• Nenhum resultado encontrado

3 TIMELINE: NA HISTORICIDADE DAS CONCEPÇÕES TEÓRICAS

3.2 O enunciado concreto em perspectiva dialógica

Para Bakhtin (2016), enunciado e enunciação não são categorias distintas. Enunciados plenos possuem autoria, que responde pelo texto, é sempre direcionado a um outro e sempre tem um acabamento, uma conclusibilidade possível. Bakhtin (2016) pensa a linguagem na vida, o sujeito encarnado, a concretude que está na linguagem que nos faz humanos. Só a linguagem verbal permite a construção do passado e do futuro. Para ele, não há o sujeito isolado no mundo, todos nós aprendemos com o outro mesmo que este outro não esteja de corpo presente, ele se

apresenta por meio de enunciados concretos na modalidade escrita ou em qualquer outra. A linguagem se presenta como atividade e não como sistema já nos primeiros textos do Círculo, nos quais o enunciado é entendido como ato singular, irrepetível, concretamente situado e emergindo de uma atitude responsiva e valorativa. Assim:

No tocante aos enunciados reais e aos falantes reais, o sistema da língua é de índole meramente potencial. E o significado da palavra, uma vez que é estudado por via linguística (a semiologia linguística), só é definido com o auxílio de outras palavras da mesma língua (ou de outra língua) e nas suas relações com elas; só no enunciado e através do enunciado tal significado chega a relação com o conceito ou imagem artística ou com a realidade concreta (BAKHTIN, 2016, p. 93).

Bakhtin (2016) afirma, em seus postulados, que nós lidamos sempre com a voz alheia, que não há um ser adâmico nomeando o mundo pela primeira vez, que o sujeito nasce, cresce e morre no processo de interação social. Não há emissor e receptor, mas sim, interlocutores, pois há alternância de sujeitos. Nessa concepção de linguagem, todo enunciado é direcionado a alguém e o outro é o nosso horizonte. Logo, o segundo polo do texto não é uma mera abstração linguística, o enunciado tem natureza concreta, plena, viva, nos mais diversos campos da atividade humana e da vida é uma unidade real da comunicação discursiva e o discurso, nessa perspectiva, só existe de fato na forma de enunciados concretos de determinados falantes, sujeitos de discurso. Bakhtin (2016) afirma que

O enunciado nunca é apenas um reflexo, uma expressão de algo já existente fora dele, dado e acabado. Ele sempre cria algo que não existia antes dele, absolutamente novo e singular e que, ademais, tem relação com o valor (com a verdade, com a bondade, com a beleza etc.) (BAKHTIN, 2016, p. 95).

Assim, a palavra viva não conhece um objeto como algo totalmente dado, falar sobre tal objeto é assumir uma atitude, um posicionamento. A palavra, para o Círculo é sempre carregada de valores, e o valor é o axiológico, o ideológico. As palavras/signos, nessa concepção, refletem e refratam o mundo. A refração significa que não apenas se descreve o mundo com signos, mas se constroem diversas interpretações desse mundo a partir de diversos horizontes apreciativos dos grupos humanos. Desse modo,

O enunciado pleno já não é uma unidade da língua (nem uma unidade do ‘fluxo da língua’ ou ‘cadeia da fala’), mas uma unidade da comunicação discursiva, que não tem significado, mas sentido. (Isto é, um sentido pleno, realizado com o valor – com a verdade, a beleza, etc. – e que quer uma compreensão responsiva que inclua em si o juízo de valor.) (BAKHTIN, 2016, p.103).

No que concerne à compreensão do enunciado, essa implica um horizonte espacial comum dos interlocutores, o conhecimento e a compreensão comum da situação, a avaliação comum e o seu direcionamento. A compreensão do enunciado implica sempre resposta. Toda compreensão da fala viva, do enunciado vivo, é de natureza ativamente responsiva (que possui graus diversos); toda compreensão é prenhe de resposta, seja concordando, discordando, completando, aplicando entre outras. A linguagem se concretiza em uma cadeia dialógica de enunciados, conforme Bakhtin assevera

No entanto, nunca podemos identificar a língua e comunicação discursiva (como intercâmbio dialógico de enunciados). É possível uma identidade absoluta entre duas e mais orações (sobrepostas uma à outra, como duas figuras geométricas, elas irão coincidir), além disso, devemos admitir que qualquer oração, mesmo a mais complexa, no fluxo ilimitado da fala pode repetir-se um número ilimitado de vezes em forma absolutamente idêntica, mas como anunciado (ou parte do enunciado) nenhuma oração, mesmo a de uma só palavra, jamais pode se repetir: é sempre o novo enunciado (ainda que seja uma citação) (BAKHTIN, 2016, p.79).

Desse modo, o enunciado é pleno de tonalidades dialógicas: tonalidade de expressão, tonalidade de sentido, tonalidade de estilo, tonalidade de composição. Não há quem escreva sozinho, luta-se com o pensamento/voz do outro desde a hora que se acorda até a hora em que se vai dormir.

Todo enunciado tem sempre um destinatário (de índole variada, graus variados de proximidade, de concretude, de compreensibilidade, etc.), cuja compreensão responsiva o autor da obra discursiva procura e antecipa. Ele é o segundo (mais uma vez não em sentido aritmético). Contudo, além desse destinatário (segundo) o autor do enunciado propõe, com maior ou menor consciência, um supradestinatário superior (o terceiro), cuja compreensão responsiva absolutamente justa e pressupõe quer na distância metafísica, quer no distante tempo histórico (BAKHTIN, 2016, p.104).

Desconsiderar a natureza dialógica do enunciado é reduzir, limitar o seu funcionamento como elo da comunicação discursiva e circunscrevê-lo ao meramente linguístico, pois “Quando um enunciado é tomado para fins de análise linguística, sua natureza dialógica é repensada, é tomada no sistema da língua (como sua realização) e não no grande diálogo da comunicação discursiva.” (BAKHTIN, 2016, p. 92). Interessa-nos, neste trabalho, analisar justamente esse funcionamento dialógico no qual os embates discursivos se constituem como atividade de linguagem socialmente situados em lugares singulares.

O enunciado, nessa perspectiva, apresenta especificidades que o singularizam tais como: alternância de sujeitos; conclusibilidade (inteireza: exauribilidade do objeto em consonância com o projeto de discurso ou vontade de discurso e com gêneros discursivos) e direcionamento a alguém. Assim, a alternância de sujeitos diz respeito às réplicas e à responsividade inerente a todo ato de linguagem na perspectiva dialógica.

Essa responsividade constitui-se como: [...] o ouvinte, ao perceber e compreender o significado (linguístico) do discurso, ocupa simultaneamente em relação a ele uma ativa posição responsiva: concorda ou discorda dele (total ou parcialmente), completa-o, aplica- o, prepara-se para usá-lo, etc. A posição responsiva do ouvinte se forma ao longo de todo processo de audição e de compreensão desde o seu início, as vezes literalmente a partir da primeira palavra do falante (BAKHTIN, 2016, p. 63).

A conclusibilidade diz respeito à construção, à inteireza do enunciado e se dará pela exauribilidade do objeto do discurso em consonância com o projeto de dizer e com os gêneros do discurso. Por sua vez, o direcionamento a alguém é constitutivo do enunciado e se relaciona com a concepção dialógica de linguagem.

Corroborando ainda mais essa perspectiva do enunciado, enquanto realidade da linguagem, segundo Bakhtin (2017), essa unidade da comunicação entra em um campo novo da comunicação discursiva que não se limita à descrição ou à definição nos termos da linguística tradicional. Como tal, o enunciado requer uma metodologia especial e até, segundo o autor, uma ciência especial ou uma disciplina científica. Enquanto uma totalidade, produzida e circulante historicamente, o enunciado não se rende às leis da oração ou da frase destacadas e recortadas de um acontecimento de

linguagem. Somente na cadeia discursiva, ele pode fazer sentido e produzir sentido, uma vez que nunca será o primeiro ou o último a ser proferido, pois sua constitutividade é de ser elo nessa mesma cadeia.

Assim, com base nessa concepção de enunciado, é possível considerar os

posts publicados na rede social digital Facebook como enunciados concretos tendo

em vista que foram/são construídos por sujeitos sócio-historicamente situados, sendo assim, pleno de totalidades dialógicas. Com essa perspectiva, nossa análise se voltará para as postagens/enunciados geradas para essa pesquisa.