• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 2 – SOCIONOMIA

2.3 Sociometria

2.3.1 O conceito de tele

Enquanto Freud se ocupava da repressão na psicodinâmica do indivíduo, Moreno privilegiava a Sociodinâmica subjacente aos grupos. Ele percebia que havia interações que estavam sendo ignoradas e negligenciadas em muitas situações de grupo, as quais acabavam resultando em desarmonia e disfunção. Moreno intuía “linhas” de atração ou repulsão entre as pessoas, que podiam ser desenhadas num Papel como Sociogramas representando o “fluxo de sentimentos” que ele chamou de “Tele”. Nesse sentido, Moreno foi um teórico pioneiro de

“sistemas” ao avaliar que a dinâmica interpessoal pudesse acontecer não apenas nas mentes dos indivíduos envolvidos, mas também, de maneira mais complexa, no espaço ou campo entre eles.

O termo tele foi um termo cunhado por Moreno para descrever o processo que atrai os indivíduos, uns aos outros, ou o que os repele. Isto se refere ao fato de que, em qualquer grupo, cada indivíduo vivencia a atração, a neutralidade, sentimentos ambivalentes, ou repulsão, em relação e a partir de cada uma das outras pessoas. Todavia, tais sentimentos, com freqüência não são registrados conscientemente e ainda mais raramente são discutidos de forma aberta.

O significado do conceito de tele é o que traz essa dinâmica social sutil para a consciência explícita. Segundo Moreno (1983, p.35): “Como o ar, tele está sempre presente; não podemos viver, movimentar-nos, exceto em nossos relacionamentos”. No desenvolvimento do ser humano o fator tele evoluiria gradualmente, desde o nascimento, dando sentido e dimensão realista às relações humanas.

O interesse em investigar mais a fundo a miríade de sentidos atribuída à tele resulta da tradição psicodramática de empregá-la na descrição de interações afetivas entre duas ou mais pessoas. Moreno (1975, p.10) apud Monteiro (2005, p.63) faz a seguinte referência sobre a definição de tele enquanto hipótese inicial.

Nossa hipótese principal era, portanto, a existência do grau com o qual um fator hipotético, tele, opera na formação de agrupamentos, de díades e triângulos até grupos de qualquer tamanho (...). Conclui-se que um fator específico opera aqui, responsável pela coesão do grupo e por suas potencialidades de integração. Observou-se também que aqueles participantes em Sociogramas que produziam um grau maior de coesão na formação de seus grupos do que os demais membros, também mostravam em situações de vida uma taxa de interação maior do que aqueles no Sociograma com menor grau de coesão. A tendência em relação à constância de escolhas e consistência do padrão grupal foi também adscrita à tele.

Moreno escreveu pela primeira vez sobre tele em 1934, no livro sobre Sociometria, Quem

Sobreviverá (1992a). O autor retirou o termo da palavra do grego arcaico usada para designar a

distância. Assim como usamos as palavras para exprimir a ação a distância, também usamos o termo tele para exprimir a unidade mais simples de sentimento transmitida de um indivíduo para outro. Podemos dizer que, se pode vivenciar o tele de forma positiva ou negativa com relação à outra pessoa quando nossos olhos se encontram e nosso sentimento de territorialidade é ofendido quando os outros que parecem “estrangeiros” se aproximam demais ou por outro lado, quando ocorre certo tipo de tele muito positiva, temos vontade de abraçar a outra pessoa.

O conceito de tele foi concebido enquanto o autor fazia experimentos dramáticos com grupos de teatro espontâneo, referenciando-o enquanto:

Fundamento de todas as relações interpessoais e elemento essencial de todo método eficaz de psicoterapia. Repousa no sentimento e reconhecimento reais das outras pessoas. Ocasionalmente pode nascer de uma relação transferencial, mas ocorre desde o primeiro encontro e tende a crescer de um encontro para outro (MORENO, 1974, p. 45).

O tele é uma extensão das tendências inatas dos organismos para exibir uma seletividade. Moreno aludiu a um tipo primordial de processo preferencial, mesmo no nível inorgânico, como no processo de magnetismo, que leva elétrons e prótons a atrair um ao outro e a repelir os de sua espécie, correspondendo a um cimento relacional que inclui os indivíduos de um grupo, conforme os critérios determinados pelos participantes no processo de viabilização das relações interpessoais.

Martin (1996, p.195) considera o conceito de tele central para o projeto socionômico, expressando relevância na compreensão de encontros e desencontros entre os indivíduos e afirma que “seu primeiro ponto de apoio era a possibilidade de fazer de cada homem um ser criador. Para explicar a Criatividade constante do homem, Moreno empregou o termo Espontaneidade. Para explicar a relação entre os homens, Moreno cunhou o termo fator tele... o segundo grande eixo de sua teoria”.

Nos sistemas biológicos, mesmo os animais unicelulares mais primitivos exibirão uma seletividade em relação às substâncias que ingerem aos meios dos quais se aproximam ou se afastam. Os animais mais desenvolvidos adquirem uma capacidade de discriminação na maior parte de suas funções vitais: para comer, na escolha de um parceiro, para brincar. Nas espécies mais sociais, essa seletividade exibe uma maior complexidade nas questões territoriais, no instinto gregário e nos padrões de dominância e de submissão.

Os seres humanos também exibem esses padrões, e, devido à complexidade do sistema nervoso, nossas espécies sobrepõem esses instintos a elaborados sistemas de associações, símbolos, imagens e emoções. Os aspectos imagéticos dos processos instintuais consistem à essência do que Carl G. Jung chamou de “arquétipos” e, nesse sentido, a tele pode ser considerada como uma função psicológica operando num nível fundamental e isso se aplica a todos os tipos de atividades. O tele é uma extensão disso. Assim como o homem tem uma

contínua aversão-afeto de sentimento biológico dentro de si, ele também tem um fluxo, afeição ou rejeição entre si e os demais, sejam eles pessoas ou grupos.

A dinâmica pessoal relativa à reciprocidade positiva ou negativa entre as pessoas faz do fenômeno do tele algo mais complexo do que uma mera preferência. A reciprocidade, um componente do tele, reflete a capacidade humana de perceber ou imaginar como os outros se sentem sobre a relação e o senso de um sentimento recíproco tende a intensificar aquele sentimento, seja ele de atração ou de repulsa.

Moreno em sua obra O teatro da Espontaneidade apud Perazzo (1994, p.107) faz referência ao conceito de tele frente à força dramática da cena:

Existem atores, conectados entre si por uma reciprocidade invisível de sentimentos, que possuem uma espécie de sensibilidade superdesenvolvida para com os seus processos internos mútuos. Basta um gesto, e às vezes nem precisam se olhar; são telepatas em relação uns aos outros. Comunicam-se por meio de um novo sentido, como por uma compreensão intermediária.

O funcionamento mental inclui mais do que cognição que envolve atividades tais como a perceber, o coordenar, o pensar, o rememorar, o simbolizar e o acreditar. Existe também uma categoria chamada “conação”, que compreende atividades tais como o querer, o desejar, o motivar, o intencionar e o preferir. A conação está mais intimamente associada aos afetos e sentimentos e os processos conativos emergem mais precocemente no desenvolvimento do que os cognitivos.

O tele é primariamente uma extensão dessa função conativa. Na medida em que o indivíduo amadurece, a tele começa a incluir uma proporção de processamento cognitivo. Para que o tele encontre reciprocidade, um indivíduo deve ser capaz de avaliar as qualidades reais da outra pessoa e a isso se chama de “sensibilidade télica”.

À noção de átomo social alia-se a lei de gravitação social, segundo a qual a humanidade se instala e se distribui no espaço. Para Moreno a lei da gravitação social é válida para toda espécie de agrupamento, sejam quais forem seus membros. Dentro desse conceito surge o de tele, forma mais elementar de comunicação, o fenômeno mais geral, subjacente a todas as relações sociais.

Para Kim (2006, p.90), “a tele e a transferência são fenômenos interpessoais que podem ser observados, explicados e analisados através dos vínculos afetivos estabelecidos na inter- relação social entre dois ou mais sujeitos”.

Ainda para a autora (2006, p.96), o termo tele é muito semelhante ao de empatia e traz a seguinte descrição:

O psicólogo alemão Lipps propôs em 1901 o termo Einfühlung (compare com

Zweifühlung, que eu traduziria por ‘sentir a dois’ ou ‘afetividade recíproca’) ao qual o

psicólogo inglês Titchener propôs traduzir o termo para o inglês por empathy; o psicólogo americano Dymond (1949) ampliou e definiu como: ‘a transposição imaginária de alguém para o pensamento, sentimento e ação do outro’. Contudo, quando se fala em empatia no processo terapêutico, a referência é da empatia do terapeuta para o paciente. Ao passo que na tele, a empatia seria recíproca: de um para o outro e vice- versa. Além disso, a tele, além da empatia, inclui a intuição.

Soeiro (1995, p.22) traz a contraposição entre o conceito de transferência da psicanálise e o conceito de tele de Moreno:

Na transferência, o paciente desloca para o terapeuta certos sentimentos que já vivenciou em outras situações, como por exemplo, com figuras de autoridade retratadas pelo pai, mãe, etc. Para Moreno o que o paciente sente em relação ao terapeuta é a sensação de duas pessoas que se encontram e não necessariamente um processo repetido da infância. Assim, tele é a capacidade de o indivíduo perceber a outra pessoa sem distorções. A transferência é uma patologia da tele. O normal é o indivíduo ter tele, perceber o mais objetivamente possível a outra pessoa com quem está se relacionando. No Psicodrama o que se deve conseguir é uma boa relação télica e não transferencial.

Monteiro (2005) faz uma ressalva em relação à correlação e à diferenciação entre os conceitos de tele, empatia e transferência.

Tele: sentimento duplo, aludido à bidirecionalidade, onde os participantes do processo

télico sentem-se mutuamente compreendidos, olhados com os próprios olhos.

Empatia e Transferência: sentido único, referindo-se tradicionalmente a uma psicodinâmica individual, podem interferir no relacionamento, mas dependem de uma só pessoa para ocorrer.

Empatia: representação concreta de um estado mental de outrem incluindo a qualidade

Esse conceito foi utilizado, sobretudo nos Estados Unidos, desde 1935 pelos psicólogos sociais, sociólogos, psiquiatras e psicanalistas. Na verdade ele é originário da eifühlung do filósofo alemão T. Lipps (1815-1914). Segundo ele, só pode compreender o outro, em sua sensibilidade profunda, aquele que é atingido pelo que descobre no outro. É na interação dos afetos que reside o laço da troca empática. Para tanto, é preciso que o indivíduo possa descentrar-se, isto é, tomar distância com relação a si mesmo.

Transferência: essencial para o processo psicanalítico, sofre uma série de transformações

ao longo de sua existência, conforme a releitura de seus discípulos. Designa a transposição, o deslocamento para outra pessoa, principalmente do paciente para o analista. Vale ressaltar que o conceito de transferência foi sofrendo releituras não só conforme os seus discípulos, mas também, para os próprios discípulos.

Para Sigmund Freud: os fenômenos de transferências ocorrem de forma natural na vida

de toda e qualquer pessoa, em especial na vida amorosa. Para Freud, a psicanálise não cria a transferência, mas a descobre para a consciência e dela se apodera para dirigir os processos psíquicos de acordo com o objetivo desejado.

Para Melanie Klein: o fenômeno da transferência surge naturalmente, no início da vida do

ser humano e é de extrema relevância para o seu desenvolvimento afetivo, exerce papel fundamental na transformação das identificações projetivas em capacidade de diferenciação do mundo interno e realidade externa, auxiliando na formação da identidade.

Para David Woods Winnicott: transferência enquanto repetição do vínculo materno. Para Jacques Lacan: o analisando atribui ao analista poder e o instala no lugar do suposto

saber.

Para Jung: o fenômeno de transferência está também na base de todo vínculo e que a

própria personalidade do analista contribui para o processo analítico, sendo mútua a transformação do analista e do paciente.

Para Moreno: considera que os aspectos da transferência ficcionais e distorcidos,

demasiadamente enfatizados na Psicanálise, e que os aspectos da realidade, do encontro, que têm lugar no aqui-agora, foram vistos superficialmente (RAMALHO, 2006).

Moreno apud Kellerman (1998, p.115) afirma que:

Simultaneamente ao fato de o paciente deslocar, inconscientemente, suas fantasias sobre o terapeuta, ocorre um outro processo ativo. Uma parte do ser do paciente não regride, intuitivamente, o terapeuta tal como este é realmente, no presente. Mesmo que não se mostre tão forte ao início da terapia, a transferência diminui e é substituída por esta percepção verdadeira.

Para Moreno, após a dissipação da transferência, continuam operando certas condições tele, dessa maneira, nem a transferência nem a empatia podem explicar de maneira satisfatória a coesão que se revela em reciprocidade nas psicoterapias.

De acordo com a Enciclopédia Mirador Internacional (1976, verbete):

A dinâmica do tele revela-se através do processo de “transferência” e pela “empatia”. Empatia é um fenômeno psicológico: o sentimento que um indivíduo projeta no mundo interior do outro. Paralelamente à teoria de empatia, Freud elaborou o conceito de transferência, projeção inconsciente de experiências imaginárias de alguém. Do tele, derivam a empatia e a transferência.

Para Bustos (1979b, p.18-68):

Tanto o fator tele como o de transferência são passíveis de bilateralidade, cujos limites entre ambos não são nítidos, assim, o fator tele é a empatia em dupla direção, sentida em reciprocidade, não um simples ‘sentir-se com o outro’... se nos encontrarmos no mesmo sinal e nos reconhecermos, o fator tele está em ação.

O procedimento usado para se estabelecer o tele é o Teste Sociométrico.