• Nenhum resultado encontrado

DEVIR-OUTRO E ESCRITA

No documento http://www.conpdl.com.br/anais5conpdl (páginas 118-121)

POR UM “DIREITO LITERÁRIO”

DEVIR-OUTRO E ESCRITA

Nossa existência é atravessada por fl uxos que nos constituem numa dimensão visível, mais óbvia, mas também numa dimensão invisível, igualmente real, embora não tão óbvia (Rolnik, 1993). No visível, estabelecemos uma relação entre um “eu” e os vários outros, tomados enquanto unidades separáveis. Porém, no invisível, tem-se uma textura do ser que é tecida por fl uxos sensíveis, que vão se conectando com outros fl uxos que nos afetam, e são capazes de gerar em nós estados inéditos, ou espaços esquizos1 (Rolnik, 1993).

1 Como dito na introdução, este trabalho se situação no campo da esquizoanálise, e não da psicanálise propriamente dita.

Esquizo signifi ca dividido, fendido, etc. A esquizoanálise, portanto, investiga os fl uxos inconscientes que nos divide, os agenciamentos de desejo que nos faz querer ser quem somos e/ou ser outros. Afi rmam Deleuze e Guatarri (2011) sobre a esquizoanálise: “Trata-se mais de saber quais são as máquinas desejantes de alguém, como elas funcionam, como que

119 Atravessados por esses fl uxos, nosso plano de consistência se desestabiliza, na medida em que somos sensivelmente afetados (é sempre uma obra do afeto). Acontece que passamos a não mais ser aquilo que acreditávamos ser até aquele momento. Ficam duas alternativas: a repressão, ou a saída emergencial de criarmos um novo corpo – um novo modo de existir, sentir, pensar, agir, etc. –, que venha “dar carne” ao estado inédito que nos marcou (Rolnik, 1993). Se, corajosamente, entramos por essa saída, ou seja, se respondemos positivamente à exigência imposta por um desses estados inéditos, tornamo-nos outros (Rolnik, 1993).

Suelly Rolnik (1993) se refere a esses estados inéditos como marcas que vão sendo produzidas em nossos corpos, durante a composição de nossas vivências. E, segundo a autora, cada marca instaura uma diferença que, ao se revelar uma abertura para a criação de um novo corpo, é sempre gênese de um devir (Rolnik, 1993). E, assim, vamos nos criando,

. . . engendrados por pontos de vistas que não são os nossos enquanto sujeitos, mas das marcas, daquilo que em nós que se produz nas incessantes conexões que vamos fazendo. Em outras pala- vras, o sujeito engendra-se no devir: não é ele quem conduz mas sim as marcas. O que o sujeito pode, é deixar-se estranhar pelas marcas que se fazem em seu corpo, é tentar criar sentido que permita sua existencialização – e quanto mais consegue fazê-lo, provavelmente maior é o grau de potência com que a vida se afi rma em sua existência. (Rolnik, 1993, p. 242).

Essa gênese de um devir pode ser também chamada de “hererogênese”, na noção de Guattarri (como citado por Rolnik, 1993), “no sentido de que a gênese do devir é sempre uma diferença e que o devir é sempre um devir-outro” (p. 243)2.

Surge nesse processo a importância do pensamento e da escrita. O pensamento é uma das práticas pelas quais se pode trazer à existência as novas corporifi cações que as marcas exigem. O pensamento pode ser visto como uma “cartografi a conceitual cuja matéria-prima são as marcas”, e “funciona como universo de referência dos modos de existência que vamos criando, fi guras de um devir” (Rolnik, 1993, p. 244).

Nessa perspectiva, somente se pensa porque se é forçado (Rolnik, 1993), isto é, porque há uma necessidade de reorganizar o chão do ser que se fez outro. A partir disso, pode-se dizer que “a inteli- gência vem sempre depois” e “só é boa quando vem depois”, como afi rma Proust e complementa Deleuze3 (citados por Rolnik, 1993, p. 244). O que estão sugerindo é que a inteligência somente é boa na medida

sínteses, com que entusiasmos, com que falhas constitutivas, com que fl uxos, com que cadeias, com que devires” (p. 449). Guatarri (1985): “Este inconsciente, eu o denominarei ‘esquizoanalítico’, por oposição ao inconsciente psicanalítico, porque se inspira mais no ‘modelo’ da psicose [perda de contato com a realidade] do que no das neuroses [estado nervoso – ansie- dade e angústia, etc. – diante da realidade] a partir das quais foi construída a psicanálise. Eu o qualifi caria igualmente de ‘maquínico’, porque não está essencialmente centrado na subjetividade humana, mas participa dos mais diversos fl uxos de signos, fl uxos sociais e fl uxos materiais.” (p. 167).

2 Interessante é que Suelly Rolnik (1993) retira a expressão “devir-outro” da obra de José Gil, que a utiliza para se referir

aos heterônimos de Fernando Pessoa (cf. Gil, J. (s.d.). Fernando Pessoa ou a metafísica das sensações. (M. S. Pereira, & A. L, Faria, Trad.). Lisboa: Relógio d’Água.).

3 Referência feita por Suelly Rolnik (1993) à frase de Proust, “a intelegência vem sempre depois”, que Deleuze adere e comple-

menta: “a inteligência só é boa quando vem depois.” (cf. Deleuze, G. (1987). A imagem do pensamento. In Proust e os signos. Rio de Janeiro: Forense Universitária).

120

em que se propõe a assessorar a criação de um corpo conceitual, uma escultura, de uma marca; ou seja, a inteligência é boa quando usada a serviço de um devir-outro (Rolnik, 1993).

E a escrita? A escrita é um meio de fazer o pensamento render o mais que pode (Rolnik, 1993). A escrita faz a ponte de emersão do invisível à tona, tornando mais palpável a diferença que até então somente existia na ordem do sensível, do impalpável. Nessa aventura, diz Rolnik (1993), “encarna-se um sujeito, sempre outro: escrever é traçar um devir”. (p. 246).

E porque se fala de escrita, pode-se questionar onde estaria o rigor. O rigor, nessa tarefa de escrita sensível às marcas, resulta de uma posição mais ontológica do que metodológica. É um rigor, segundo Rolnik (1993), ético, estético e político. Ético porque não se trata de um rigor baseado em um conjunto de regras (um método), nem indicado por um conjunto de verdades (um capo de saber), ambos são da ordem da moral, o que signifi ca, para essa autora e a respectiva multiplicidade com quem ela conversa, que são da ordem das representações e das reproduções, referem-se, portanto, a um voltar a algo que já está dado. Ético, portanto, no sentido do rigor com que escutamos as diferenças que se criam em nós, e com o qual afi rmamos o devir que é nosso. É estético, porque, como dito, não é do campo de um saber já dado, mas é de uma tarefa de criação, criação de um novo corpo, outra escultura, à semelhança de uma obra de arte. E, por fi m, político, porque é o rigor de uma luta contra forças que obstruem as nascentes do devir em nós.

Fato é que nem sempre se consegue manter esse rigor, seja porque se perde das marcas, seja porque se vive bloqueado do contágio de outros fl uxos no mundo. Quando isso é a tônica, a tendência é se escrever textos opacos, reprodutivos, sem o brilho de uma vitalidade, que não encarnam pulsão de marca nenhum, ou que, quando muito, tem um brilho puramente intelectual, um brilho meramente de inteligência e erudição4 (Rolnik, 1993).

É a metáfora de uma vida padronizada, sem devires, que, no caso daqueles que se destacam, refl etem pessoas que ressoam essa performance dura, marcada puramente pela erudição. Essas pessoas se tornam ainda mais perigosas, pois, nessas situações, o rigor intelectual se coloca a serviço da perma- nência do campo das representações, como defesa fóbica contra o incômodo trazido por alguma marca, ou seja, por alguma diferença, e contra a consequente solidão que a singularidade dessa diferença, uma vez encarnada, signifi caria (Rolnik, 1993). E, além disso, quanto mais brilhante em inteligência e erudição somente, texto-escrita ou texto-vida, mais se fi ca impedido de ver que se foge da raia, a raia da vida e do tempo, que colocam a emergência de um esforço constante de criação (Rolnik, 1993).

Quanto mais denso, todavia, um texto, no sentido de se mover pelas marcas, mais perceptível é sua atualidade, maior seu brilho em portar múltiplos estados, portar ovos de novos de devires (Rolnik, 2013).

4 Escreve Rolnik (1993) que, em geral, “. . . isso acontece quando não estamos suportando o estranhamento provocado pelas marcas, quando sua trepidação tornou-se infernal, e então para nos proteger, nos aboletamos no oco de um conceito neutro e gratuito na medida em que não nasceu de uma violência, ou fi camos como zumbis zanzando no exercício clean de um quebra-cabeça de charadas lógicas.” (p. 245).

121

No documento http://www.conpdl.com.br/anais5conpdl (páginas 118-121)

Documentos relacionados