• Nenhum resultado encontrado

3 TIMELINE: NA HISTORICIDADE DAS CONCEPÇÕES TEÓRICAS

3.1 A concepção dialógica de linguagem

Ao retomar o percurso histórico dos estudos sobre a linguagem, tendo como referencial as reflexões do Círculo de Bakhtin (2017, 2003, 2015), é possível afirmar que há uma coerência no conjunto dos textos no que concerne as suas concepções de língua/linguagem. Para fundar as bases de sua concepção de linguagem como interação, Volóchinov discorre sobre duas tendências que se debruçavam sobre o modo de funcionamento da linguagem: o subjetivismo individualista e o objetivismo abstrato.

Para Volóchinov (2017), a língua pode ser pensada como representação do pensamento (subjetivismo individualista). Nessa perspectiva, o sujeito é compreendido como um ser psicológico, individual, monológico e sujeito absoluto de seu dizer e o texto por ele produzido considerado um produto lógico do pensamento no qual caberia ao leitor unicamente a “captação” essa representação mental. Esse leitor é passivo na leitura que, por sua vez, é concebida como atividade de captação das ideias, sem considerar, para tanto, as experiências e os conhecimentos do leitor. Nessa concepção, o foco recai sobre o autor e suas intenções somente. Tal concepção poderia ser sintetizada pela famosa indagação usada recorrentemente pelos professores do Ensino Básico durante minha vida escolar “O que o autor quis dizer?”. Logo, a linguagem, aqui, é concebida com expressão do pensamento de um sujeito monológico que, nessa visão, confirma a máxima se o sujeito “pensa bem, se expressa bem”. Essa primeira tendência considera o ato discursivo individual como fundamento da língua, assim

[...] o psiquismo individual representa a fonte da língua. As leis da criação linguística – uma vez que a língua é formação e criação ininterrupta – na verdade são leis individuais e psicológicas; são elas

que devem ser estudadas pelo linguista e pelo filósofo da linguagem. Elucidar um fenômeno linguístico significa reduzi-lo a um ato individual e criativo consciente (muitas vezes até inteligente.). No trabalho de linguista, todo o restante possui apenas um caráter prévio, de constatação e de classificação, apenas prepara a verdadeira explicação do fenômeno linguístico a partir do ato individual e criativo que serve para objetivos práticos de ensinar uma língua pronta (VOLÓCHINOV, 2017, p. 148).

Contrapondo essa visão, o Círculo de Bakhtin considera que o homem necessita do outro para a aquisição da linguagem e, para tanto, é inconcebível pensar esse sujeito isolado do mundo e das interações sociais, sendo essas mediadas por signos:

O que o idealismo e o psicologismo ignoram é que a própria compreensão pode ser realizada apenas em algum material sígnico (por exemplo o discurso interior) eles desconsideram que o signo se opõe a outro signo e que a própria consciência pode se realizar e se tornar um fato efetivo apenas encarnada em um material sígnico (VOLÓCHINOV, 2017, p. 95).

Pode-se fazer um paralelo, mutatis mutandis, dessa concepção (subjetivismo individualista) com a abordagem inatista-maturacionista, pois, segundo essa teoria, o indivíduo já possuía dentro de si todo o conhecimento advindo dos seus pais, inclusive a linguagem. Segundo essa vertente, o que acontece é um “desabrochar”, um despertar de algo que já lhe é intrínseco. Logo, cabe ao indivíduo apenas despertá-la com o passar do tempo. Contudo, a validade dessa concepção pode ser facilmente contestada com o caso conhecido das meninas-lobo (Amala e Kamala) que, ao serem criadas por lobos, não desenvolveram a linguagem verbal, tendo em vista que não estava em interação com outros humanos, em lugar da linguagem inerente a sua espécie, elas desenvolveram uma outra forma de comunicação.

Em uma outra perspectiva, pensou-se a língua como estrutura, como código, como instrumento de comunicação. Tal tendência foi nomeada por Volóchinov (2017) como objetivismo abstrato e tinha como seu principal representante Ferdinand Saussure. Nesse sentido, enquanto para a primeira tendência o centro organizador da linguagem era o psicologismo individual, para o objetivismo abstrato o foco recai sobre o sistema linguístico como bem elucida Volóchinov quando diz que

O sistema organizador de todos os fenômenos linguísticos, que os transforma em objeto específico da língua, é transferido pela segunda tendência para um elemento bem diferente: o sistema linguístico, compreendido como sistema de formas linguísticas fonéticas, gramaticais e lexicais (VOLÓCHINOV, 2017, p. 155).

Assim, o texto era visto como produto da codificação de um autor/emissor a ser decodificado por um receptor (leitor/ouvinte). Para isso, bastava o receptor ter conhecimento do código utilizado. A leitura é concebida como uma atividade que exige do leitor o foco no texto, na sua linearidade, no sentido das palavras e das estruturas do texto. A leitura era uma atividade de reconhecimento, de reprodução meramente.

Compreender a linguagem como interação, como atividade dialógica, na qual o sujeito é compreendido como ator/construtor social, é a contribuição do Círculo de Bakhtin. O sujeito ativo dialogicamente se constrói e é construído nas atividades de linguagem. Nessas atividades, o funcionamento sígnico se dá ideologicamente. Refratar e refletir são as características inerentes do signo que não se limita apenas ao material linguístico, mas engloba qualquer corpo físico que pode ser percebido como a imagem de algo. Dessa forma, para além dos fenômenos “naturais”, dos objetos tecnológicos e dos objetos de consumo, existe um mundo singularmente construído que é o mundo dos signos.

Qualquer signo ideológico é não apenas um reflexo, uma sobra da realidade, mas também uma parte material dessa mesma realidade. Qualquer fenômeno ideológico sígnico é dado em algum material: no som, na massa física, na cor, no movimento do corpo e assim por diante. Nesse sentido, a realidade do signo é bastante objetiva e submete-se unicamente ao método monista de estudo objetivo. O signo é um fenômeno do mundo externo. Tanto ele mesmo, quanto todos os efeitos por ele produzidos, ou seja, aquelas reações, aqueles movimentos e aqueles novos signos que ele gera no meio social circundante, ocorrem na experiência externa (VOLÓCHINOV, 2017, p. 94).

Dada a citação, é possível inferir que a concepção de signo e de seu funcionamento ideológico para o Círculo de Bakhtin inclui todos os sistemas semióticos não se restringindo ao material verbal. Desse modo, o texto é visto como o lugar da interação e da constituição de sujeitos. O texto materializa contextos, pontos de vista, discursos e se relaciona retrospectivamente e antecipadamente com

outros textos. A leitura é concebida como uma atividade interativa complexa de construção de sentidos e, como tal, exige que o leitor acione conhecimentos linguísticos e mobilize, também, seu conhecimento de mundo e um vasto conjunto de saberes concernentes ao evento de comunicação.

Além disso, qualquer que seja o material sígnico este será acompanhado pela refração ideológica da palavra uma vez que ela está presente em todo ato de compreensão e em todo ato de interpretação. Vale ressaltar as particularidades da palavra que, segundo Volóchinov (2017), são: i) pureza sígnica; ii) caráter ideológico neutro; iii) participação na comunicação cotidiana; iv) ser palavra interior; v) presença obrigatória como fenômeno concomitante em qualquer ato ideológico consciente. Essa concepção de linguagem e de seu funcionamento Volóchinov nomeou de uma

filosofia do signo ideológico.

Na perspectiva do Círculo, a linguagem constitui sujeitos e é constituída por sujeitos ideologicamente situados, pois

O domínio do ideológico coincide com o domínio dos signos: são mutuamente correspondentes. Ali onde o signo se encontra, encontra- se também o ideológico. Tudo que é ideológico possui um valor semiótico.” (VOLÓCHINOV, 2017, p. 30)

A essas concepções, anteriormente enfocadas, Volóchinov (2017), nomeou-as de subjetivismo individualista, de objetivismo abstrato e de linguagem como interação. Para o Círculo de Bakhtin, a realidade da linguagem não estaria nem no sujeito monológico nem no sistema linguístico somente, mas nos enunciados concretos socioculturalmente construídos nas mais diversas interações em diferentes esferas da atividade humana.

Na concepção de linguagem como interação, cada texto se constitui com um sistema universalmente aceito de signos, uma linguagem. Assim, Volóchinov (2017) afirma que o centro organizador e formador da expressão verbal não é o interior, mas o exterior. Não é a vivência que organiza a linguagem e sua expressão, mas, ao contrário, a expressão organiza a vivência, definindo-lhe a forma e sua direção. A palavra, nesse sentido, sempre é orientada para o outro, para o interlocutor, para quem é esse interlocutor (seu lugar social, sua posição se superior ou inferior, se é íntimo ou não). Isso porque o interlocutor não é algo abstrato, uma forma gramatical, como bem afirma Volóchinov:

O mundo interior e o pensamento de todo indivíduo possuem seu auditório social estável, e, nesse ambiente se formam os seus argumentos interiores, motivos interiores, avaliações etc. Quanto mais culto for um indivíduo, tanto mais o seu auditório se aproximará do auditório médio da criação ideológica, mas, em todo caso, o interlocutor ideal não é capaz de ultrapassar os limites de uma determinada classe e época (VOLÓCHINOV, 2017, p. 205).

De outro modo, pode-se afirmar que pensar a linguagem como interação é conceber que a palavra sempre tem um direcionamento para o outro. A palavra é um ato bilateral (VOLÓCHINOV, 2017). Ela se determina tanto por aquele de quem ela procede quanto pelo outro a quem se destina, pois é produto concreto das inter- relações do falante com o ouvinte. Em sendo assim, entre sujeitos socialmente organizados são trocados enunciados concretos, plenos e direcionados. A situação social mais próxima e o ambiente social mais amplo determinam, segundo Volóchinov (2017), a estrutura do enunciado.

Por conseguinte, a consciência se forma e se realiza no material semiótico criado no processo de interação de uma comunidade organizada. Assumimos, neste trabalho, essa concepção de linguagem como interação que se materializa em enunciados plenos e que nos orienta para compreender as postagens nas páginas que investigamos como enunciados concretos produzidos por sujeitos históricos que postam, comentam, posicionam-se na rede digital Facebook. Sobre a concepção de enunciado concreto, na perspectiva dialógica de linguagem, nos deteremos na próxima seção deste trabalho.