim de dar consistência à sua atuação na transformação do tecido urbano. Ainda, o autor faz referência a Harvey o qual define o direito à cidade como sendo um significante vazio, já que “tudo depende de quem lhe conferirá sentido” (HARVEY, 2011, p. 42).

Neste sentido, na presente seção será realizado um traçado histórico sobre o termo, bem como um mapeamento de como tem sido a sua construção em âmbito internacional, nacional e local. O presente capítulo servirá de pano de fundo para contextualizar as dinâmicas recentes na cidade de São Paulo, bem como a apropriação de tal expressão tanto pelos coletivos urbanos, como pela municipalidade.