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POR UM ESCLARECIMENTO DOS CONCEITOS

2.2 CONCEITUACÃO HEGEMÔNICA DA SOCIEDADE CIVIL

N a nossa opinião, existiria uma definição hegemônica sobre a sociedade civil e do seu correlato necessário, os movimentos sociais, na que misturar-se-iam elementos morais, valorativos e normativos. Sociedade civil referir-se-ia a um âmbito público, mas não estatal, composto por organizações sociais voluntárias e sem fins lucrativos nem interesse

corporativo (Novos Movimentos Sociais^'^), as quais garantiriam ou tentariam garantir a cidadania, entendida está, como consenso na procura do bem comum, ou como, acordo sobre as necessidades e objetivos adequados para a sociedade em conjunto. Instituições sociais como o empresariado, os partidos políticos, os sindicatos, as igrejas, os meios de comunicação e outras, ficariam necessariamente fora de dita conceituação.

Dentro da definição anterior, haveria uma variedade de interpretações, mas todas elas compartilhando e partindo da cidadania como o seu pressuposto fundamental, garantida e desenvolvida pelos novos movimentos sociais. Sobre a cidadania teríamos várias definições dela, algumas laxas, bem perto de Aristóteles; “A cidadania é aquele estatus que se

concede aos membros de pleno direito de uma comunidade"' (Marshall 1998:37); ou um

pouco mais desenvolvidas, que concordam com a de liberais como Ralph Darendorf:

“La ciudadania es un estado civil (status civitatis) en el que se implican elementos jurídicos, políticos y morales. Sirve en general para identificar a aquellos miembros de una comunidad política o Estado que han de estar protegidos por las instituciones y aí mismo tíempo

dispuestos a contribuir por ellas” (Bilbeny 1996:116).

Outras, ligam a definição de cidadania à mudança societária, mas na mesma linha, como Donati:

“Em poucas palavras, do mesmo modo que a sociedade civil da primeira modernidade tem sido associada com a figura do mercado, na segunda modernidade (ou pós-modernidade se preferir) a sociedade civil poderá se compreender em relação à figura do Terceiro Setor. ”

(1997:131).

Definindo-o assim:

“De um modo sintético, a sociedade representa-se como um sistema composto por quatro subsistemas ou polaridades: a economia (mercado), as instituições político-administrativas (o Estado e as suas articulações), o Terceiro Setor (as organizações de solidariedade social) e os setores informais [quarto setor] (a família, os parentes, os vizinhos; as redes de amigos)” (Donati 1997:117).

As primeiras definições estão ligadas à relação do indivíduo-cidadão, com o Estado que garantirá as suas liberdades, e com a própria sobrevivência da sociedade com base em uma ordem legal legítima. Porém, a última vai-se afastar do Estado como responsável dos direitos e deslocando-se para o âmbito dos NMS colocará uma nuança normativa, um dever

ser, sendo esta opção hegemônica hoje.

Habermas enquadrado na segunda opção, julga existir por cima do asepticismo aristotélico, um valor a mais, uma questão ligada à procura do bem comum, no lugar do

bem individual que norteia os liberais. Para ele, a sociedade civil seria um âmbito de decisão moral. O autor alemão realizou uma boa definição dos novos movimentos sociais e dos seus interesses e objetivos em uma versão resumida da sua obra “Teoria da ação comunicativa”, segundo a qual;

“The new social movements are the seam between the system and life world and are symptomatic o f the waning o f evidence o f the old value standards reflected in the concepts o f natural law, economic laws, rational man, etc. They mark new conflicts, which no longer arise in the areas o f material reproduction; they are no longer channelled through parties and organizations; and they can no longer alleviated by compensations that conform the system. Rather, the new conflicts arise in areas o f cultural reproduction, social integration and socialisation. They are manifested in sub-institutional, extra-parliamentary forms o f protest... In short, the new conflicts are no sparked by problems o f distribution, but concern

the grammar offorms o f life ’ (1981:34).

Habermas já insere-se nitidamente nas novas correntes pós-materialistas tendentes a ver a sociedade civil e os novos movimentos sociais como novos eixos da sociedade (Habermas 1987;431-434). Partindo de uma teoria dualista, separa o âmbito instrumental, contraditório, e o simbólico, consensual. A burocracia e a economia mercantil seriam passos necessários para a modernização, mas não só necessários quanto positivos. Apenas seriam patológicos quando afetarem á outra esfera, quando dinheiro e poder entram no “mundo da comunicação”. O raciocínio de Habermas remete a uma visão dualista, não dialética, que tem a ver com o welfare state, o qual teria apagado o conflito de classes no mundo ocidental. Um exemplo seria que os novos conflitos têm a ver com a parte simbólica e não com o mundo do trabalho.

A idéia norteadora de Habermas, não isenta de boas intenções, é a mesma do ideário liberal clássico, na qual;

“(...) as esferas de ação formalmente organizadas do burguês (a economia e o aparelho do Estado) constituem as bases para o mundo vivido pós-tradicional de um homem (esfera privada) e de um cidadão (espaço público) (Habermas 1987:362) ”.

Vai ser nos NMS onde encontrar-se-iam as possibilidades de mudança societária na procura de maiores liberdades e justiça, e vai ser no campo da cultura e da identidade onde surgirão as novas lutas e conflitos, já não mais no âmbito material ou do trabalho.

Por exemplo, outros autores como Ilse Scherer-Warren, falam da sociedade civil como um âmbito público não estatal, composto pelos movimentos sociais. Estes compartilham caraterísticas comuns no que diz respeito á cultura política, á natureza cívica e pacífica, á descentralização e a autonomia, á tolerância pluralista fundada na diversidade cultural e

humana, e também outros elementos como a paz com justiça social, o respeito à natureza e a democracia mais participativa e direta. Os movimentos sociais seriam os lugares de libertação na atual sociedade. A autora diz que é preciso estudar as relações entre os movimentos sociais e o Estado, tendo que considerar as novas concepções sobre o espaço do poder civil perante o Estado (Scherer 1993:24).

Em uma definição usada durante um estudo sobre a situação da sociedade civil na Espanha, parte-se do pensamento segundo o qual, carateristica fundadora da sociedade civil é o pluralismo, cristalizado no fenômeno associativo:

“O ideal pluralista jundamenta-se na existência de associações voluntárias definidas, essencialmente, como cooperação voluntária de pessoas que perseguem um certo interesse comum de maneira estável e duradoira. De acordo com esse ideal a sociedade pluralista é aquela que articulada através destas associações, está governada por uma política essencialmente ‘instrumental’ de perfil baixo, que permite aos seus membros a satis fiação tanto do objetivo cooperativo, quanto do competitivo e serve alem disso para estabelecer a sua concepção comum de justiça. A sociedade civil representa a sua realização histórica na forma de um conjunto de instituições não governamentais o suficientemente forte como para contrapesar ao Estado e, embora não impeça ao estado cumprir a sua fimção de manter a paz e de arbitrar os interesses jundamentais, possa evitar que domine e atomice ao resto da sociedade “(Subirats 1999:22).

Segundo estes autores, ter-se-ia produzido um deslocamento do eixo central da sociedade, desde o âmbito ligado ao trabalho e ao Estado, para a sociedade civil dos novos movimentos sociais. As novas correntes e análises sociológicas, históricas, ou antropológicas, apenas chamam de novos movimentos sociais, se referendo àqueles que agem livres (supostamente) de qualquer interesse econômico, político, ou ideológico, exceto o fato de tentar desenvolver uma sociedade mais justa e solidária. Segundo Touraine:

“Só existe um movimento social quando a ação coletiva é dotada de objetivos sociais, quer dizer, reconhece a existência de valores e interesses sociais gerais e, em conseqüência, não reduz a vida política a um confronto entre campos ou classes, ainda que organize e acirre conflitos ".

Ampliando a idéia, afirma que os movimentos sociais mais íntegros (puros e verdadeiros?) são aqueles que se formam em sociedades democráticas de maneira espontânea, individual, como atores sociais cônscios? (1994:88). E conclui achando os Novos Movimentos Sociais, criadores de uma nova sociedade civil desde o espaço público da sociedade pós-industrial:

“Reivindicando o autocontrole e autogestão em seu próprio nome, os movimentos sociais criam as bases para uma sociedade civil reflexiva^^, antiessencialista, contingente e totalmente voltada para o ator" (em Alexander 1998:21, comentando Touraine 1984:233-

34).

Mesmo autores críticos, como o Alexander (1998), com a mera substituição de uma idéia materialista dos movimentos sociais como elementos revolucionários, por outra identitária, relacional e comunitária, partilham uma visão moral, positiva e otimista, dos conceitos^^. Alexander apresenta um modelo concordante com as idéias positivas sobre a sociedade civil, como âmbito moral onde os indivíduos auto defendem-se e criam as suas próprias identidades em face ao Estado e ao âmbito mercantil-privado:

“A função da sociedade civil não é produzir riqueza ou poder, salvação, amor ou verdade, mas criar e manter uma comunidade cujas fronteiras incluem esses domínios institucionais, que definem a sociedade como tal. Ser membro de uma sociedade civil é participar da ampla e inclusiva solidariedade do ‘individualismo institucionalizado’ que proclama todos os homens e mulheres irmãos e irmãs, que cria deveres coletivos apesar de assegurar direitos individuais, e que provê a participação política e distribuição de bens sociais altamente valorizados'' (Alexander 1998:24).

Resumindo estas teorias, os movimentos sociais dividir-se-iam de maneira maniqueísta entre os verdadeiros e bons que cumpririam os preceitos anteriores, e os que pelo fato de não procurarem o “bem comum”, nem chegam a serem movimentos sociais. Cohen e Arato são bem claros limitando o conceito de sociedade civil aos grupos e movimentos da sociedade que se colocam fms o mais generalizáveis possível, ou seja que seriam aceitos pela coletividade, ou seja, que contariam com o consenso social. Esta opinião é colocada como unívoca, e aceita socialmente (1992, e 1994).

Porém, mesmo sendo a primeira a opção hegemônica, não existe consenso absoluto sobre quais são novos movimentos sociais e quais ficam atrelados aos velhos deixando, então, de ser analisados ou desaparecendo do Parnaso da ação social. Atualmente o qualificativo de NMS (ou organizações do terceiro setor, ou ONG, sinônimo mais popular), seria um requisito indispensável para receber ajudas públicas e privadas e para obter o reconhecimento e garantia de modernidade, ou pós-modemidade. Aconteceria como no

Touraine usa neste trecho, o discxu^o do Ulrich Beck (1997:12-21) sobre a auto-reflexividade.

Alexander contesta toda a tradição sociológica que explicou de modo materialista ou classista os movimentos sociais, saüentando a parte subjetiva, o papei individual da pessoa no movimento e na própria ação: “Quando a secularização do modelo clássico convergiu para fenômenos de nível mais micro, ignorou

as dimensões morais e afetivas da ação coletiva, enfatizando em seu lugar as limitações decorrentes da existência de redes interligadas e da disponibilidade de organizações" (1998:7-8) Critica fortemente a visão

instrumentalista dos movimentos sociais, onde os elementos e temas simbólicos são tratados como ferra^^ntas que as orgaiiizações podem usar ou abandonar a bel-prazer (Alexander 1998:9).

mundo econômico, onde os governos que querem receber investimentos das grandes bolsas, dos poderes financeiros e do capital especulativo mundial, precisam cumprir os preceitos do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional. Para ser participante da nova Sociedade Civil precisar-se-ia colaborar ou fundar alguma ONG, ser voluntário e assim por diante^^.

Curiosamente os conceitos sociedade civil e Movimentos Sociais mudaram e evoluíram com o decorrer do tempo, nomeando elementos diferentes e às vezes antagônicos ao longo da história, como tentaremos apresentar nas páginas seguintes. Dito uso contraditório poder-nos-ia levar a uma discussão muito esquisita sobre a essência do termo, na qual iam concorrer, - pela definição mais exata e verdadeira -, neoliberais, socialistas, comunistas, adaís da terceira via, ambientalistas, relativistas e feministas radicais, entre outros (Pedrueza, 1999:9). Portanto, procuremos desentranhar a história dos termos para, depois de mostrar a diversidade de acepções, propor uma saída para esta encrenca.