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Conceito de papel na teoria moreniana

CAPÍTULO 2 – SOCIONOMIA

2.1 Sociodinâmica

2.1.4 Conceito de papel na teoria moreniana

O papel pode ser definido como a unidade de experiência sintética em que se fundiram elementos privados, sociais e culturais... o papel é a forma de funcionamento que o indivíduo assume no momento específico em que reage á uma situação específica, na qual outras pessoas ou objetos estão envolvidos. O papel pode ser definido como uma pessoa imaginária criada por um autor dramático, p. ex. um Hamlet, um Otelo ou um Fausto; esse papel imaginário pode nunca ter existido, como, por exemplo, um Pinóquio ou um Bambi (MORENO, 1997, p.18-27)

Etimologicamente diversos termos dão origem à palavra Papel com diferentes sentidos. O termo vem do latim medieval rotulus (derivado de rota= roda) que pode significar tanto “uma folha enrolada contendo um escrito”, bem como “aquilo que deve recitar um ator numa peça de teatro”. No século XI o termo era utilizado também no sentido de “função social”, “profissão”. O termo francês “rolê”, o inglês “role” e o castelhano “rol” igualmente têm sua origem na mesma etimologia “rotulus”.

A palavra Papel, na língua portuguesa, etimologicamente, vem do grego pápyros, do latim papiro. Papiro designa um arbusto do Egito de cuja entrecasca se fazia o Papel, obtendo-se o material para a escrita.

Constata-se que os significados originais de rotulus foram incorporados na língua portuguesa pela palavra Papel. Isso, porque, além de indicar o material utilizado para a escrita (papiro), Papel refere-se também à personagem representada por um ator, ou à parte que cada ator desempenha no teatro, no cinema, na televisão, e, ainda, à atribuição de natureza moral, jurídica e técnica.

Moreno percebia o indivíduo como parte integrante do universo, propondo-lhe uma análise existencial e fenomenológica da sua existência, sem estabelecer limites entre a vida e a morte, entre o eu e os Papéis ou entre a fantasia e a realidade. Com isso, criou um novo conceito

de Papel, que provém da catarse total oriunda do ato de nascer e libertar-se, vendo o indivíduo como síntese de uma integração sintética de todos os elementos presentes na natureza e nos espaços que preenche, em suas relações como o mundo, com as pessoas e com os seus Papéis.

A fonte inspiradora da teoria de Moreno foi o teatro. Por sua origem, segundo o autor (1997, p.27), “Papel não é um conceito sociológico ou psiquiátrico, entrou no vocabulário científico através do teatro”. E, como o teatro, representou no início, a matriz e o locus do projeto moreniano, nada mais lógico, portanto, que o conceito de Papel tenha se constituído numa das pedras angulares da teoria moreniana e da prática sócio-psicodramática. Segundo Moreno (1997, p.27):

Dos papéis e contrapapéis, situações de papéis e conservas de papel, desenvolveram-se naturalmente suas extensões modernas: o executante de papel, o desempenho de papéis, a expectativa de papel, a passagem ao ato (acting out) e, finalmente, o psicodrama e o sociodrama.

A tarefa do Teatro Vienense da Espontaneidade, entre 1921 e 1923, foi a de produzir uma revolução no teatro, procurando modificar por completo os eventos teatrais. Representa a fusão ator-autor e espectador no ato da criação e representação do drama. Rompe a oposição entre ator e autor, entre pessoa e drama, criando a vida sem necessidade de textos; tudo é improvisado: a peça, a ação, o motivo, as palavras, o encontro e a resolução dos conflitos. O palco também “desaparece”, surgindo em seu lugar o palco-espaço, o espaço aberto, o espaço da vida, a vida mesma.

Surge assim, um novo tipo de teatro. Não uma peça escrita pelo dramaturgo, decorada, ensaiada e encenada sucessivamente. O teatro da Espontaneidade é sempre uma peça única, que flui e se consuma no aqui-agora do ato vivencial dos atores-criadores. Um teatro vivo, teatro vida. Segundo Moreno (1984a, p. 17), “Minha visão do teatro foi moldada segundo a idéia do

self espontaneamente criativo”.

Através da nova forma de seu teatro, Moreno buscava tanto o desenvolvimento pessoal quanto social do indivíduo. Para alcançar esses objetivos, acreditava que o homem podia se transformar através da ação, experimentação e vivências, refletindo e modificando sua conduta.

A teoria psicodramática dos Papéis leva o conceito de Papel a todas as dimensões da existência humana, desde o nascimento e ao longo de vida do indivíduo, enquanto experiência pessoal e modalidade de participação social. Situa-se no conjunto da teoria moreniana que sempre se refere ao homem em situação, imerso no social, buscando transformá-lo através da

ação. O conceito de Papel, que pressupõe inter-relação e ação, é central nesse conjunto articulado de teorias, imprescindível para a compreensão da teoria e prática do Psicodrama.

A concepção moreniana entende que o existir humano é um viverem coletividade. O indivíduo se realiza pelo desempenho de Papéis na sociedade. Para Moreno (1972b, p.81):

Este enfoque se funda no princípio de que o homem tem um papel a desempenhar, cada indivíduo se caracteriza por uma variedade de papéis que regem seu comportamento e que cada cultura se caracteriza por uma série de papéis que, com maior ou menor êxito, impõe a todos os membros da sociedade.

Encontra-se assim, na concepção moreniana de homem como gênio que se desenvolve a partir da Espontaneidade, a dimensão do indivíduo, e na concepção de homem como membro de um grupo inserido numa coletividade, a sua dimensão social. O ponto de união entre ambas, para Moreno, encontra-se no conceito de Papel: “Todo papel é uma fusão de elementos particulares e coletivos, é composto de duas partes: seus denominadores coletivos e seus diferenciais individuais” (1972b, p.68).

Dessa maneira, como síntese unificadora, o Papel conceito social conecta com a Espontaneidade, de conteúdo individual. Papel e Espontaneidade caminharam juntos desde os primeiros trabalhos de Moreno com seu teatro de improviso. Para Moreno (1983, p.157), “o desempenho de papéis foi à técnica fundamental do teatro espontâneo vienense. Dada a predominância da espontaneidade e da criatividade no desempenho de papéis, este foi chamado ‘desempenho espontâneo-criativo’”.

Moreno, ora define o Papel como função prescrita e assumida pelo indivíduo, ora como a forma real e tangível que o eu assume, passando do plano dramático ao social. Para ele, o Papel ora se refere à uma pessoa imaginária, ora a um modelo para a existência ou a um personagem da realidade social, uma imitação da vida ou uma forma tangível do eu. De acordo com Moreno (1997, p.28), “A função do papel é penetrar no inconsciente, desde o mundo social, para dar-lhe forma e ordem”.

O autor ilumina um aspecto novo e original do Papel: a possibilidade criativa do homem que o assemelha a Deus cujas ações são criadoras e espontâneas. Pierre Weil, em Psicoterapia de

Grupo e Psicodrama reflete sobre a afirmação de Moreno sobre ser Deus. Esclarece que levou

muitos anos para compreender o que ele queria dizer, não podendo admitir que um homem de tal envergadura caísse numa paranóia tão rudimentar e encontra a explicação nas pesquisas feitas

sobre a esfinge e outros textos esotéricos, na Kabbala hebraica e nos textos sobre a tradição indiana e chinesa, que trazem a idéia de que o Microcosmo reproduz o Macrocosmo, que Deus está entre nós e nós estamos em Deus.

Segundo Weil apud Moreno (1959, introdução), “Ser Deus para Moreno significaria, por conseguinte, ser um Microcosmo dentro do Macrocosmo, ou melhor, ter o Macrocosmo em si mesmo”. Essa hipótese foi considerada plausível para o autor, já que Moreno era judeu e conviveu com Martin Buber, da escola hassídica judaica, herdeira dos Kabalistas da Idade Média e como judeu estava impregnado do misticismo judaico, como também, insistia muito numa cosmoterapia, no homem cósmico.

Para Moreno (1992b, pp.14-23), em sua obra As Palavras do Pai assumir-se enquanto homem cósmico exige responsabilidade e nos relata que:

Somos todos unidos pela responsabilidade, sem responsabilidade parcial. E a responsabilidade nos faz criadores do universo... a responsabilidade é o elo que nos une ao cosmos... A essência da nossa existência é a fome de criar, não no sentido intelectual, mas como uma força dinâmica, uma corrente de criatividade. A quintessência desse raio de criatividade é Deus.

Retomando a interpretação de Deus-Moreno trazida por Weil, vejamos uma citação do próprio Moreno (1992a, pp. 25-25):

Vemos que Deus, em pessoa, está presente em todas as lutas do homem, no sentido co- existencial e não somente como uma sombra ou um substituto. Como Deus é inseparável do Universo e o Universo é inseparável de cada homem que vive nele, necessariamente cada homem também é inseparável de Deus... Desse modo, poderemos vir a ser não somente não somente uma parte da criação, mas também uma parte do criador... numa relação dual entre Deus e o homem, uma relação na qual Deus aninha-se no coração do homem e o homem se entrelaça com Deus, o passado infinito atualiza-se e Deus torna-se uma realidade no aqui-e-agora.

O teatro não deixa de ser um ritual e a liturgia tem algo de marcadamente cênico. Ambos acontecem em espaços demarcados, situando os movimentos a serem dados e os envolvidos, de um modo ou de outro, sabem seus Papéis, suas funções, não importando a “verdade” do fato, mas sim o desejo de transfiguração aí presente.