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Importante frisar que a trajetória do sentido do termo direito à cidade, a nível global, envolve academia e atores internacionais não acadêmicos. Com efeito, sabe-se que as cidades comportam atualmente metade da população mundial e estima-se que em 2050 a taxa de urbanização no mundo chegue a 65% (SAULE JR., 2005). Neste cenário, os municípios têm ganhado cada vez mais importância, pois é em âmbito local que o cidadão se percebe mais próximo do Estado.

Historicamente, o termo “direito à cidade” foi cunhado pela primeira vez por Henri Lefebvre (2001, p. 12) em 1968, que colocava as cidades como “centros de vida social e política onde se acumulam não apenas as riquezas como também os conhecimentos, as técnicas e as obras (obras de arte, monumentos) “. O autor parte evidentemente de uma perspectiva marxista, na qual a cidade é entendida enquanto espaço onde ocorre o excedente do capital, a exacerbação da luta de classes, etc. Ao dissertar sobre a construção das cidades, Lefebvre aponta a figura de Haussmann como elemento central de sua análise. De fato, o barão Haussmann teve papel importante na construção de Paris, pois ao substituir “as ruas tortuosas, mas vivas por longas avenidas, os bairros sórdidos, mas animados por bairros aburguesados” (p. 23) não só afastou os operários do centro urbano como arranjou espaços vazios no objetivo de proclamar “a glória e o poder do Estado (...) a violência que neles [espaços vazios] pode se desenrolar” (p. 23).

De maneira mais ampla, o direito à cidade para Lefebvre “se manifesta como forma superior dos direitos: direito à liberdade, à individualização na socialização, ao habitat e ao habitar. O direito à obra (à atividade participante) e o direito à apropriação (bem distinto do direito à propriedade) estão implicados no direito à cidade” (op.cit. p. 134). Desde Lefebvre, o conceito sofreu desdobramentos para que se chegasse na atualidade com entendimentos ainda mais diversos sobre a sua definição.

Outro marco importante é a Carta Mundial do direito à cidade, apresentada no âmbito do Fórum Social Mundial de Porto Alegre (2005). Produzida de maneira colaborativa, pretendeu ser “um instrumento dirigido ao fortalecimento dos processos, reivindicações e lutas urbanas” (MARTINS, 2006, p.2).

A carta mundial do direito à cidade é um instrumento dirigido a contribuir com as lutas urbanas e com o processo de reconhecimento no sistema internacional dos direitos humanos do direito à cidade. O direito à cidade se define como o usufruto eqüitativo das cidades dentro dos princípios da sustentabilidade e da justiça social. Entendido como o direito coletivo dos habitantes das cidades em especial dos grupos vulneráveis e desfavorecidos, que se conferem legitimidade de ação e de organização, baseado nos usos e costumes, com o objetivo de alcançar o pleno exercício do direito a um padrão de vida adequado (MARTINS, 2006, p.2).

Para Martins (2006, p. 128), “o ‘direito à cidade’ se institui com base em um sistema de valores compartilhados por uma rede de agentes e instituições no espaço-tempo urbano”, numa tentativa de instaurar um novo modelo de ordem urbana no lugar do “obreirismo modernizador”.

Na atualidade, o geógrafo britânico David Harvey também se apresenta como referencial teórico sobre o tema. Assim como Lefebvre, Harvey carrega uma bagagem marxista, com fins de compreender como se dá o processo desigual de urbanização nas cidades. Em sua obra intitulada “Para entender O capital”, Harvey explica: "dediquei grande parte da minha vida acadêmica a aplicar a teoria marxiana ao estudo da urbanização sob o capitalismo, do desenvolvimento geográfico desigual e do imperialismo" (HARVEY, 2013, p. 22).

Para o presente trabalho, será utilizada a definição de Harvey sobre o direito à cidade, que entende esse espaço urbano como bem comum apto a ser modificado por seus habitantes:

O direito à cidade é muito mais que a liberdade individual de ter acesso aos recursos urbanos: é um direito de mudar a nós mesmos, mudando a cidade. Além disso, é um direito coletivo, e não individual, já que esta transformação depende do exercício de um poder coletivo para remodelar os processos de urbanização (HARVEY, 2013, p. 45).

Tendo em vista o viés marxista onipresente nas obras de Harvey, quando coloca o direito à cidade enquanto direito de transformação por parte de seus habitantes, deve-se entender a

parcela trabalhadora da sociedade. Do contrário, a cidade poderia continuar sendo modificada pela classe dominante e continuar com processos de fortalecimento e acumulação do capital.

No que diz respeito aos marcos históricos propriamente ditos, o mais recente é a Terceira Conferência das Nações Unidas sobre Moradia e Desenvolvimento Urbano Sustentável (Habitat III), realizada em outubro de 2016, em Quito, que figura enquanto elemento fundamental para análise desta questão, pois apresenta a Nova Agenda Urbana, documento que serve de guia para as ações de governos nos próximos 20 anos. A elaboração desse documento, com participação de governos e sociedade civil, contou com uma mobilização global, por parte de organizações sociais, pela inclusão do direito à cidade no texto visando assim garantir “o direito dos habitantes de usar, ocupar, produzir, governar e usufruir de suas cidades, vilas e povoados justos, inclusivos, pacíficos e sustentáveis, entendidos como bens comuns essenciais a uma vida plena e decente”7.

Neste contexto, a Plataforma Global pelo direito à cidade desempenhou um papel fundamental para essa articulação. A Plataforma “é uma iniciativa de um conjunto de organizações (...) com o propósito de construir um movimento internacional pelo direito à cidade”8 que visa a fortalecer as lutas sociais urbanas locais e nacionais, bem como a mobilização internacional para incidir nos processos “macro” decisivos, como por exemplo, a agenda dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável Pós-2015 ou a própria Nova Agenda Urbana. Como resultado deste processo, o termo consta na versão final do documento em questão.

7 Portal eletrônico do Observatório das Metrópoles. Disponível em <http://www.observatoriodasmetropoles.net/> 8 Plataforma Global pelo Direito à Cidade. Disponível em <http://www.righttothecityplatform.org.br/o-

Imagem 1: Mobilização global pelo Direito à Cidade

Fonte: Observatório das Metrópoles - Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (website oficial)