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SEXUALIDADE INFANTIL E SEXUALIDADE FEMININA NA TEORIA PSICANALÍTICA

No documento http://www.conpdl.com.br/anais5conpdl (páginas 94-99)

Autor: Felippe Figueiredo Lattanzio

SEXUALIDADE INFANTIL E SEXUALIDADE FEMININA NA TEORIA PSICANALÍTICA

Na descrição dos fenômenos da sexualidade infantil, Freud (1905/1972), caracteriza as crianças, “sob infl uência da sedução”, como podendo “tornar-se perversas polimorfas” (p. 196). Curiosamente já aí, compara-as às mulheres, evidenciando, já em 1905, a carga ideológica (e, portanto, alguma inge- nuidade) com que naturalizava a sexualidade feminina: “Neste sentido, as crianças se comportam da mesma forma que uma mulher comum inculta em quem persiste a mesma disposição perversa polimorfa” (idem, ibidem).

O caráter perverso e polimórfi co da sexualidade infantil atestava não só a presença precoce da sexualidade na vida humana, mas seu caráter distanciado do biológico stricto sensu: Freud evidencia que a sexualidade humana tem pouco de instinto e muito de pulsão, sendo, nos primórdios de sua cons- tituição, eminentemente plástica, distinta do adaptativo (e, por vezes, contrária a ele).

Ora, como a exegese laplancheana fez-nos ver, a perda da teoria da sedução levou consigo o referencial externo para explicar a origem e as características da sexualidade humana, no que ela inte- ressa à psicanálise: seu caráter pulsional passou a ser inferido a partir do corpo infantil, desabrochando de um autoerotismo. Laplanche (1988, 2015a) evidencia os desvios que a teoria freudiana percorreu,

95 particularmente aqueles que fazem retirar todo o sistema sexual de um psiquismo solipsista, monádico. Sem admitir essa interpretação da obra fundadora, o leitor corre o risco de embarcar num argumento mais pesado do que o necessário e menos explicativo, porque mais ideológico do que o desejável.

Um ganho desse retorno à tese da origem externa da sexualidade, tendo a sedução como seu modelo generalizado, reside na descentralização do complexo de Édipo, de início, posto, por Freud, como complexo nuclear das neuroses: Laplanche reconhece que, sendo uma ordenação, não pode estar no âmago do inconsciente, que é caracterizado pelo próprio Freud como alógico e desorganizado.

Ora, o desvio biologizante de Freud, para empregar a expressão de Laplanche, permitiu que uma considerável carga ideológica transparecesse em sua teoria sobre a sexualidade, uma vez apoiada sobre a erogeneidade do corpo infantil. Não só o solipsismo, mas também uma normatização que tomou o corpo como uma realidade natural, originalmente liberta das infl uências que a cultura pudesse exercer. Haveria, na teoria clássica, uma natureza irredutível e insubstituível, que era preciso pressupor para sustentar, numa espécie de retorno ao instinto, todo o edifício da teoria sexual. O desorganizador, próprio à perversão polimórfi ca com que a sexualidade infantil foi inicialmente postulada, perdeu-se, com a gradual assimilação da sexualidade à vida (Eros) e a elevação da agressividade ao estatuto de contraponto inato do sexual vital.

Assim, tanto a sexualidade infantil foi sujeita aos parâmetros da psicologia do desenvolvimento, quanto a sexualidade feminina foi sujeita a um trajeto que privilegiava, claramente, o masculino – o que foi devidamente denunciado pelas psicanalistas e teóricas feministas. A sexualidade feminina recebeu uma explicação acidentada, tortuosa, forçosa, tudo para caber no esquema edípico que, fazendo com que as meninas entrassem no Édipo a partir do complexo de castração, encaminhasse-as, ao fi nal, até o prazer vaginal heterossexual, obtido por penetração peniana, com vistas à maternidade de um bebê... do sexo masculino!

Segundo Márcia Arán (2009), a psicanálise carece de distinguir o que permanece como fantasia edipiana no processo de subjetivação, e o que pode ser um arranjo histórico e contingente ligado às mudanças nos destinos da diferença sexual e à distribuição das funções materna e paterna na cultura contemporânea. (p. 658)

Ora, essa psicanalista feminista ainda mantém, no esforço de defender uma positivação da feminilidade, a referência a funções, transindividuais e marcadas pelas diferenças de gênero (materna e paterna), e... ao corpo feminino como garantia de um fundamento comum aos indivíduos do sexo feminino. Nas palavras de Arán, para a psicanálise atual, no tocante a esse tópico, “o grande desafi o é afi rmar a especifi cidade da experiência vivida, ou seja, a positividade do corpo feminino na sua dife- rença” (2009, p. 663).

Mas e se o recurso ao corpo conduzir o raciocínio a recair em essencialismos de alguma base biológica – e biologizante? Minha hipótese é de que esse recurso é, a rigor, desnecessário – não por sermos seres imateriais ou todos iguais, mas porque o plano fundamental de produção da teoria psica- nalítica, desde Laplanche, é o da sexualidade infantil. Nas palavras do próprio Laplanche (2015b, p. 38):

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“O sexual infantil é a grande descoberta de Freud. É o Sexual ampliado além dos limites da diferença entre os sexos, além do sexuado. É o sexual parcial, ligado às zonas erógenas. . .”. Nesse plano, tanto o feminino quanto o masculino não são pontos de partida, mas de chegada – de síntese. O que há, no sexual infantil pré-genital, são partes de corpos que, de todo modo, não pertencem a um gênero por fazerem referência a um corpo que lhe seria respectivo: mesmo que estejamos habituados a remeter genitais a um ou outro gênero, essas partes não signifi cam, por si sós, masculinidade ou feminilidade naturais e originárias.

Aplicado o modelo laplancheano de interpretação metapsicológica de conceitos de Freud àquele de sexualidade feminina, chego a afi rmar que este conceito, elaborado de modo sintético na última década da obra do pai da psicanálise, herda os principais traços antes outorgados à sexualidade infantil, quando esta ainda não era enquadrada de forma evolutiva e psicogenética.

O exame dessa hipótese requer mais espaço do que o disponível neste momento, mas, apenas como exemplo de sua viabilidade, vejamos: em “Sexualidade Feminina”, Freud (1931/1972) retoma o velho problema dos fatores originários da sexualidade, combinando história e biologia:

Ora, o que aparece, ao tratar das origens da sexualidade feminina, no texto freudiano? Nada menos que três das quatro fantasias originárias, por Freud tratadas como universais e fi logeneticamente herdadas: a sedução, a cena primitiva e a castração! Teorias infantis, portanto, que Freud elevou a categorias universais e necessárias, como formas essenciais do conteúdo sexual inconsciente. Teorias que, então, respondem ao enigma gerado no confronto com o mundo dos adultos. O que apressa o desenvolvimento sexual da criança – em outras palavras, o que revela sexualidade cedo demais, aquela caracterizadamente perversa e polimorfa – são experiências às voltas com os enigmas da sexualidade adulta (bebês, sexo do casal parental, sedução) e com um primeiro organizador dessa sexualidade na infância, capaz, inclusive, de encerrar o pré-genital: as traduções dadas através da diferença entre os sexos.

É bem verdade que, tomando a alteridade como ponto de partida, é possível supor, à primeira vista, tanto feminilidades quanto masculinidades provenientes dos adultos sedutores. Mas mesmo esses atores do processo só seduzem, como lembra Laplanche (2015b), por serem afetados por suas próprias sexualidades infantis, perversas e polimorfas. De outro modo, por que tratariam crianças como objeto de desejo? Se não houvesse o pulsional nos adultos, não haveria sedução possível – nem, tampouco, a humanização que dela decorre, no plano dos fenômenos psicanalíticos.

Se, como vimos, a sexualidade feminina esconde, em verdade, a sexualidade infantil, herdando desta seus principais descritores e adjetivos (enigmática, obscura, tortuosa – outra forma de aproximá-la da perversão e da polimorfi a); e se a descrição freudiana da sexualidade feminina é eivada de norma- tividade e ideologia – por apoiar-se numa argumentação biológica insustentável, ainda resta um lugar para essa sexualidade na metapsicologia?

Lattanzio (2011) resume as aproximações que Paulo de Carvalho Ribeiro e Jacques André desen- volvem entre o feminino e o originário, o primitivo (seja pela identifi cação feminina primária ou pela

97 passividade/orifi cialidade), evocando a posição de objeto do desejo ou o corpo feminino como alterna- tivas para sustentar um lugar exclusivo à feminilidade na metapsicologia. Ambas constituem contribui- ções valiosas, posto que acentuam aspectos da díade adulto/criança nos tempos da sedução, capazes de ajudar a entender muitos fenômenos que chegam à clínica das patologias e que transbordam na cultura, perpetuando crenças e práticas de violência de gênero, por exemplo. Por não conseguir dizer melhor, cito diretamente Lattanzio, quando critica expressamente a contribuição de Jacques André:

por que falar de feminilidade originária e não apenas de passividade originária? Por mais que se diferencie feminilidade de mulheres, por mais que se diga que esta feminilidade está presente também em homens, a escolha da palavra dá a ela um peso que não pode ser ignorado. (Lattanzio, 2011, p. 62).

Penso, com o mesmo autor que sobre para a feminilidade o mesmo estatuto dado à masculi- nidade, a partir das considerações laplancheanas sobre as relações entre sexo, gênero e sexualidade infantil (Laplanche, 2015a). Feminino e masculino são reorganizações do perverso polimorfo, com esta- tuto igualmente secundário, resultantes de organizações nas quais os paradigmas culturais interferem como auxílios à tradução – e, portanto, na condição de efeitos dos mecanismos de defesa (sendo o recalque o mais importante).

A tese de Laplanche é clara: “o Sexual [infantil] é o resíduo inconsciente do recalque-simbolização do gênero pelo sexo” (2015a, p. 155). Sendo plural o gênero e dual o sexo, o sexual infantil aproxima-se mais do gênero do que mesmo do sexo, ainda que o gênero já seja, em si mesmo, uma tradução inicial da polimorfi a: “o Sexual [infantil], para Freud, é, pois, exterior ou mesmo anterior à diferença dos sexos, para não dizer, à diferença dos gêneros: ele é oral, anal ou paragenital” (p. 157).

Assim, a feminilidade, genitalmente considerada, é, nesse contexto, uma categoria secundária, que desponta no processo de confi guração das traduções, mais como um “auxílio” à tradução do infantil do que como sua origem recalcada, propriamente dita. É certo que, com Laplanche, inclusive o gênero é recalcado, está mais próximo do sexual infantil (pois é designado e múltiplo). Mas ele, por já se referir também ao masculino e ao feminino, “é geralmente duplo” (p. 155) e se alia com o sexo “contra o Sexual [infantil]” (p. 159).

Dessa forma, entendo que a separação entre feminilidade e masculinidade tende a distinguir-se do infantil, sobrevivendo apenas secundariamente no campo psicanalítico, se adotado esse raciocínio. Não deixarão de haver mulheres e homens, nem pessoas que atravessam esse intervalo ou mesmo se situam nele, sem adotar exclusivamente uma posição de gênero. A partir disso, é possível fazer uma pergunta a Lattanzio, à semelhança daquelas que o autor apropriadamente fez para criticar a ontologia de Jacques André: para que ainda nomear de “feminilidade” aquilo que ele mesmo chama de “o desejo de se deixar invadir, penetrar, de ter suas fronteiras partidas” (p. 156), “potência presente tanto em mulheres quanto em homens” (p. 157)? Por que correr o risco de empregar um termo historicamente carregado de ideologia especifi camente voltada para as mulheres, no interior da teoria psicanalítica para dizer algo que é comum às pessoas, independentemente de seus gêneros e sexos?

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Butler (2014), valorizando os avanços decorrentes da teoria da sedução generalizada, relê as contribuições dessa teoria (sobretudo no que dizem respeito à correção do desvio biologizante e à abertura epistemológica disso decorrente), enfatiza o gênero como categoria capaz de associar-se ao caráter enigmático da mensagem na situação antropológica fundamental, para levantar uma questão interessante, que poderia dar fundamento à sobrevivência da distinção que permite associar passivi- dade e feminilidade (mesmo que comum a todas as pessoas): “Para Laplanche, a característica maior do enigma originário é precisamente ser insolúvel. Nesse sentido, o gênero é também insolúvel” (pp. 129-130, em Inglês no original).

Uma forma interessante de ver o problema, mas não tenho certeza de que Laplanche a endos- saria inteiramente, pois, como o psicanalista francês destacou, o enigma é sempre sexual, polimórfi co e perverso – tendo seus conteúdos um caráter parcial, primitivo, pouco ou nada organizado – ao contrário do gênero. Situar o gênero como um componente do enigma é pretender que o enigma se constitua com as mesmas características da mensagem que é enviada pelo adulto. Ora, isso só parece verdadeiro no caso da mensagem encravada, não traduzida. No caso das mensagens que sofrem o recalque, o enigma resulta também do processamento que o sujeito dá à mensagem, da capacidade de metabolizá-la, e não apenas da mensagem em seu conteúdo e forma. Logo, o gênero, permanecendo do lado da desig- nação, oferece um suporte cultural que não se identifi ca com a singularidade dos enigmas geradores de inconsciente, ainda que possa ser invadido por estes, servindo-lhes de expressão.

Por essas razões, chego a afi rmar não haver, no que interessa à psicanálise, uma sexualidade originária e especifi camente feminina, podendo a feminilidade, na obra freudiana, revelar-se como a última expressão dos traços conferidos, no início, à sexualidade infantil. Não há, pois, uma feminilidade originária – ao menos, não exclusivamente –, e chamá-la “feminilidade” pode concorrer para a confi r- mação de uma associação carregada de ideologia nos princípios da teoria. Há a mãe –que, sem dúvida, como lembra Laplanche, é uma mulher –, mas essa mulher é tão ativa e penetrante que... seduz o bebê com seus seios, dedos e mãos, sua pele, sua boca. Já foi dito (Lattanzio, 2011) que os orifícios da passividade não são masculinos nem femininos, são polimórfi cos infantis.

Com essas considerações, alguém poderia perguntar se algo sobrevive para a crítica de base psicanalítica ao androcentrismo e à inequidade de gênero. Seria possível explicar toda violência de gênero apenas por variáveis sociais, sem referência ao psiquismo e seus processos inconscientes? Não pretendo isso, mas o desenvolvimento de uma nuance. É claro que motivos culturais, histórica e social- mente determinados explicam muito do que leva à crueldade, ao estigma, à sujeição.

Todavia – e o que afi rmarei agora ainda é, em parte, circunstancial, banhado pela história das sociedades humanas –, penso ser possível dizer que as mulheres (e quem fugir aos parâmetros rígidos de gênero, independentemente de qualquer relação necessária com sua orientação sexual) são postas em posição de inferioridade e sujeição porque no início, quem cuida das crianças (muito geralmente mulheres-mães) é, a um só tempo, posto na ambivalente posição simultânea de sujeito-objeto. Objeto dos desejos infantis que brotam a partir da sedução. Mas, imediatamente antes, de sujeitos de desejos com que invadem os corpos infantis, também de forma perversa e polimórfi ca – através do que, desde Freud (1905/1972), reconhecemos como os cuidados e a ternura.

99 A mulher, para a criança, vem narcisicamente a posteriori, ainda que, para a mãe, apareça a priori, ao mesmo tempo em que, seduzindo, vê-se seduzida pelo bebê. Há na mãe-mulher uma criança seduzida, verdadeira fonte da excitação que a faz desejar aquele bebê e continuar a desejá-lo vida afora. Aquele bebê é objeto de perversão e polimorfi a também para ela, que igualmente dá signifi cados sintetizadores, organizadores, recalcados, mais próximos a seu passado recente, em que a genitalidade também deixa suas marcas secundárias.

Mulheres são responsabilizadas por terem sido emissárias de mensagens enigmáticas muito preco- cemente, nos tempos pré-genitais. E temos de convir que, não fossem as normas de gênero, homens heterossexuais, por exemplo, que atendem a todas as normas de gênero a eles impostas, poderiam, nesse mesmo tempo, assumir a mesma função de emissores de mensagens, produzindo enigma.

A violência de gênero que alveja mulheres e pessoas desviantes é, nessa forma de ver, uma espécie de payback carregado de ódio pelo tratamento recebido enquanto objetos de desejo perverso polimórfi co vindo de adultas (mas também de adultos). É desta maneira, pois, que trato agora o estranho remorso de baltazar serapião.

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