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3 TIMELINE: NA HISTORICIDADE DAS CONCEPÇÕES TEÓRICAS

3.4 As relações dialógicas

3.4.1 Os embates dialógicos

Dado que já apresentamos a concepção de linguagem que fundamenta nossa pesquisa, enfocaremos, nesta subseção, as noções de polêmica aberta, de posicionamento e de voz social, conforme os concebe o Círculo de Bakhtin. Para esse pensador, o embate discursivo se dá entre vozes dissonantes como polêmicas discursivas. Para Bakhtin, há dois tipos de polêmicas discursivas: a polêmica velada e a polêmica aberta. Na primeira, o discurso do outro é refratado de maneira implícita, pois o objeto do discurso do eu não é a voz refratada, mas outra voz que nos faz perceber, por meio das escolhas composicionais, que ela também está sendo refutada, muitas vezes mais do que a voz que pode ser percebida como objeto do discurso do eu. A polêmica aberta, ao contrário, pode ser representada por um discurso que faz do discurso do outro o seu objeto e o refuta abertamente.

Desse modo, em cada momento de sua existência histórica a língua é inteiramente heterodiscursiva: é uma coexistência concreta de contradições socioideológicas entre o presente e o passado, entre diferentes épocas do passado, entre diferentes grupos socioideológicos do presente, entre correntes, escolas, círculos, etc (BAKHTIN, 2015, p. 66).

É tênue a diferença entre polêmica aberta e polêmica velada. Contudo, ela existe e, com base nos postulados do autor, contidos, principalmente, em Problemas da Poética de Dostoiévski, podemos depreender que a polêmica aberta está orientada para refutação direta do discurso do outro. A polêmica aberta, assim, “ataca polemicamente o discurso do outro sobre o mesmo assunto e a afirmação do outro sobre o mesmo objeto” (BAKHTIN, 2010b, p. 224). Segundo Lima (2013), nesse sentido, o autor assume, de forma direta e explícita, o posicionamento contrastante em relação ao posicionamento do outro. E isso pode ser percebido, principalmente, na apresentação da voz do outro, a qual aparece para ser refutada.

Essa perspectiva bakhtiniana de considerar a língua/linguagem como constitutivamente heterodiscursiva leva em consideração as diferentes vozes sociais (advindas dos diferentes grupos, comunidades, instituições) e pontos de vista específicos sobre o mundo dando ensejo a uma arena discursiva na qual tais vozes sociais podem “[...] ser confrontadas, podem complementar umas às outras, podem

contradizer umas às outras, podem ser correlacionadas dialogicamente” (BAKHTIN, 2015, p. 67).

Para forjar um novo sentido a partir das vozes alheias, envolvemo-nos em um processo de compreensão do que se disse antes e tratamos de ouvir a possível resposta de nossos interlocutores, antecipando-a. Todas as palavras são direcionadas a alguém e são de alguém (não há palavras neutras, que existam por conta própria), e dizer palavras próprias – as que ― pertencem a alguém – só é possível em resposta a algo que foi dito antes de nós. É no processo da comunicação verbal, da interação com o outro, que alguém se faz sujeito forjando seu próprio eu. O ― eu só existe na medida em que está relacionado a um ―tu: ―Ser significa comunicar-se, e um ― eu é alguém a quem se dirigiu como um ―tu (BUBNOVA, 2011, p. 271).

Para o Círculo de Bakhtin, a concepção de vozes sociais está constitutivamente relacionada aos sujeitos do discurso situados historicamente. Sendo assim, as relações se estabelecem tanto entre esses sujeitos quanto entre os discursos desses sujeitos, sejam esses discursos ditos e/ou não ditos.

[...] tudo o que é dito, tudo que é expresso por um falante, por um enunciador, não pertence só a ele. Em todo o discurso são percebidas vozes, às vezes, infinitamente distantes, anônimas, quase impessoais, quase imperceptíveis, assim como as vozes próximas que ecoam, simultaneamente no momento da fala (BAHKTIN, 2016, p. 52).

Nessa perspectiva, nenhum sujeito se constitui como uma consciência individual, ou monologicamente, uma vez que o centro organizador e formador da consciência não se situa no seu interior, mas no exterior por meio da relação que estabelece com outros sujeitos; também esses carregados de valores e ideologias.

Em todas as esferas da atividade humana, nossos discursos estão permeados por vozes alheias com todos os graus de precisão, de apropriação, de (im)parcialidade. Nosso discurso bebe em diversas fontes, constitui-se no discurso- rio, metáfora de João Cabral de Melo Neto, conforme poeticamente ele “anuncia”:

Quando um rio corta, corta-se de vez o discurso-rio de água que ele fazia; cortado, a água se quebra em pedaços, em poços de água, em água paralítica. Em situação de poço, a água equivale a uma palavra em situação dicionária:

isolada, estanque no poço dela mesma, [...]

porque cortou-se a sintaxe desse rio, o fio de água por que ele discorria. (MELO NETO, 1994, p. 350-351).

Compreendendo a linguagem como interação verbal, a palavra não deve tornar-se poço, isolada, dicionarizada, estanque e separada do discurso-rio. É nessa arena discursiva (discurso-rio) que o embate dialógico se dá, uma vez que os sujeitos, a partir dos seus horizontes apreciativos, de sua visão de mundo, de sua ideologia, refratam o outro, os fatos, os acontecimentos, as ideias, pois tudo o que se apresentar para esses sujeitos será valorado sob determinado ponto de vista. Dessa forma, para o Círculo de Bakhtin, o ponto de vista será sempre ideológico e posicionado, uma vez que o sujeito sempre fala de um lugar no mundo e interpreta/refrata os fatos na relação dialógica constituída entre a sua palavra e a do outro.

Conforme Bubnova (2011), todo autor é responsável pelo sentido do enunciado que produz e, todo sentido é uma resposta a um sentido anterior. Dessa forma, todo enunciado é autoral no sentido de

Ao atuar e ao falar, somos autores dos atos responsáveis que envolvem nossa posição no mundo e nosso ser. A realidade da linguagem como ação na versão bakhtiniana é a de pluralidade de linguagens sociais e de discursos ideológicos que constituem um meio dinâmico da heteroglossia (BUBNOVA, 2011, p. 276).

Se assumimos que a linguagem é interação, é construção social, posto está que o sujeito troca na vida enunciados plenos e concretos e não frases gramaticais abstratas, destituídas de historicidade. Esses enunciados, ao ganharem uma relativa estabilidade, configuram-se como gêneros discursivos são mediadores das interações nas diferentes esferas da atividade humana.

Para Bakhtin (2016), cada campo da atividade humana elabora um repertório de gêneros do discurso que cresce e se diferencia à medida que esse campo se desenvolve e se complexifica. Retirada da esfera literária, a concepção de gênero discursivo bakhtiniano abarca todos os enunciados produzidos nas mais diferentes esferas da atuação humana (do cotidiano, religiosa, acadêmica, escolar, política, publicitária, científica, etc.).

De acordo com Rojo (2013), as práticas de linguagem são sempre situadas e se definem pelo funcionamento de suas esferas ou campos de circulação dos discursos. Elas são situadas historicamente, variando de acordo com o tempo histórico e as culturas locais. O funcionamento dessas esferas define os participantes possíveis da enunciação, assim como as possibilidades de relações sociais, definindo, também, o leque de conteúdo temático possível no funcionamento de uma esfera (não se fala de qualquer coisa em qualquer lugar).

Isso porque os gêneros apresentam conteúdo temático, estilo e construção composicional. Assim,

[...] esses três elementos – o conteúdo temático, o estilo a construção composicional – estão indissoluvelmente ligados no conjunto do enunciado e são igualmente determinados pela especificidade de um campo da comunicação (BAKHTIN, 2016, p.12).

Dito isso, é possível afirmar que os gêneros discursivos não são formas linguísticas abstratas ou tipos textuais, já que não são produtos alheios à dinamicidade, à historicidade, à plasticidade da vida. Não há relações dialógicas entre formas gramaticais, mas apenas entre enunciados, entre palavras plenas. Dessa forma, nossa opção por investigar os embates dialógicos somente logrará êxito se considerarmos os enunciados configurados em gêneros discursivos.

Portanto, os gêneros serão considerados, aqui, bakhtinianamente, como correias de transmissão entre a história da sociedade e a história da linguagem. Logo, a articulação entre esses dispositivos de cultura (CASADO ALVES, 2016) e as concepções de embate dialógico, polêmica aberta, posicionamento e vozes sociais, possibilita construir conhecimento mais sistematizado sobre essas práticas de linguagem que se dão na arena discursiva do Facebook.