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A SEMELHANÇA INFORME

No documento http://www.conpdl.com.br/anais5conpdl (páginas 66-69)

Partimos da hipótese de que o ciúme de baltazar serapião é uma forma projetiva de elaborar sua própria passividade O corpo dilarecado de ermesinda representa a máxima passi-

A SEMELHANÇA INFORME

. . . tão grande foi o ruído de minha mão na sua cara, e tão rápido lhe entornei o corpo ao contrário e lhe dobrei o pé esquerdo em todos os sentidos. que te saiam os peidos pela boca se

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me voltas a encornar, defi nharás sempre mais a cada crime, até que sejas massa disforme e sem diferença das pedras ou das merdas acumuladas. . . (mãe, 2010, p. 53).

Peidos pela boca, massa disforme, pedras, merdas: o universo libidinal de serapião é anal. Tudo em sua vida psíquica parece ser traduzido analmente. O romance nos apresenta a todo o momento tudo é quanto sujidade, fedor, imundície. Se na neurose obsessiva a relação entre o caráter e o erotismo anal vão se dar na forma do controle do próprio sujeito, do que lhe acontece à sua volta, na perversão, o controle será direcionado ao outro. Retomemos uma passagem de Freud:

A incapacidade para o atendimento de uma demanda amorosa real é um dos traços mais essen- ciais da neurose; os doentes são dominados pela oposição entre a realidade e a fantasia. Aquilo por que mais intensamente anseiam em suas fantasias é justamente aquilo de que fogem quando lhes é apresentado pela realidade, e com maior gosto se entregam a suas fantasias quando já não precisam temer a realização delas. (Freud, 1905/1989, p. 106).

É como se realidade e fantasia na perversão não pudessem ser distanciadas. Ambas devem ser coincidentes o tempo inteiro. O caráter não-eu do objeto, ou seja, sua autonomia, sua independência, deve ser permanentemente anulado, massacrado pelo perverso, de tal forma a fazer com que o eu do objeto lhe obedeça, lhe seja idêntico, lhe seja parte de si, como outrora foi, por exemplo, um pedaço de fezes que ele mesmo produziu. A fantasia libidinal de serapião é transformar ermesinda nesse pedaço de fezes, totalmente controlável. Quanto mais identifi cado a ela serapião está, mais ele deve deformá- -la, mais ele deve transformá-la em parte dele mesmo, uma parte da qual ele gostaria de se livrar, como faz com seus dejetos. A questão é que ermesinda representa não apenas a passividade angustiante de serapião, mas também uma passividade excitante que ele não cessa de imaginar, fantasiar. E quanto mais ele fantasia, mais deve impor um tratamento na realidade a esta fantasia. Ao contrário do neuró- tico, o perverso se entrega à atuação quando já não suporta mais a excitação angustiante da fantasia. A repetição projetiva da cena de passividade que viveu se impõe de forma radical.

Das torturas presentes no romance, uma das mais tenebrosas é aquela na qual serapião arranca os olhos de ermesinda:

. . . entrei dedo dentro de ermesinda olho arrancado. como te disse, ermesinda, prometido de coração é devido. fi carás a ver por sorte ainda, fi carás a ver melhor do que devia deixar, nas deixo-te o outro para vez que me pareça. ou por piedade, deixo-to por piedade, e a este deito-o à terra e cubro-o para ser comigo. não te preocupes agora, se dormires de mão aí tapada acor- darás ainda e ainda também quando eu for e voltar. e ela pôs mão e gritos no olho arrancado e deitou-se em desmaio para o chão. o meu pai quis acudir, mas nada o deixei ver, nem entrar, que desnecessário, lho convenci. fi z eu coisa que me ocorreu, trocar olho por terra, buraco onde o deitei trouxe um punhado para dentro e lhe enchi cara com ela, que lhe absorvesse sangue e porcaria saindo, e secasse tanto quanto pudesse a abertura tão grande. (mãe, 2010, pp. 107-108). A passagem é fundamental para deixar bastante claro que os buracos naturais de emersinda são totalmente insufi cientes para serapião satisfazer sua enlouquecida fantasia de controle. Como inter- pretar o desejo de produzir um buraco, efratar, deformar o corpo do outro? Antes que a própria teoria

68 psicanalítica traduza tais atos como um tipo de encenação da castração, é importante insistir: trata-se ainda e sempre de uma passividade originária. Não recusamos o fato de que é muito possível traduzir esta passividade em termos de uma castração simbólica. No entanto, advertimos: a castração simbó- lica é já uma tradução bastante tardia, generifi cada, da passividade radical das origens. serapião faz funcionar nesse ato uma espécie de lei de Talião perversa. Se na cegueira histérica, Freud (1910/1970) já apontava que o olho pode ser punido exatamente por ser o motor do desejo, na perversão, o olho é arrancado pela mesma razão.

Casos como os de serapião podem ser lidos a partir de uma metodologia própria à psicanálise freudiana. Se o tomarmos como um caso excepcional, dada a excessiva força através da qual a pulsão se satisfaz, podemos usá-lo para pensar em casos mais cotidianos e menos violentos. Quando disse, por exemplo, que os buracos naturais de ermesinda são insufi cientes para serapião, quero apontar para o laborioso processo psíquico presente em todos nós para tornar naturais, supostamente naturais, os buracos do corpo (o próprio e o do outro) e seus usos.

Seria interessante ler o romance a partir da análise que Didi-Huberman (1995) faz da obra de Bataille. Para Didi-Huberman, Bataille faz uma dura crítica ao regime da semelhança na medida em que ele se articula a muitos regimes de poder. O mito judaico, da imagem e semelhança entre deus e homem, é apenas um destes lugares. Base teológica que vai idealizar uma imagem específi ca do que é e do que deve ser o homem. Ao sacralizar o corpo, determina-se também os usos possíveis e proibidos desse corpo, assim como estabelece-se uma hierarquia entre os corpos. Do mito judaico, não custa lembrar a curiosa inversão que faz sair a mulher de um pedaço do corpo de um homem. A soberania da gravidez é recalcada pela força da narrativa androcêntrica. As imagens transgressivas do romance de mãe talvez nos auxiliem a mostrar como o corpo é um objeto a todo tempo investido pulsionalmente e simbolizado. Corpos que se desfazem, que entortam, que se misturam às fezes, aos animais: corpos de mulheres radicalmente violentados quanto mais mostram suas semelhanças, mais deformados devem ser. “Não há decomposição do antropomorfi smo tradicional sem decomposição do antropomorfi smo divino (este do qual o primeiro é o modelo efetivo, este que toma o primeiro fi ccionalmente por modelo).” (Didi-Huberman, 1995, p. 95).

Massifi car o rosto, apagar marcas identifi catórias, perfurar, arrancar partes, entortar... Tudo isto serve não apenas para recusar de forma angustiante e excitante a identifi cação que deseja e que recusa. O papel da literatura aqui talvez sirva para mostrar que o jogo de identifi cações entre homens e mulheres e também, de forma mais geral, entre eu e não-eu, é um jogo de restos incalculáveis. Mostrar o informe é mostrar que a identifi cação é sempre insufi ciente para nos manter juntos. A fúria do recal- camento originário – que separa o eu e o inconsciente – também ecoa na violência que separa o eu e seus objetos. O eu, no limite, não pode se identifi car com a alteridade interna contra a qual se consti- tuiu e em direção à qual é sempre chamado.

Do ponto de vista laplancheano, acredito que podemos dizer que o sexual está sempre presente numa relação. Há que se pensar o quanto é sintomático insistir que não há encontro com o outro, que não há relação sexual. O esforço des-identifi catório é tão sintomático quanto as ilusões identifi cató-

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rias. Não apenas há relação sexual: ela é, a um só tempo, constitutiva e disruptiva. O encontro com o objeto é um reencontro: não se trata de uma tentativa reiteradamente frustrada de encontrar um objeto perdido. Ao contrário: serapião reencontra em ermesinda os ecos mortíferos das cenas primárias que lhe foram endereçadas pelo pai espancando a mãe. Uma mãe é espancada diante de um menino: essa é a cena traumática que se repete, infelizmente, sem encaminhamento para perlaboração. É por estar e para não estar, a um só tempo, identifi cado com a mãe espancada, que serapião usa a frágil e violentíssima identifi cação com o pai. A relação com ermesinda reabre sua situação originária: satisfaz o desejo de ser espancado pelo pai, sendo espancado por suas fantasias de ciúme, mas protege-se desse excitante dilaceramento projetando em ermesinda o corpo dilacerado que é aquele recalcado das suas origens.

O romance que estamos analisando coloca o informe em movimento. Faz ver que a forma é um tipo de fi xação simbólica. O corpo da mãe de serapião e o de ermesinda são experimentos do informe. A fúria grotesca que se dirige às mulheres em vão tenta apagar o transicional, em vão tenta criar uma alteridade realmente outra, absolutamente separada dos tentáculos identifi catórios do eu. Quanto mais monstruosa, quanto mais alteritária, mais próximo está serapião da massa fecal que ele é. Lembremos: serapião ameaça ermesinda de comer seu próprio bebê, caso ele suspeite que o fi lho não seja dele; o pai de serapião mata a mãe tirando com as próprias mãos, um feto. É quase didático: na vida psíquica dominada pela analidade, bebês são massas fecais e não podem mostrar que corpos podem ser habitá- veis de forma gentil e prazerosa.

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