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CONDIÇÃO DE FÊMEA: A MULHER COMO REFERENTE AUSENTE

No documento http://www.conpdl.com.br/anais5conpdl (páginas 192-195)

Este trabalho investiga a relação entre a experiência da criação literária e o recurso à prática diarística nas trajetórias das escritoras Virginia Woolf (1882-1941) e Sylvia Plath (1932-

CONDIÇÃO DE FÊMEA: A MULHER COMO REFERENTE AUSENTE

Por essas questões, a mulher parece estar, nesse romance, equiparada aos bichos – notadamente à vaca: “olhava para nossa casa e minha mãe parando perto da sarga, a velha vaca. eu via-as como as duas estranhas e loucas mulheres do meu pai.” (Mãe, 2010, p. 18). Baltazar prossegue, ao falar de sua mãe: “eu acho que ela se escudava como vítima de quando em vez para que nos apiedássemos da sua condição de fêmea”. (Mãe, 2010, p. 48).

Ao mesmo tempo, essas posições não coincidem. Baltazar demonstra uma possibilidade de afeto em relação à vaca que quase nunca se delineia em relação às mulheres do livro. Sobre a vaca, baltazar diz: “adorávamos a sarga, mesmo nas noites de tempestade quando se amedrontava e nos obrigava a acordar” (Mãe, 2010, p. 12), e ainda: “eu rezava por ela e tinha medo profundo da sua solidão, talvez ela olhando em volta sem saber que bicho a poderia estar a querer” (p. 185). Enquanto, sobre sua mãe ele diz: “mulher pior do que as outras, incapaz de estabilizar por completo as suas falhas, tão naturais.” (p. 25). Desse modo, parece haver, no livro, um recalcamento da mulher como alteridade insuportável, de forma que ela, por vezes, é substituída pela imagem da vaca ou qualquer outro animal: “a diaba era

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só bicho e instinto, como coisa que veio do mato para se amigar da vida das pessoas. era assim como um animal selvagem com muita vontade de ser doméstico”. (p. 57). Benedito Nunes (2011) aponta esse mecanismo de substituição como algo que se dá de forma geral em nossa cultura. Para o autor, o animal é, ao mesmo tempo, a maior alteridade do homem e, também, uma das formas primordiais de simbolização do próprio homem.

Desse modo, quando a mulher se torna uma identifi cação impossível para o homem, a mais próxima é encontrada naquele que Nunes localiza como o grande Outro (Nunes, 2011, p. 14) e Elisabeth de Fontenay localiza como o mais frágil, “o mais outro dos outros” (1998, p. 58): o animal.

Assim, percebemos o que foi apontado no início desse texto: se por vezes os animais estão ausentes em diversas metáforas de opressão, substituídos por eufemismos ou outras formas de simboli- zação, no livro de Mãe é a mulher que por vezes está omitida sob a imagem da vaca ou de outro bicho. Tal operação nos parece ainda mais interessante se considerarmos o caráter demoníaco da animalidade durante a idade média cristã e seus resquícios ainda hoje. Maria Esther Maciel lembra da parte animal do humano “instituída como o lugar de todos os perigos, ou seja, deslocada para fora do humano, ela foi confi nada ao território do mal, da violência, da luxúria e da loucura, sob a designação de bestialidade”. (Maciel, 2016, pp. 16-17). Em exata substituição, baltazar declara: a voz das mulheres, perigosa e burra, é igual à maldade dos homens (Mãe, 2010, p. 157). A mulher, no livro, estaria ainda mais próxima do animal por representar “o irascível dos sentimentos e a bruteza dos instintos. O animal habitava o homem e dentro dele rugia, porém como algo que lhe era estranho” (Nunes, 2011, p. 13). Esse estranho desconhecido, que podemos vislumbrar como um reconhecimento de si em uma posição passiva, é colado na imagem da mulher – vista como passiva por excelência –, o que depois se desdobra no livro com a personagem da bruxa, estranha, louca, má. Assim, o segundo corpo passivo por excelência, o do animal, se torna a única identifi cação possível com algo a ser subjugado. É pela ideia do animal como primitivo ou instintual, características que são imputadas também às mulheres, que é possível se iden- tifi car enquanto bicho, enquanto fi lhos da sarga, a vaca. Afi nal, a mãe de baltazar não tem nem nome.

Se pelo lado de todos da família sarga podemos entender a animalidade pela via da opressão e da passividade, podemos pensar que tanto a mulher quanto a vaca, no romance, são duplamente bicho: são fêmeas. Pois, do lado da mulher, para além da condição de bichos à qual todos sargas estavam condenados, há a subjugação da condição de fêmea; da parte da vaca, para além da subjugação de ser um animal para o homem, há também a subjugação de fêmea, que como a mulher humana, é estuprada.

CONCLUSÃO

Assim, percorrendo o remorso de baltazar serapião e deparando-nos com a animalidade de seu personagem principal, buscamos encontrar onde ele mesmo se descreve como mais humano. E é na tentativa de explicar o amor que sente por sua mãe morta que baltazar se diz menos bicho:

ninguém me quis melhor ou me perdoou os cascos no chão, o compromisso maligno de nossa condição de bichos, porque me queixei e padeci como homem e quanto tinha de bicho me deixou no momento em que expliquei que amor é esse que se tem por uma mãe. (Mãe, 2010, p. 82).

194 Podemos, à partir dessa cena, considerar que, para o personagem, a humanidade estaria ligada à tentativa de captura do afeto pela linguagem. É dizendo de um afeto insistentemente recalcado que baltazar vira gente. Vira gente enquanto seus cascos continuam a bater no chão, à vista dos olhares dos outros. Condenado, apesar das palavras, à condição de bicho.

Tal trecho nos remete a outra obra de Valter Hugo Mãe. O livro a desumanização é narrado pela protagonista, uma garota pré adolescente islandesa que conta sua história – ou seja, bem diferente de baltazar, cascos duros em terras áridas. A despeito dessa gritante diferença, a voz do autor ressoa de forma parecida na paisagem islandesa, ao dizer da humanidade:

O inferno não são os outros, pequena Halla. Eles são o paraíso, porque um homem sozinho é apenas um animal. A humanidade começa nos que te rodeiam, e não exatamente em ti. Ser-te pessoa implica a tua mãe, as nossas pessoas, um desconhecido ou a sua expectativa. Sem ninguém no presente nem no futuro, o indivíduo pensa tão sem razão quanto pensam os peixes. (Mãe, 2014, p. 15).

Percebemos aqui que parece haver uma mesma noção de humanidade em ambas as obras de Valter Hugo Mãe – o humano, sob a voz dos personagens, é compreendido como aquele que precisa de outras pessoas, tal qual baltazar no enterro de sua mãe. Mas, se n’A desumanização o homem é animal quando está sozinho, pudemos ver que em o remorso de baltazar serapião há uma construção mais complexa do que é o animal ou um homem bestifi cado.

Se, de acordo com as correntes da psicanálise abordadas nesse trabalho, é através da angústia que o humano participa da animalidade (Assoun, 2004, p. 273; Lacan, 2002, p. 131), podemos dizer que, no romance de Valter Hugo Mãe, para balta zar serapião, é a partir do animal que a mulher parti- cipa de alguma possibilidade de humanidade. A angústia das mulheres deixa seus vestígios por todas as páginas deste livro.

REFERÊNCIAS

Adams, C.J. (2012). A política sexual da carne: a relação entre o carnivorismo e a dominância masculina. São Paulo: Alaúde Editorial.

Assoun, P.L. (2004). Corps et symptôme: leçons de psychanalyse. Paris: Economica.

De Fontenay, E. (1998). Le silence des bêtes: la philosophie à l’épreuve de l’animalité. Paris: Fayard. Derrida, J. (2002). O animal que logo sou (A seguir). São Paulo: UNESP.

Ingold, T. (1995). Humanidade e animalidade. Revista Brasileira de Ciências Sociais, (28), 39-54. Rio de Janeiro. Lacan, J. (2005). O seminário: livro 10, a angústia. Rio de Janeiro: Zahar.

Maciel, M.E. (2016). Literatura e animalidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. Mãe, V.H. (2010). o remorso de baltazar serapião. São Paulo: Editora 34.

Mãe, V.H. (2014). A desumanização. São Paulo: Cosac Naify.

Nunes, B. (2011). O animal e o primitivo: os Outros de nossa cultura. In M.E. Maciel (Org.). Pensar/escrever o animal: ensaios

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O SILÊNCIO E O

REMORSO:

LEITURAS PSICANALÍTICAS DE O

REMORSO DE BALTAZAR SERAPIÃO

Autora: Patrícia Mafra de Amorim

Psicóloga formada pela Universidade Federal de Minas Gerais e mestranda em Estudos Psicanalíticos no Programa de Pós-graduação em Psicologia pela mesma instituição.

RESUMO

A autora propõe uma análise da obra de Valter Hugo Mãe, o remorso de baltazar serapião,

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