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A música e seus espaços: palcos, salões, altares e ruas

2.3 Concertos nos teatros

Os teatros foram importantes para a realização de concertos, destacadamente o Teatro São Carlos. No entanto, com o surgimento de associações culturais que promoviam encontros sociais e saraus como o Clube Semanal, com sede própria desde 1873, e a criação da sociedade de concertos Carlos Gomes, houve uma mudança na preferência de local para essas apresentações musicais (NOGUEIRA, 2001: 152). A fundação do Club Campineiro em 1891, e posteriormente o surgimento do Centro de Ciências e do Grêmio de Cultura Artística, ampliariam ainda mais os espaços da música de concerto na cidade.

Os concertos de Giulietta Dionesi e de outros grupos de músicos, já comentados anteriormente, trouxeram significativas atividades de concerto ao Teatro São Carlos durante a última década do século XIX. Pelos motivos indicados, poucos seriam os programas musicais realizados nesse espaço nos anos seguintes. Em 1905, por ocasião de um grande festival literário e musical em favor do Hospital da Beneficência Portuguesa, alguns músicos locais tomaram parte na apresentação. Elisa Monteiro cantou Il sogno, de Mercadante, acompanhada ao piano e ao violoncelo por Emílio Steudel e Luiz Monteiro. O tenor Machado de Oliveira cantou a ária de Tosca, de Puccini, e um grupo instrumental de cordas formado por onze músicos executou o Minuetto de Giovanni Bolzoni (1841-1919). Nas aberturas das partes do programa foram ainda apresentadas pela orquestra as aberturas de Norma, de Bellini, Le nozze di Figaro, de Mozart, e de Los diamantes de la corona, zarzuela de música de Francisco Barbieri.

Após 1913, ano em que se apresentou o famoso violinista húngaro Franz von Vecsey (1893-1935), realizaram-se concertos no teatro somente em abril de 1915, com a presença de uma orquestra composta por 50 músicos e dirigida por Francisco Murino, do Centro Musical de São Paulo, fundado por Savino De Benedictis (1883-1971). Este foi um compositor e professor italiano radicado no Brasil com grande atuação no ensino musical na capital paulista, além de participar da fundação da Academia Brasileira de Música. Na primeira noite foi executado o seguinte programa:

G. Verdi – Sinfonia Vespri Siciliani Bolzoni – Minuetto

Agostino Cantù – Andante mesto

G. Verdi – Prelúdio do 4º ato de La Traviata João Gomes – Sinfonia em Dó Menor: Allegro, Andante, Scherzo e Allegro finale Beethoven – Sinfonia n.1 em Dó:

Allegro, Andante, Minuetto e Allegro molto vivace. C. Gomes – Sinfonia de Il Guarany

No repertório da orquestra paulistana pode-se notar o aproveitamento de obras de compositores presentes na recém-fundada instituição de ensino musical da cidade, o Conservatório Musical de São Paulo. Paolo Agostino Cantù (1878-1943), maestro italiano, estabeleceu-se em São Paulo em 1908 para lecionar no Conservatório, fundado dois anos antes, e o brasileiro João Gomes de Araújo (1846-1943) foi um dos fundadores dessa instituição e autor de seis sinfonias e de várias missas. Com poucas alterações nos autores das peças apresentadas na segunda noite, os concertos não atraíram um grande público. No ano seguinte, um dos músicos organizadores das séries orquestrais, Raphael Bernabei, havia comparecido novamente a Campinas a fim de promover outra programação semelhante, na qual participaria o jovem pianista campineiro Mário Monteiro. Sem registros encontrados, os concertos parecem não terem sido levados à cidade, talvez devido a certa indiferença do público.

Em abril de 1916, dois reconhecidos solistas de origem russa exibiram-se na mesma noite no teatro – a pianista Chura Botelho e o violinista conhecido como Mischa Violin. Chura Botelho ou Alexandra Markoff, sobre quem pouco se sabe, nasceu na cidade de Petrogrado, Rússia, e foi aluna de Anton Rubinstein. No Brasil, casou-se com Martinho Carlos de Arruda Botelho, advogado e intelectual natural de Rio Claro. Nesse concerto, em que mostrou elevado nível técnico, tocou entre outras as peças de número 1, 4 e 8 da série Kleisleriana, de Schumann, e Marcha dos Aliados, de sua autoria, certamente uma referência ao contexto da Primeira Guerra.

A apresentação do virtuose Mischa Violin deu-se com grande impacto sobre o público presente. Parece tratar-se do violinista judeu Mikhail Saulovich Elman (1891-1967), nascido em território russo hoje pertencente à Ucrânia. Após seus estudos no Conservatório de São Petersburgo, alcançou grande reconhecimento na Europa e nos Estados Unidos e, sob a era das reproduções musicais, deixou grande legado discográfico. Após um concerto de

Paganini, sendo chamado várias vezes ao palco, tocou ainda Les Valses de Vienne, de Fritz Kreisler, uma composição de Corelli e uma peça própria intitulada Dois olhos.

Dois concertos menores ainda ocorreriam no teatro no mesmo ano, com o guitarrista português Salgado do Carmo, acompanhado do violonista Armando Duque, de boas referências pela imprensa de São Paulo e do Rio de Janeiro. Entre peças de autoria própria e fados, foram executadas Sento una forza indomita e Senza tetto, senza cuna, de Il Guarany, de Gomes. Em dezembro realizou-se o concerto de despedida do tenor campineiro Santino Giannattasio, que retornaria à Europa. Nele tomaram parte Alice Gomes Grosso, filha do maestro Sant’Anna Gomes, seu esposo Rodolfo Grosso e Salvador Bove, músicos e professores atuantes na cidade.

Embora de um ambiente afeito a diversões mais populares, no palco do Teatro Rink também foram dados alguns concertos, notavelmente a partir de 1915. Em novembro desse ano, realizou-se ali um festival artístico, com o barítono brasileiro Luiz de Freitas, acompanhado do poeta Fonseca Junior e do baixo Cezar Reco, que cantou a ária da ópera Ernani, de Verdi, e Nont’amo più, de Paolo Tosti. Em dezembro do ano seguinte, apresentou- se o elogiado violonista brasileiro Américo Jacomino, o Canhoto (1889-1928). Compositor da famosa valsa Abismo de Rosas, era famoso por tocar perfeitamente sem fazer a inversão das cordas do instrumento, e é a quem se atribui o mérito de haver introduzido o violão às salas de concerto.

Mischa Violin retornou a Campinas em agosto de 1919, e apresentou-se no Rink à sua maneira de exibição, com peças de efeito. Entre as principais estavam Ciaccona para violino, de Bach, um concerto não especificado de Mendelsshon, um Scherzo de Beethoven, Zapateado, de Sarasate e Souvenir de Moscou, de Henryk Wieniawski (1835-1880). Acompanhado ao piano por Francisco Mignone, alcançou de novo grande aprovação do público.

Michel Livchitz, outro violinista russo de perfil virtuosístico, veio à cidade em 1921. Ao seu primeiro concerto, realizado no Teatro São Carlos sem grande audiência, seguiu-se outro no Rink. Nessa ocasião tocou de Weniawski o Prémier Grand Concerto, o Caprice Viennois de Kreisler, o Caprice n. 6, de Paganini, além de peças menores, como Rêverie, de Schumann. Entre Mischa Violin e Michel Livchitz, nota-se a presença constante da obra do compositor e violinista polonês Weniawski, de grande atuação na Rússia e de

projetada influência sobre os violinistas do país. Fritz Kreisler (1875-1962), austríaco e também violinista, firmou-se como outra referência sobre a geração contemporânea de músicos de seu instrumento.

Nesse mesmo ano ainda ocorreram dois concertos vocais no Rink. O cantor Fregolini possuía notável flexibilidade vocal ao cantar em quatro registros diferentes – tenor, barítono, baixo e soprano. Segundo os comentários da imprensa que antecederam sua apresentação, o concerto dado no Conservatório Musical de São Paulo havia sido aguardado com muito interesse. Em outubro, o barítono chileno Leopoldo Gutierrez, que havia passado pela região nordeste do país e trazia boas referências da imprensa de Recife, apresentou-se ao lado do soprano Lina Barberi em um concerto a preços populares:

1ª parte

1. Bizet – Canção do Toureador, da ópera Carmen – L. Gutierrez 2. Puccini – Sì, mi chiamano Mimi, da ópera La Bohème – L. Barberi

3. a) L. Gutierrez – Amore!, romanza.

b) Brahms – Wiegenlied, canção alemã – L. Gutierrez

c) Canção do Aventureiro, da ópera Il Guarany – L. Gutierrez 4. Verdi – Ritorna vincitor!, da ópera Aida – L. Barberi

5. Verdi – Qual voce! Come? Tu, donna?, dueto da ópera Il Trovatore – L. Barberi e L. Gutierrez

2ª parte

1. Toselli – Visione, serenata apaixonada – L. Barberi 2. Gounod – Dio Possente, da ópera Fausto – L. Gutierrez

3. Giordano – La mamma morta, da ópera Andrea Chénier – L. Barberi 4. a) Percival – O pinhal, canção brasileira.

b) Leoncavallo – Prólogo da ópera I Pagliacci – L. Gutierrez

5. Carlos Gomes – Sento una forza indomita, dueto da ópera Il Guarany.

As árias e duetos de óperas ainda se fazem dominantes em concertos de música lírica, mas notam-se algumas canções independentes. Tem-se a conhecida melodia de Brahms de temática infantil, talvez a mais conhecida berceuse, e a canção O pinhal, do compositor Armando Percival, cujo nome era Virgílio de Oliveira Castilho (1886-1969). A presença desta canção, junto à serenata do italiano Enrico Toselli (1883-1926), autor da famosa Rimpianto, parece indicar a ascensão das canções de cunho mais popular com temática romântica em meio aos concertos vocais, com a valorização da produção contemporânea desses estilos. A crescente divulgação musical de vários compositores, através da reprodução fonográfica, deu passagem e acolhida a composições de caráter mais ligeiro nas apresentações musicais em que imperavam obras mais próximas ao universo erudito. Deve-se ressalvar que

essas possibilidades davam-se, aparentemente, devido ao conteúdo e formas cheias de lirismo dessas composições, aproximando-as do ambiente de concerto.

Lina Barberi

Acervo Digital Teatro São Pedro de Porto Alegre

Embora com pouca frequência nos teatros, os concertos musicais mostram um caminho marcado pela permanência de repertórios e tipos de apreciação e também pela diversificação de apresentações e introdução de estilos, como os concertos de violão ou guitarra portuguesa. Ainda que valorizados culturalmente, esses programas musicais nem sempre encontravam grande público nas salas teatrais. Às razões iniciais apontadas, que indicavam o deslocamento das práticas de concerto para os ambientes das associações culturais, pode somar-se o fato de que, no século XX, novas formas de acesso à música estavam à disposição aos menos das classes médias e altas, com os suportes e meios de reprodução trazidos pelos gramofones e discos. O grande contexto das novidades de entretenimento urbano, com os espetáculos cinematográficos que ocupavam até os espaços dos teatros, também parece ter colaborado para o rareamento de concertos e de seu público.