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Postos os prolegômenos necessários, passa-se ao primeiro assunto que compõe o tema de estudo deste trabalho – o IPTU progressivo no tempo -, qual seja, a diferenciação existente entre o conceito constitucional de tributo e a definição legal posta no art. 3º da Lei nº 5.172/66.

Antes, porém, é necessário apresentar, ao menos preambularmente, a razão pela qual se faz imprescindível, para qualquer um que pretender abordar o dispositivo do art. 182, §4º, II, CF, o entendimento dessa distinção.

Quando da promulgação da vigente Constituição Federal, em 05 de outubro de 1988, todas as normas que ela precediam - inserto neste grupo o Código Tributário Nacional (de 25 de outubro de 1966) -, sofreram um de dois destinos: a revogação – tácita ou expressa – ou a recepção.5

A norma pré-constitucional que, ainda em vigor, é materialmente compatível com a nova Constituição será, ao menos incialmente, recepcionada, continuando a produzir seus efeitos normalmente, sob os novos moldes constitucionais.

Ao contrário, se não há compatibilidade entre a nova constituição e a norma a ela pretérita, ocorre sua revogação tácita, perdendo vigência – e validade – na nova ordem jurídica.

Há, contudo, casos em que a norma pretérita, ainda que incompatível, continua sendo aplicada como se válida fosse, e se necessita que essa revogação tácita seja declarada pelo Supremo Tribunal Federal, em exercício de sua finalidade precípua de guarda da Constituição6, através do controle de constitucionalidade concentrado.

A revogação expressa, por sua vez, ocorre quando a nova lei traz, em seu bojo, expressamente redigida a revogação da lei anterior.

5 Há também a repristinação - lei materialmente incompatível com uma constituição anterior, por ela revogada, torna-se compatível com a nova constituição, e é, por ela, “ressuscitada” –, mas que não merece foco no estudo em tela.

6 Artigo 102, caput, da Constituição Federal

Não tendo sido expressamente revogado, o art. 3º da Lei nº 5.172/66, sofreu, recepção – por estar de acordo com o conteúdo material da Lex Mater - ou revogação tácita – por estar em desacordo com o mesmo conteúdo material.

Esse “conteúdo material” de que se fala, no caso do artigo em apreço, se traduz no conceito de tributo erigido na Constituição, que, ainda que não formalmente explícito, se pode extrair da conjugação dos dispositivos constitucionais concernentes ao Direito Tributário.

Em outras palavras, para ser possível identificar a adequação do art. 3º do CTN à atual ordem jurídica, é necessário confrontá-lo com o conceito que traz a Constituição – conceito esse, implícito, que é desvelado pela análise dos princípios e regras constitucionais, como explica GERALDO ATALIBA, para quem:

“Constrói-se o conceito jurídico-positivo de tributo pela observação e análise das normas jurídicas constitucionais.

A verificação da universalidade e constância de um fenômeno, pelo cientista, leva-o a concluir pelo surgimento de uma categoria, à qual, para efeito de síntese, dá uma designação. A Constituição de 1988 adota um preciso embora implícito – conceito de tributo.”7

É nessa toada que se encontra a discussão acerca do art. 182, §4º, II, CF – IPTU progressivo no tempo -, veja-se sua redação:

“CF

Art. 182 - A política de desenvolvimento urbano, executada pelo poder público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.

(...)

§4º - É facultado ao poder público municipal, mediante lei específica para área incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de:

(...)

II - imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo”8

Em análise mais detida, a ser pormenorizada em capítulo próprio, percebe-se a existência de possível incoerência entre a redação do artigo e o conceito

7 ATALIBA, Geraldo. Hipótese de incidência tributária. 6ª ed. São Paulo: Malheiros, 2019. p. 34

8 Artigo 182, §4º, inciso II, da Constituição Federal

constitucional de tributo atualmente aceito pela doutrina, o que, verificado, poderia significar a parcial revogação do artigo 3º, CTN.

Antes, porém, de se analisar a natureza jurídica do IPTU progressivo no tempo, é imprescindível que se apresente as conceituações do vocábulo tributo – constitucional e do CTN -, sem as quais não seria possível analisá-lo criticamente.

2.1.1 Conceito Constitucional de Tributo

A Constituição Federal não definiu, expressamente, tributo. O que fez foi delinear, através de normas e princípios (na “universalidade e constância do fenômeno” de ATALIBA), as espécies tributárias, suas características, e definição da repartição de competência tributárias entre os diversos entes federativos e a permissão de sua instituição, com a observância do princípio da reserva legal9 e limitações constitucionais materiais ao poder de tributar.10 De tal sorte, restou à doutrina o árduo mister de extraí-las da Lei Suprema, e redigir o “conceito constitucional de tributo”.

É de se esperar que, não havendo uma definição cogente, se encontrará conceitos gramaticalmente distintos mas que trazem, ao final, o mesmo conteúdo semântico. Vejamos, senão, aquele construído pelo precitado mestre GERALDO ATALIBA:

“Juridicamente, define-se tributo como obrigação jurídica pecuniária, ex lege, que não constitui sanção de ato ilícito, cujo sujeito ativo é uma pessoa pública, (ou delegado por lei desta), e cujo sujeito passivo é alguém nessa situação posto pela vontade da lei, obedecidos os desígnios constitucionais (explícitos ou implícitos).”11

Se comparado com a definição legal – aquela do art. 3º do CTN – percebe-se que, mesmo sendo muito semelhantes, esta se encaixa, com folga, naquele (de maior abrangência). É como deveria ser, pois o conceito constitucional não apenas traz a ideia de tributo, mas abrange toda a relação jurídica tributária.

9 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 23ª ed.. São Paulo: Atlas, 2008. p. 842.

10 ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 18.

11 ATALIBA, Geraldo. Hipótese de incidência tributária. 6ª ed. São Paulo: Malheiros, 2019. p. 35

Não cabe, pois, para o estudo em tela, a decomposição de todos os elementos do conceito posto suso, mas, sim, cabe a análise mais detida do componente “que não constitui sanção de ato ilícito”.

Segundo o precursor do conceito, não constituir sanção de ato ilícito é o que difere o tributo das multas e de outras consequências punitivas, e se caracteriza por decorrer de “fato jurídico constitucionalmente qualificado e legalmente definido, com conteúdo econômico, por imperativo da isonomia...não qualificado como ilícito” - o fato imponível.

É de se entender, então, que, em toda a Constituição Federal, não seria possível encontrar qualquer menção ao tributo com caráter sancionatório. Assim, se de fato o IPTU progressivo no tempo for sanção e tributo ao mesmo tempo, pode acabar por subverter o atual “conceito constitucional de tributo”.

E não apenas, mas, poder-se-ia afirmar também que estaria parcialmente revogado o art. 3º do Código Tributário Nacional, enquanto sua definição contrariaria expressamente o previsto no art. 182, §4º, II, da Constituição.

2.1.2 Definição Legal do Artigo 3º do Código Tributário Nacional

O artigo 3º tem o condão de definir, na legislação infraconstitucional, tributo.

O Sistema Tributário Nacional, porém, é de caráter eminentemente constitucional – não por acaso o constituinte originário dispensou um capítulo inteiro de sua obra para pormenorizá-lo como fez –, de maneira que qualquer legislação que pretender definir tributo estará adstrita aos comandos específicos e gerais da Lei Maior.

A redação é a seguinte:

“CTN

Art. 3º - Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada.”12

12 Artigo 3º do Código Tributário Nacional

Para os fins do presente trabalho, como já explicado, não cabe a decomposição analítica de todo artigo 3º do CTN, mas apenas ressaltar a presença de um dos seus elementos, que tem plena e profunda conexão com o tema proposto.

Para aquele que passou pelo estudo do “conceito constitucional do tributo” não será difícil notar a semelhança – gramatical e semântica – entre as hipóteses que excluem a sanção como caracterizadora do tributo. Isso pois o CTN traz a mesma dicção que escolheu (e certamente não o fez por acaso13) GERALDO ATALIBA: “que não constitua sanção de ato ilícito”.

O entendimento, inclusive, é o mesmo que se extrai da conceituação constitucional, ou seja, é imprescindível para destacar a natureza jurídica da norma – entre multa ou outro tipo de punição, e tributo.

Para mais ainda confirmar que ambas se adequam, o entender de PAULO DE BARROS CARVALHO, quando trata do elemento do art. 3º do CTN, vem no preciso sentido do supra exposto entender de GERALDO ATALIBA, quando trata do elemento do conceito constitucional de tributo.

ATALIBA afirma não constituir, o tributo, sanção de ato ilícito, pois este decorre do fato imponível – fato definido em lei e constitucionalmente qualificado, não qualificado como sanção14 -, já PAULO DE BARROS, afirma que “traço sumamente relevante para a compreensão de ‘tributo’ está objetivado nessa frase, em que se determina a feição da licitude para o fato que desencadeia o nascimento da obrigação tributária.”15

Percebe-se, então, o rechace quase absoluto à ideia de “tributação sancionatória” na Lei nº 5.172/66, e que parece advir do conceito que se extrai da Constituição16.

É justamente nessa semelhança que reside a possível incoerência entre norma infraconstitucional e norma constitucional. Ora, se realmente houver tributo com

13 Lembre-se, Geraldo Ataliba publicou seus estudos entre as décadas de 70 e 80, quinze anos após a sanção do Código Tributário Nacional – seria incauto pensar que o doutrinador não tenha bebido dessa fonte, mesmo que involuntariamente.

14 ATALIBA, Geraldo. Hipótese de incidência tributária. 6ª ed. São Paulo: Malheiros, 2019. p. 35

15 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 30ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019. pp. 60-61

16 Sempre importante asseverar, ainda que já extensamente discutido nesta Monografia, o conceito constitucional de tributo não é, ipsis litteris, aquele de Geraldo Ataliba, pois não está expresso na Magna Carta brasileira. O que o ilibado mestre fez foi apenas expressá-lo em suas palavras, da maneira que mais lhe pareceu adequada.

caráter sancionatório, sua definição legal não se adequa aos ditames constitucionais, o que, em outras palavras, é dizer que a Constituição de 1988 haveria revogado o artigo 3º do Código Tributário Nacional.

Assim, conforme a abalizada doutrina citada e interpretação literal do art. 3º do CTN, temos que tributo não é (em análise primária) uma sanção por ato ilícito, pois não traz em seu bojo a ideia de sanção, punição. O objetivo do tributo no sentido fiscal é arrecadar, no sentido extrafiscal seria intervir numa situação social, política, econômica, através da tributação perseguindo objetivos alheios aos meramente arrecadatórios.

Destarte, o contribuinte precisa praticar uma conduta no mundo fático, denominada fato imponível, conduta essa prevista em lei, chamada de hipótese de incidência, que sempre será algo lícito, e uma vez preenchidos todos os requisitos legais, o Estado pode exigir o pagamento do tributo em questão, não havendo o que se falar em punição ou sanção.

Nessa senda, deve-se estudar o tipo tributário constitucional do IPTU progressivo no tempo, com especial atenção aos institutos da sanção e da extrafiscalidade, para que seja possível determinar a real natureza jurídica do art. 182,

§4º, II, CF – tributo ou multa (ou outro instrumento sancionatório) - e, em seguida, caso se entenda como tributo, verificar a existência de caráter preponderantemente extrafiscal – necessário para, ao final, decidirmos pela compatibilidade, ou não, entre o artigo 3º do CTN e a Constituição Federal.

2.2 IMPOSTO SOBRE A PROPRIEDADE PREDIAL E TERRITORIAL URBANA –