• Nenhum resultado encontrado

Origem dos papéis e o surgimento do eu

CAPÍTULO 2 – SOCIONOMIA

2.1 Sociodinâmica

2.1.5 Origem dos papéis e o surgimento do eu

O desempenho de papéis é anterior ao surgimento do eu. Os papéis não emergem do eu; é o eu quem, todavia, emerge dos papéis. (MORENO, 1997, p.25)

No processo de desenvolvimento do indivíduo, os Papéis surgem no interior da matriz de identidade que, para Moreno, constitui a base psicológica para todos os desempenhos de Papéis e lança os alicerces do primeiro processo de aprendizagem emocional da criança. A matriz de identidade é o universo indiferenciado onde o bebê vive antes e imediatamente após o nascimento. “Essa matriz é existencial e pode ser considerada o locus donde surgem, em fases graduais, o eu e suas ramificações, os papéis. Os papéis são os embriões, os precursores do eu, e esforçam-se por se agrupar e unificar” (1997, p.25).

Moreno distingue três tipos de Papéis: os fisiológicos ou psicossomáticos, os psicológicos ou psicodramáticos e os sociais. Considera-os como “eus” parciais. Postula que entre o Papel sexual, o do indivíduo que dorme, o que sonha e o que come, desenvolvem-se “vínculos operacionais” que os conjugam e integram numa unidade, considerada uma espécie de eu fisiológico, um “eu parcial”, um conglomerado de Papéis fisiológicos.

Do mesmo modo, no decurso do desenvolvimento e história do indivíduo, os Papéis psicodramáticos vão se agrupando, formando uma espécie de “eu social”. O fisiológico, o psicodramático e o social são apenas “eus parciais”. Afirma que o eu inteiro, realmente integrado, de anos posteriores, ainda está longe de ter nascido, sendo necessário que se desenvolvam, gradualmente, vínculos operacionais e de contato entre os conglomerados de Papéis sociais, psicológicos e fisiológicos para se identificar e experimentar, após sua unificação, aquilo que é chamado do “eu”.

No processo de desenvolvimento infantil, os Papéis psicodramáticos auxiliam a criança a experimentar seu corpo (dimensão fisiológico/corporal). Por outro lado, os Papéis psicodramáticos vão proporcionar as condições à criança para experimentar e desenvolver sua

psiquê (dimensão psicológica do eu) e os Papéis sociais, por sua vez, contribuem para produzir o

que se denomina sociedade (dimensão da realidade social). Corpo, psiquê e sociedade são partes intermediárias e integrantes do eu total.

Para Moreno (1997, p.26): “No momento de nascer, no universo inteiro do bebê não há diferenciação entre interno e externo, entre objetos e pessoas, psiquê e meio. A existência é una e total”. São, portanto os Papéis, e através deles, que a criança vai percebendo e descobrindo a si própria e o mundo que a rodeia.

Na primeira fase da matriz de identidade indiferenciada os Papéis que primeiro aparecem, ligados às necessidades e funções vitais, são os psicossomáticos. O conceito de Papel psicossomático, para Moreno, encontra-se vinculado ao de zona, aquecimento, conjunto de determinantes e/ou condições que ocorrem, por exemplo, no ato de mamar, na relação mãe-filho.

Segundo Moreno (1997, p.108), “toda zona é o ponto focal de um dispositivo físico de arranque no processo de aquecimento preparatório de um estado espontâneo de realidade, sendo tal estado ou estados componentes na configuração de um papel”.

Os Papéis psicossomáticos são os primeiros desempenhados pelo ser humano. Definem as marcas gravadas pela ordem vital e constituem os primeiros Papéis a exigir do homem uma colocação frente à sua própria existência. Representam padrões de conduta ou funcionamento na satisfação das necessidades fisiológicas, incluindo aí o modus operandi, o clima afetivo- emocional com que os egos-auxiliares interatuam com a criança no atendimento de suas necessidades.

Para Bustos (1982, p.24):

São os pontos de cristalização (papéis) que estruturam o ego em suas trocas com o meio ambiente. Não há trocas que não sejam produzidas através de papéis... O contato entre papéis ocupa o centro da teoria das relações interpessoais. Cada papel se relaciona com outros papéis complementares de outras pessoas através de vínculos. A existência do reconhecimento do vínculo é fundamental para a saída da matriz de identidade total e indiferenciada.

Na segunda fase da matriz de identidade diferenciada, embora não tenha surgido ainda a diferenciação entre objetos de realidade e imaginários, a criança começa a “imitar” parte daquilo que observa. Moreno denomina tal processo como “adoção infantil de Papéis” que consiste em duas funções: dar Papéis (dador) e receber Papéis (recebedor). Exemplifica com a situação de alimentar: a concessão de Papéis é realizada pelo ego-auxiliar (mãe) e o recebimento de Papéis é feito pelo filho ao receber o alimento. Como resultado de tal interação vai se estabelecendo, gradualmente, certa e recíproca expectativa de Papéis nos parceiros do processo. Esta expectativa

que cria as bases para todo o intercâmbio futuro de Papéis entre a criança e os outros egos- auxiliares.

O primeiro universo termina quando a experiência infantil de um mundo em que tudo que é real começa a se decompor entre fantasia e realidade. Desenvolve-se a construção de imagens e começa a tomar forma a diferenciação entre coisas reais e coisas imaginadas. É o início do segundo universo infantil, marcado pelo surgimento do que Moreno denominou “brecha entre fantasia e realidade”, constituindo a terceira fase da matriz de identidade. Surgem, então, dois processos de aquecimento: um ato de realidade e outro ato de fantasia. Emergem, agora, formas de representar Papéis que põem a criança em relação com pessoas, coisas e metas que ela imagina lhe serem exteriores (Papéis psicodramáticos).

A partir da ruptura entre a realidade e a fantasia surge a diferenciação dos Papéis sociais e psicodramáticos, até então misturados. Com o desenvolvimento desses novos conjuntos de Papéis (os sociais relacionados com o mundo real, os psicodramáticos com o mundo da fantasia), completa-se a terceira fase da matriz de identidade, denominada a da inversão de Papéis onde, primeiro existe a tomada de Papel do outro para, em seguida, ocorrer a inversão concomitante de Papéis, o que acarreta uma transformação total na Sociodinâmica do universo infantil.

Os Papéis psicodramáticos e sociais completam as condições para o surgimento do eu. Os três Papéis definidos por Moreno, desdobrando-se em aglomerados ou “cachos” correspondem aos Papéis precursores do ego, constituindo os “eus parciais” psicossomático, psicodramático e social.

Os Papéis sociais operam, fundamentalmente, a função da realidade mediante interpolações de resistências, não produzidas pela criança, mas que lhe são impostas pelos outros, suas relações, coisas, atos e distâncias no espaço e no tempo. Dessa maneira, através dos Papéis sociais, o indivíduo vai incorporando ou é inserido no mundo da realidade da cultura, dos padrões de conduta, valores, deveres. É o mundo instituído da conserva cultural.

Para Moreno (1997, pp.228-230), o Papel social é assimilado através “do condicionamento, da percepção e da objetivação” de seus estereótipos e de suas possibilidades de experimentação na conserva cultura. Sendo assim, “os papéis sociais são fatores determinantes do caráter cultural das pessoas”.

Sob a perspectiva psicodramática, ser cidadão, como sujeito de direitos, depende de sua capacidade para criar Papéis sociais, adequados ao próprio desejo e à potencialidade de mudança do coletivo.

Em relação à criação de Papéis sociais Kim (2006, p.95) nos fala que:

À medida que o sujeito ultrapassa o seu grau de percepção de um papel já conhecido e transfere sua experimentação para um novo papel ainda não representado, estes ‘papéis semelhantes’ se organizam em ‘cachos de papéis’. A capacidade de diferenciação entre papéis pertencentes ao mesmo ‘cacho’ está diretamente relacionada à sua condição de acesso a diferentes papéis sociais e à diversidade de modelos de identificação social oferecidos pela cultura a qual pertence.

Para Moreno (1997, p.132) “o caráter transformador da ação espontânea é o que garante aos sujeitos sua condição de criador, ou seja, é o que permite as modificações da sua relação com o mundo”. Para o autor o ser humano tem uma reserva de Criatividade, mas para que ocorra a manifestação deste potencial, torna-se necessário haver espaço para a Espontaneidade.

A brecha entre a fantasia e a realidade possibilita ao indivíduo adquirir a capacidade de iniciar processos de aquecimento diferenciados, tanto para o desempenho de um ou de outro tipo de Papel. O fator que vai garantir essa passagem do mundo da fantasia para a realidade e vice- versa é a Espontaneidade como princípio da adequação da ação do indivíduo aos seus próprios Papéis.

O Papel é uma experiência interpessoal, na qual vários atores encontram-se implicados, constituindo-se, ao mesmo tempo, uma interação de estímulos e respostas. Morfologicamente, a noção de Papel aparece veiculando uma complementaridade: o contrapapel, existindo entre ambos uma relação estrutural e de inter-determinação recíproca.

Em cada interação, a todo o momento, o Papel de cada um é, em grande parte, determinado pelo Papel do outro, que lhe dá a réplica. Tudo se processa na interação entre o eu e o tu, o eu e o outro.