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a. A incorporação por parte do Estado

Como já aludido previamente, o termo “direito à cidade”, surgido em 1968 na obra de Lefebvre, foi amplamente incorporado ao discurso tanto dos atores estatais como também por parte dos atores sociais e da mídia. Em estudo analisando os discursos dos mais diversos grupos que se relacionam com o tema para compreender os conceitos mobilizados e ambiguidades dentro do próprio discurso, Krieger e Leblanc (2016) colocam que a ação de criação da CPDC por parte da Prefeitura pode ser entendida como a tentativa de transformar este termo em uma hegemonia e que, apesar de esta não ter sido alcançada na cidade, certamente deu ainda mais força ao uso de tal expressão.

De fato, a criação de um aparato institucional que carrega a expressão direito à cidade é simbólica para a sociedade civil, sobretudo para os coletivos urbanos mobilizados em São Paulo. Essa expressão “vem sendo incorporada nos discursos de múltiplos atores, como os acadêmicos, os coletivos urbanos, o governo local, a sociedade civil organizada, entre outros” (KRIEGER; LEBLANC, 2016, p.7).

Sob outra perspectiva, Martins e Buonfiglio afirmam que a internalização do discurso pelo Estado, em outras palavras, a institucionalização do discurso, tanto fortalece a agenda em questão como pode ser desvinculado de sua origem. Efetivamente:

Enquanto discurso corrente em meio urbano, podemos captar o direito à cidade pela apropriação político-ideológica por diversos atores sociais. Assim, entendemos que o paradigma do direito à cidade encontra-se num “cruzamento”, com dois tipos de

abordagens. Uma primeira, que leva em consideração a forma pela qual o Estado internaliza o discurso do direito à cidade – num 'modelo de gestão democrática' – e a segunda, vinda de outra direção, traduzida pelo modo como os sem-teto encaram o paradigma – na luta. (BUONFIGLIO, 2007, 267).

“Como modelo de dominação organizada, deve-se notar que, ao transpor a barreira institucional para se inscrever no corpo do Estado, o ‘direito à cidade’ passa a ser capital urbanístico institucionalizado, uma ordem simbólica universalizada, desvinculado dos agentes que lhe deram origem” (MARTINS, 2006, p. 155).

De um lado, pode-se concordar com os autores citados acima, observando o estabelecimento da CPDC “como sendo uma tentativa de dominar o campo da discursividade e deter de forma contingente o fluxo das diferenças” (KRIEGER; LEBLANC, 2016, p. 2). Mas também, o discurso elaborado pela própria CPDC acabou legitimando os coletivos urbanos. Por haver a mesma sintonia e entendimento sobre o uso do espaço público e sobre o direito à cidade, os grupos surgidos na cidade ganharam força:

A CPDC acabava virando um coletivo, muitas vezes, porque comprava brigas internas e isso nos ajudava a compreender o funcionamento interno da gestão. E pelo próprio nome “Direito à Cidade”, que é a pauta de muitos coletivos, já mostrava que havia algo em comum para começar a conversar. E a gente sabia que a CPDC olhava de uma forma mais sensível para o tema. (Entrevistado RSC2, 2016).

Ocorreu, de certo modo, a retroalimentação de um discurso que fortaleceu ambas as partes.

b. Cenário paulistano

Quando se trata do contexto posto na cidade de São Paulo, em que se deu a relação entre o ator estatal analisado (Prefeitura Municipal de São Paulo) e o ator não estatal (coletivos urbanos atuantes em espaços públicos da cidade), muitos dos entrevistados dedicam-se a descrevê-lo, antes e durante o surgimento massivo destes grupos. Um dos diagnósticos que surge recorrentemente é a cena pré-2013. Segundo o Entrevistado RG2 (2016):

“o fato de se ter uma militarização intensa da política das cidades, potencializou o esvaziamento do espaço público, foi criando esse clima que é muito presente em São Paulo de uma cidade onde as pessoas preferem se confinar nos espaços privados e tem muito medo de se encontrar no espaço público”.

Ainda nesta linha, o Entrevistado RSC1 expõe: “sobre o uso da cidade: a privatização dos espaços públicos e a cultura do medo eram dominantes entre a população de São Paulo” (2016).

Visto que esse diagnóstico esteve presente tanto na fala dos gestores entrevistados quanto na fala dos grupos entrevistados, esse tema surge como mais um ponto de convergência entre as partes.

c. A elaboração de uma agenda comum

Ainda nesta lógica, um ponto importante a ser mencionado é que não havia demandas delineadas e organizadas por parte dos grupos quando se consolidou a CPDC. Esse fato surge na fala de um dos entrevistados:

No caso específico desta política e desta agenda, a gente enfrentou um problema a mais que era o fato de que os próprios coletivos não tinham agenda organizada de políticas públicas, de demandas. Então a gente ajudou os grupos a consolidarem esta gramática, esse vocabulário. Entender o que eles precisavam, e eles nos ajudaram a entender o que nós precisávamos fazer (Entrevistado RG2, 2016)

Então, as demandas foram se construindo de maneira orgânica e conjunta, por conta da contemporaneidade do fenômeno. E, mais para frente, reivindicações dos grupos acabaram sendo da própria CPDC no sentido de que a coordenação assumia algumas pautas provenientes da sociedade civil.

Entretanto, para alguns entrevistados, a expressão “direito à cidade” se tornou um jargão e, com isso, acabou perdendo muita força.

É que nem a “nova agenda urbana”, agora a ONU aprovou o novo jargão. Tudo é nova agenda urbana. O que é no fundo? Nada. (...) Como o direito à cidade virou um jargão que ninguém mais consegue disputar, a gente fugiu pro lado dizendo que a nova agenda urbana é o caminho. Tá errado, esquece o jargão. Vamos defender concretude, experiências práticas, medidas objetivas. Eu não gosto mais do jargão “direito à cidade”, esvaziou. (Entrevistado RG3, 2016).

No fragmento acima, o entrevistado explica os processos de criação de determinados jargões. Para ele, quando ocorre esvaziamento de um termo em uso, as pessoas criam um novo termo que englobará uma visão e uma luta. Esse fato se deu por conta, sobretudo, de uma apropriação indevida que se fez do termo “direito à cidade” por atores do setor imobiliário por exemplo23. Afinado a esta ideia, outra fala revela um desconhecimento do próprio conceito. De fato:

Na antropologia, quando se fala direito à cidade para esses sujeitos, o que eles estão querendo dizer? O que está sendo negociado? Qual o conteúdo e as relações que estão sendo mediadas por esse significante? Acho que é um jargão que vai te dar acesso e vai te ajudar numa fala com estas outras pessoas, em determinadas redes. Inclusive, isso pra mim foi um pouco frustrante. Eu tinha uma expectativa, mas nenhum dos círculos que eu fui de discussões mais amplas isso foi realmente discutido. Até conceitualmente. Discutem-se coisas mais pontuais… Pensa-se pouco. (Entrevistado RSC2, 2016).

23 Campanha “Cidade-se” promovida por uma empresa líder do mercado imobiliário brasileiro. Diversos temas são abordados, como “arte pública”, “a era dos makers”, “cidade aberta”, “ocupação carioca”. Disponível em:

Ainda analisando a passagem supradita, constata-se que o uso do jargão acaba por dar acesso a certas redes ou pessoas, tornando-se então um código que delimita o seu uso e entendimento apenas a uma comunidade específica.

De outro ponto de vista, Harvey (2013, p. 76) alega que “para unificação dessas lutas, [deve-se] adotar o direito à cidade como slogan e como ideal político, precisamente porque ele levanta a questão de quem comanda a relação entre urbanização e o sistema econômico”. Deste modo, esse termo se torna um significante vazio, elemento primordial para se consolidar uma hegemonia (KRIEGER; LEBLANC, 2016), mas traz junto a perda dos laços com a luta inicial e a despersonalização do movimento. No presente estudo, o direito à cidade se manifesta como o conceito agregador, a pedra de toque unindo os elementos tratados: os coletivos que exercitam o seu direito à cidade e a PMSP que percebe essa ação e responde a ela com a criação de uma coordenação.

Em suma, qual a relação que a PMSP mantém com os coletivos urbanos que exercem ou colocam em prática o direito à cidade? Em outras palavras, a CPDC teria surgido enquanto consolidação de uma nova interface para garantir o diálogo entre os coletivos urbanos e a municipalidade ou um canal de comunicação e participação dedicado a tais grupos?

6 APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

A partir das teorias levantadas na revisão bibliográfica e do trabalho de campo realizado com os entrevistados, foi possível absorver os principais desafios e avanços em se tratando da interface entre a PMSP e os coletivos.

No presente capítulo, será utilizada como base a categorização elaborada por Abers et al (2014), exploradas no Capítulo 3, com o objetivo de entender se e como a dinâmica socioestatal presente na cidade de São Paulo se aplica às rotinas de interação descritas. Em cada uma das interações Estado-sociedade, a tentativa será de encontrar o equivalente ou semelhante na relação aqui observada entre PMSP e coletivos urbanos, problematizando a teoria. Afinal, os grupos em questão podem não necessariamente se encaixar nos mecanismos colocados pelas autoras. Como já dito anteriormente, esse novo “tipo” de sociedade civil em estreito diálogo com a esfera municipal parece estar construindo uma interface socioestatal à sua maneira.

Ao final, serão utilizados elementos trazidos por Lavalle et al (2016) ao debater sobre o conceito de efetividade da participação no intuito de verificar se a CPDC, entendida como interface em construção, consolidou-se e funcionou realmente enquanto espaço participativo.