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Os coletivos urbanos enquanto novíssimos movimentos sociais

Entretanto, outra coisa também me chamava atenção: como gritavam frases feitas como se fossem um coral furioso. Hoje sabemos o que aquilo era: o nascimento desta nova moda e praga chamada "coletivo". Não me refiro a transporte coletivo, como quando se diz "aí vem o coletivo". Refiro-me a um conjunto de estudantes (mas pode também ser de artistas ou similares) que se autodenominam "coletivo". A ideia é que formam um coletivo no qual todos são iguais. Pensam em coletivo, falam em coletivo, agem em coletivo, assinam em coletivo (PONDÉ; 2016).

Como mencionado na Introdução do presente estudo, as manifestações ocorridas em junho de 2013 trouxeram consigo a proliferação significativa dos chamados “coletivos urbanos” na cidade de São Paulo, grande parte atuante em espaços públicos. Na tentativa de compreender o surgimento do próprio termo, foi realizado um levantamento bibliográfico para mapear o número de artigos publicados sobre o tema, nacionalmente. Para tal mapeamento foi utilizada a plataforma Google Scholar, tendo em vista a amplitude de seus resultados. A primeira expressão utilizada foi “coletivo urbano”, para a qual foram encontrados 2.910 resultados sobre transporte público, em sua grande maioria. Percebeu-se, a partir deste primeiro filtro, que o conceito “coletivo artístico” ou “coletivos de artistas”, aparece como um dos tipos de coletivos urbanos presentes na dinâmica da cidade, definidas como sendo “práticas de intervenção em espaços públicos que mesclam arte e ativismo e se disseminam por meio de redes virtuais e presenciais de comunicação” (GONÇALVES, 2010). O arquiteto urbanista Renato Cymbalista explica:

Inúmeros grupos vêm deixando de lado as posturas queixosas e tomando para si a responsabilidade e o direito de interferir nos espaços coletivos. Tais iniciativas - nomeadas de urbanismos pop-up, urbanismo tático, urbanismo de guerrilha, catalisadores urbanos - possuem grande diversidade. São ações e eventos efêmeros, mobiliário urbano, articulação política, agricultura e jardinagem urbana, controle social, entre outras vertentes. O momento atual é de redefinição radical das possibilidades e desafios que envolvem a produção e a ocupação dos espaços urbanos, assim como a ação pública sobre eles, e tudo indica que estamos frente a uma reconstrução dos contornos da disciplina do urbanismo (I, 2016).

Por se tratar de uma categoria analítica recente e apesar de existirem alguns artigos sobre diferentes tipos de ação coletiva nas cidades, parece ainda não estar consolidado, na literatura de participação e movimentos sociais, o conceito de “coletivo urbano” que se almeja estudar. Neste sentido, é importante resgatar brevemente a literatura que trata destes movimentos sociais e também sobre ação coletiva, sua origem, seu desenvolvimento e suas diferentes correntes para, em um segundo momento, compreender o “coletivo urbano” enquanto ator da sociedade civil, ou

novíssimo movimento social (ZIBECHI, 2013). Cabe ainda mencionar que a literatura não se aprofunda na relação que mantém esses grupos junto à administração pública. Buscou-se então explorar um pouco da literatura sobre a trajetória de “movimento social”, “movimento social urbano” e “ação coletiva”, no intuito de encontrar bases conceituais que fundamentam a definição de coletivo urbano tratada neste trabalho. Posteriormente, as entrevistas realizadas também trarão a sua visão sobre tais grupos.

Melucci (1996) distingue ação coletiva, entendida como uma série de práticas sociais, de movimentos sociais, que são uma forma de ação coletiva. Faremos, agora, uma revisão bibliográfica a partir da definição de ação coletiva do autor, para em seguida serem mencionados os principais teóricos que discutem os movimentos sociais de fato.

Melucci foi um teórico importante e uma referência em se tratando do tema, sobretudo resolvendo a diferença de práticas e ação. Em 1989, ao apresentar um texto para o grupo de trabalho sobre "novos movimentos e mudança nas formas de organização", fez referência à Tarrow, o qual estabelece uma diferenciação entre “movimentos (como formas de opinião de massa), organizações de protesto (como formas de organizações sociais) e eventos de protesto (como formas de ação) ” (MELUCCI, 1989, p. 55).

Sobre ação coletiva, Daniel Cefaï (2007) fala da sua importância no entendimento das dinâmicas políticas e democráticas:

os labels “novos movimentos” “políticos” ou “culturais” são cada vez mais frequentes… O estudo de formas emergentes de engajamento público e ação coletiva é crucial para compreender as dinâmicas democráticas, as modalidades do exercício da cidadania ordinária, da constituição de problemas públicos e da legitimidade de intervenções do Estado, o desenvolvimento de novas figuras da sociedade civil e a instituição de novos regimes da ação pública (p. 7-8).

O autor explica que a noção de “ação coletiva remete a qualquer tentativa de constituição de um coletivo, mais ou menos formalizado e institucionalizado, por indivíduos que procuram alcançar um objetivo compartilhado, em contextos de cooperação e competição com outros coletivos” (p. 8). Por esse ângulo, é possível dizer que os coletivos urbanos de transformação do espaço público se constituem enquanto ação coletiva, assim como os tradicionais movimentos sociais, ou novos movimentos sociais. Seriam eles de fato os novíssimos movimentos sociais?

No que diz respeito à teoria dos movimentos sociais, existe certa dificuldade para se definir “conceitualmente e há várias abordagens que são difíceis de comparar” (Melucci, 1989, p. 54). Para Melucci, os movimentos sociais podem ser definidos analiticamente como uma forma de ação coletiva “ (a) baseada na solidariedade, (b) desenvolvendo um conflito, (c) rompendo os limites do sistema em que ocorre a ação” (1989). Então, “estas dimensões permitem que os movimentos sociais sejam separados dos outros fenômenos coletivos (delinquência, reivindicações organizadas, comportamento agregado de massa) que são, com muita frequência, empiricamente associados com ‘movimentos’ e ‘protesto’” (MELUCCI, p. 45).

De pronto, há de se perceber a diferença, por exemplo, entre os tradicionais movimentos sociais como o movimento operário sindical, as lutas camponesas, que possuíam uma identidade econômica, com os chamados “novos movimentos sociais”, estes compostos de jovens, mulheres, negros, estudantes, demandando direitos culturais, de educação e movimentos urbanos, demandando direitos sociais (saúde, habitação, assistência social), baseados agora em uma identidade social cultural e subjetiva.

Assim, um texto de suma importância para melhor entendimento dos movimentos sociais é o de Mario Diani e Donatella Della Porta, de 2006, que coloca os movimentos sociais como área específica da academia. Os autores explicam que é nos anos 1960 que começam a surgir movimentos sociais: o movimento social por direitos civis nos Estados Unidos, os protestos estudantis por toda Europa e a revolta francesa de maio de 1968. Para Angela Alonso, estes movimentos “não se baseavam em classe, mas sobretudo em etnia (o movimento pelos direitos civis), gênero (o feminismo) e estilo de vida [como] o pacifismo e o ambientalismo” (ALONSO, 2009, p. 50). Ainda segundo Diani e Della Porta, os movimentos sociais são definidos como sendo ações racionais, propositivas e organizadas, com oponente claramente definido, ligados por redes informais e compartilham identidade coletiva específica. A ação coletiva, pelo contrário, não parece ter um alvo opositor político definido. Retomando Melucci, ao falar do movimento estudantil:

[...] é possível traçar a participação juvenil em movimentos sociais através das formas ‘sub-culturais’ de ação coletiva nos anos 70 como os punks, os movimentos de ocupação de imóveis, os centros sociais juvenis em diferentes países europeus, através do papel central da juventude nas mobilizações pacifistas e ambientais dos anos 80, através de ondas curtas mas intensas de mobilização de estudantes secundaristas dos anos 80 e começo dos 90 (na França, Espanha e Itália, por exemplo) e, finalmente, através das mobilizações cívicas nos anos 90 como o anti-racismo no norte da Europa, França e Alemanha ou o movimento da anti-máfia na Itália” (1997, p. 12).

Para condensar leituras e análises sobre o tema até o presente momento, o livro de Maria da Glória Gohn, intitulado “Movimentos Sociais e Redes de Mobilizações Civis no Brasil Contemporâneo”, é uma das referências de movimentos sociais no Brasil. Na primeira parte da obra, Gohn apresenta dois pontos que diferenciam os movimentos na atualidade e no passado. Segundo ela, muitos dos movimentos sociais que emergem atualmente “apresentam um ideário civilizatório que coloca como horizonte a construção de uma sociedade democrática” (GOHN, 2010, p. 15).

Navarro e Brasilino (2015), fazem justamente referência à nomenclatura “novos movimentos sociais” ou “movimentos autônomos” ao falar sobre os coletivos urbanos:

[...] de uma diversidade imensa de organizações, estruturadas em coletivos, redes e frentes que vêm sendo chamados de novos movimentos sociais, ou movimentos autônomos (como a maioria costuma se identificar). De fato, a primeira característica elencada por Braga é a mais lembrada quando se trata destes novos movimentos. “A grande fortaleza destes novos movimentos que têm surgido é o seu profundo caráter democrático, ou seja, como são organizados de maneira horizontal, acabam sendo permeáveis e sensíveis à participação popular no sentido amplo. Assim, tendem a, num primeiro momento, se ampliar. Isso é muito positivo porque eles oferecem vazão para aquele estado de inquietação social latente que de outra maneira não se expressaria de forma democrática, e poderia, por exemplo, se expressar de maneira mais violenta por meio de quebra-quebras ou algo do estilo. No entanto, não, esses novos movimentos oferecem a oportunidade de esse estado de inquietação latente que vem se acumulando no país nos últimos 14 anos se expressar de forma democrática.

Outro autor fundamental para a discussão é Manuel Castells, que discute a formação de novos atores e a maneira pela qual se articulam. Para ele, existe uma diferença entre o espaço urbano e o espaço virtual, ou rede, onde a relação se constrói de fato: “Embora os movimentos tenham em geral sua base no espaço urbano, mediante ocupações e manifestações de rua, sua existência contínua tem lugar no espaço livre da internet” (CASTELLS, 2012, p. 160). Com efeito, as novas tecnologias têm se mostrado importantes ferramentas para fomentar a participação social e revolucionar a forma de se relacionar. Os coletivos urbanos, inclusive, ganham mais força com a existência de redes online e mídias sociais. A ideia, ao atentar a esta literatura, é entender de que maneira tais coletivos se relacionam no chamado “espaço da autonomia” que, para o autor, é a união do espaço urbano e do espaço cibernético.

Traçado o histórico acima a partir das literaturas sobre ação coletiva e movimentos sociais, pode-se dizer que os coletivos urbanos se aproximam dos escritos sobre novos movimentos. A partir do próximo capítulo, será desenvolvido com mais detalhamento o perfil de tais atores, com intenção de se compreendê-lo enquanto categoria de análise.